Aborto na Irlanda: a luta e as histórias por trás da campanha pela revogação da Oitava Emenda

Em artigo no blog Ativismo de Sofá, Flávia Simas conta como é a questão do aborto na Irlanda e o referendo que revogou a Emenda 8. "A misoginia no trato da mulher gestante é profundamente arraigada na Irlanda, assim como o controle dos corpos ditos femininos", explica

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Por Flávia Simas, uma brasileira na Irlanda, no blog Ativismo de Sofá 26 de maio de 2018. Eu estava participando de um workshop, enquanto minhas amigas Aine e Jacinta acompanhavam a concentração para apuração de votos que havia sido instalada em um centro recreativo a poucos metros de onde eu estava. A minha mente estava a mil por hora. "Estamos aqui, já está pra sair o resultado", disse a Aine no nosso grupo do WhatsApp. Não resisti. Pedi licença à instrutora do workshop e corri ao encontro das minhas amigas. Ao chegar lá, Aine e eu nos abraçamos. Ao olharmos uma para a outra, as lágrimas começaram a escorrer em nossas faces. "Tá acontecendo", eu dizia, já vendo que a Jacinta vinha em nossa direção. Dei um grande abraço nela também. Nós três ficamos ali em um círculo, sorrindo em meio a muitas lágrimas. "É isso, acabou", era tudo o que conseguíamos dizer, enquanto as lágrimas seguiam livres, assim como em boa parte dos rostos das mulheres da Irlanda naquele momento. Não tenho por objetivo explicar detalhadamente nesse texto os pormenores desse referendo que aconteceu na Irlanda na última sexta (25/05). Pretendo apenas deixar um registro de como foi minha experiência como uma mulher imigrante que participou da campanha em prol da revogação da Emenda 8 da Constituição Irlandesa, cujo texto basicamente iguala a vida da mulher à vida do feto que carrega, tornando o acesso ao aborto inviável aqui na ilha da esmeralda. Quando cheguei na Irlanda em 2013, entrei em choque ao descobrir que a história da Savita Halappanavar havia se passado em Galway, a cidade em que eu ia morar. De forma bem resumida, isso foi o que aconteceu com a Savita: em outubro de 2012 Savita veio a óbito no hospital público local. Ela estava em processo de abortamento espontâneo de uma gravidez desejada de 17 semanas. Os médicos sabiam que ela iria perder o bebê, mas se recusaram a seguir adiante com o procedimento, à revelia do desejo de Savita, que estava muito doente. O que se seguiu foi uma septicemia, e Savita foi submetida a um parto induzido nessas condições. Nem o bebê, e nem a Savita foram salvos. Eu fiquei revoltada, e procurei entender melhor o que vinha acontecendo no país: a Emenda 8, aprovada em 1983, não passa de um estorvo que perdurou por 35 anos na Irlanda, ferindo as mulheres que aqui vivem, equiparando seus corpos a incubadoras de bebês. Na visão do Estado irlandês, a procriação seria a única razão de existir das mulheres que vivem aqui. Foi então que me juntei a coletivos de base aqui em Galway, e passei a participar das manifestações realizadas por aqui sempre que possível. Todos os anos, desde que me mudei para cá, eu tenho participado, de forma ativa ou como espectadora, de vigílias para relembrar a morte de Savita. Essas vigílias são sempre muito emocionantes e eu geralmente saio delas em lágrimas. Como mulher negra imigrante, a coisa toda tomou uma dimensão ainda mais drástica no meu coração quando fiquei sabendo de outros casos tão horríveis quanto. Depois do caso da Savita, o que mais me deixa abalada é o da mulher que foi identificada pela mídia como Miss Y. Miss Y é uma mulher refugiada aqui na Irlanda. Ela veio para cá correndo de um país devastado pela guerra. Além de ter sido testemunha dos horrores que uma guerra gera, essa mulher também foi estuprada em seu país. Chegando aqui, descobriu que estava grávida. Como refugiada, a Miss Y não tem o direito de sair da ilha. Então ela foi a um hospital pedir um aborto. Um outro circo de horrores se desdobrou perante seus olhos: o pedido foi negado, por causa da emenda 8. Extremamente deprimida, Miss Y decidiu que preferia a morte a ter que trazer a cria de um estuprador ao mundo. Foi então que ela decidiu parar de comer. Enfraquecida, ela foi levada a um hospital, e os médicos disseram a ela que iriam realizar a interrupção de sua gestação, mas para isso, ela precisaria se fortalecer. Ela voltou a se alimentar, mas quando percebeu que não iriam fazer o procedimento, parou de comer novamente. Dessa vez, o hospital resolveu alimentá-la por um tubo. E ela foi mantida presa no hospital, sendo alimentada À FORÇA, até que completou 25 semanas. Os médicos então realizaram nela um parto cesárea, também sem o seu consentimento. Essa mulher está processando o estado e a sua identidade não pode ser revelada. Mas a sua história assombra essa terra até hoje como um exemplo de como NÃO lidar com casos assim. A Miss Y foi torturada ao ser estuprada, e provavelmente continua torturada até os dias de hoje, sabendo que foi obrigada a trazer ao mundo a cria de um estuprador. Pelo menos aqui em Galway, eu sinto que o movimento de base tomou outra dimensão quando o caso da Miss Y veio à tona. Fizemos um protesto com umas 12 pessoas envolvidas. Usamos esparadrapo selando as nossas bocas, e cada uma de nós carregou um cartaz com os dizeres 'Prisioneiras da Emenda 8'. Após esse protesto em 2014, o movimento ganhou muita força e as reuniões do Galway Pro-Choice foram ficando mais e mais lotadas. A revolta do povo foi aumentando e mais casos acabaram vindo à tona. As mulheres já não aguentavam mais ficar caladas. Cada vez mais elas se sentiam encorajadas a contar suas próprias experiências com o aborto. Mulheres com fetos inviáveis por problemas congênitos graves tendo que sair da Irlanda para buscarem a interrupção na Inglaterra. Quando eu digo que essa emenda é um embuste, é por isso: uma outra lei, a emenda 13, diz que as mulheres que quiserem abortar podem fazê-lo fora da Irlanda sem risco de serem processadas. Acontece que não são todas as mulheres que possuem condições financeiras para ir para fora do país se precisarem de um aborto. Não são todas as mulheres que possuem condições psicológicas para tanto. A experiência de ter que entrar em um avião, fazer um aborto e voltar com dor para casa fingindo que nada aconteceu deixou marcas profundas em uma quantidade imensa de mulheres irlandesas. Além do mais, há os casos de mulheres não-irlandesas, que muitas vezes são impedidas de sair do Estado por falta de visto. Imaginemos que Savita não estivesse fisicamente debilitada e resolvesse ir para fora abortar. Ela não teria conseguido, por não possuir visto para entrar em outro país que não a Irlanda. A questão do aborto, por tudo que foi exposto acima, não é preto no branco. Nunca foi, e nunca será. O preto no branco gera Savitas, Miss Ys e muitas outras mulheres com gestações inviáveis que precisaram viajar para conseguir a interrupção da gravidez. O preto no branco gera um caso de uma mulher que foi mantida viva por meio de aparelhos, mesmo após sua morte encefálica, para manter um feto de estágio inicial vivo. E o preto no branco também não para por aí. Como a lei é absurdamente restritiva, a classe médica não se preocupa em obter treinamento adequado no assunto. Dessa forma, o preto no branco gera casos como o de Bimbo Onanuga, uma mulher imigrante da Nigéria que morreu por pura incompetência médica. O feto morreu em seu ventre, ela foi ao hospital com dores e febre. Ela estava de 7 meses e por falta de treinamento ou má-fé (nunca saberemos), os médicos resolveram administrar misoprostol nessa mulher, que teve sérias reações e acabou falecendo após uma parada cardíaca. Misoprostol não é indicado para interrupção em estágios avançados de gravidez, pois causa contrações uterinas graves e risco de morte. O cenário exposto acima deixa cicatrizes profundas na psique coletiva deste país. Como mulher imigrante, eu fico ainda mais abalada ao saber que os casos mais chocantes foram os de três outras mulheres imigrantes como eu, como exemplifiquei nesse texto. Eu tenho problemas de fertilidade e, caso ainda deseje engravidar, precisarei buscar auxílio médico. Porém, a vivência na Irlanda com todos esses casos assustadores me fez desenvolver um trauma com o qual ainda não tenho coragem de lidar. Só de pensar em buscar tratamento para gerar e depois ser tratada como uma mera incubadora, eu já sinto um frio na espinha. Então, não sei se um dia terei filhos, ainda que eu os deseje bastante. A revogação dessa emenda absurda nos deu um novo fôlego. Eu sei que muito ainda terá que ser feito para que a violência obstétrica acabe neste país. Sei que ainda há muitos passos a serem dados para garantir os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres por aqui. A revogação não vai fazer desaparecer os inúmeros relatos de mulheres que foram extremamente maltratadas durante suas gestações devido a essa lei e nem vai fazer sumir as histórias das mulheres que tiveram suas casas invadidas por policiais por terem perdido o horário de seus exames. Como no Brasil, a misoginia no trato da mulher gestante é profundamente arraigada na Irlanda, assim como o controle dos corpos ditos femininos. O descaso com a dor que as mulheres sentem durante o parto e a falta de protagonismo delas nesse momento é algo corriqueiro por aqui. Mas nós acreditamos que a revogação dessa emenda foi um primeiro passo rumo a uma sociedade mais justa com as mulheres e indivíduos de outros gêneros que são capazes de gestar. Quanto a mim, estou trabalhando o meu psicológico para ver se terei ou não coragem de engravidar. Por enquanto, é melhor não. As feridas da Irlanda ainda estão muito abertas em mim. Mas há esperança para todo o planeta. A mensagem de solidariedade que a Irlanda deu ao mundo é potente. Milhares de pessoas, em sua maioria mulheres emigrantes, retornaram ao seu país de origem para votar a favor pela revogação da emenda de 1983. Enquanto outras milhares de mulheres marcharam contra essa emenda absurda. Com isso, a luta das irlandesas e mulheres que aqui vivem deixam uma marca positiva no mundo, um exemplo bonito e emocionante de organização popular. Fizemos protestos. Arrecadamos fundos. Muitas pessoas bateram de porta em porta para educar a população. Conversamos. Debatemos um tabu. Lutamos contra o conservadorismo. Lembramos de Savita, de Miss Y e de muitas histórias de anônimas. Vencemos por todas nós. E que venham as novas leis e que elas garantam o direito de escolha de todas as mulheres na Irlanda.

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