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O Cariri é uma terra marcada pelo imaginário religioso e tradicional, mas também vem se destacando como o berço de muitas revoluções construídas por coletivos que buscam a intersecionalidade dos movimentos sociais
Por Jarid Arraes
O Cariri do interior do Ceará é uma terra marcada pelo imaginário religioso e tradicional. Juazeiro do Norte, uma das principais cidades da região, é conhecida por sua forte relação com a figura do Padre Cícero Romão Batista, um santo milagreiro que movimenta o turismo e gigantescas romarias dos fiéis. No entanto, o Cariri também vem se destacando como o berço de muitas revoluções construídas por coletivos e movimentos sociais pioneiros, dispostos a efetivar muitas transformações sociais.
[caption id="attachment_67190" align="alignleft" width="300"] Imagem: Reprodução / Facebook[/caption]
O coletivo Queerdel – Transgressão e Memória de Gêneros e Sexualidades da Região do Cariri é um dos grupos que articula o que há de melhor no interior do Ceará: a palavra “Queerdel” é como uma provocação, unindo o “queer”, uma palavra inglesa que é compreendida no Brasil como uma espécie de representação da diversidade sexual, com a palavra “cordel”, uma tradicional literatura popular.
O Queerdel surpreende pela coragem de confrontar tabus e lógicas conservadoras tão comuns no interior do Ceará. Para Pablo Soares, estudante de Jornalismo e militante do grupo, a intenção é desconstruir preconceitos e viabilizar novas formas de comunicação.
O próprio nascimento do coletivo explica bastante suas propostas: “O Movimento “Queerdel” nasceu no início do ano a partir da experiência com a disciplina “Cordel, Informação e Memória”, ministrada pela professora Fanka Santos. Ele foi formulado com o intuito de se tornar um projeto fomentado pela universidade, no âmbito da pró-reitoria de cultura. A partir da primeira reunião, depois do projeto ser aprovado, decidimos que ele se definiria enquanto movimento de Transgressão e Memória de Gêneros e Sexualidades da Região do Cariri, trabalhando na perspectiva de unir a poesia com as questões de gênero e sexualidade”.
O movimento desenvolve saraus, oficinas de produção de cordéis feministas e libertários, além de atividades em parceria com outros movimentos que combatem as opressões - tais como a Frente de Mulheres dos Movimentos do Cariri, o Coletivo Brenhas e o Pretas Simoa, que já virou até manchete nos jornais do país após o intenso enfrentamento que fizeram na Universidade Regional do Cariri (URCA). Na ocasião, em Março de 2014, um estudante da universidade encontrou pichações no banheiro que lhe ofendiam com conteúdo racista e, devido a problemas de saúde, chegou a convulsionar. Indignadas com a omissão da instituição, as integrantes do Pretas Simoa fizeram uma série de intervenções no campus, uma delas gravada e disponibilizada no Youtube.
Por seu histórico de ações incisivas, que metem o dedo na ferida e expõem o racismo e a misoginia do Ceará e de todo o Brasil, as ativistas do Pretas Simoa são companheiras de luta ideais para que o Queerdel consiga somar forças e unir pessoas dispostas a questionar e combater o racismo, machismo, homofobia, lesbofobia, transfobia e outras manifestações discriminatórias.
De fato, os movimentos sociais do Cariri vêm se mostrando pioneiros, interessados em colocar em prática uma práxis interseccional aprofundada. Além de ações em datas históricas de militância, como o Dia Internacional da Mulher, os coletivos da região entendem, antes de muita gente, que toda militância necessita de atenção para o contexto local e preocupação com grupos ainda mais marginalizados na sociedade, como é o caso das mulheres da periferia.
[caption id="attachment_67191" align="alignright" width="300"] Pretas Simoa em ensaio fotográfico contra a objetificação das mulheres negras no Carnaval (Imagem: Reprodução / Facebook)
[/caption] Tendo isso como missão e prioridade, o Pretas Simoa realizou um evento totalmente gratuito na cidade de Crato (CE), em Agosto de 2014, onde trabalhadoras domésticas tiveram acesso a informação sobre seus direitos trabalhistas. Apesar disso, as militantes negras denunciaram a falta de interesse e participação de feministas brancas; embora o Pretas Simoa realize periodicamente formações, debates, exibições de filmes e documentários, além de outras atividades, a presença de pessoas brancas, mesmo entre aquelas que já militam em movimentos sociais, é bastante rara. Os desafios da militância são imensos. “O Cariri, por ser uma região interiorana, ainda tem aspectos que devem influenciar e servir de reflexão em nossas lutas e formas de atuação. Nossa população é composta por grande parte de indivíduos trabalhadores rurais e idosos, que possuem uma formação baseada no patriarcado”, afirma Pablo Soares. Por isso, marchas muito populares no Sudeste, como a Marcha das Vadias, não cabem na realidade do Cariri. “Não tem como ou é muito difícil exigir, por exemplo, que essas pessoas se identifiquem com a própria marcha das vadias. É legitima, sim - mas é um contexto muito mais complexo, que devemos repensar para trabalhar determinadas reflexões. Um movimento que não abrange a magnitude das diferenças que compõem os indivíduos é um movimento fraco!”, salienta. A própria lógica de que todas as ações feitas pelo sudeste do país também servem para outras regiões do Brasil revela discriminações diversas. Sem que se possa levar em consideração a realidade de lugares como o Cariri e os desafios que as mulheres daquele lugar enfrentam, muitas vezes extremamente diferentes das questões das mulheres brancas paulistanas, não se pode falar de Feminismo para todas. O mesmo, claro, vale para o movimento LGBT e negro. [caption id="attachment_67192" align="alignleft" width="300"] Ato em protestos contra os altos índices de feminicídios na região do Cariri. Em 31 de Maio, na cidade de Barbalha (CE) (Imagem: Arquivo Pessoal)
[/caption] “O Cariri assim como qualquer outra região do interior é sempre invisibilizada e exotificada”, denuncia Soares. “O nosso movimento é invisibilizado e nossas pautas muitas vezes são vistas como inferiores ou desnecessárias, sim, por muitos partidos e coletivos. Mas é bom ver que apesar de tudo temos sempre forças para manter a luta e cada dia mais interseccionalizar os nossos movimentos!”, declara. E por falar em interseccionalidade, no próximo dia 27, os coletivos Queerdel e Pretas Simoa realizarão o “Akuenda a Diverdade”, uma marcha que traz o foco para as questões da população LGBTTQI com recortes de gênero, raciais e de classe. Esse é um excelente exemplo de como todos esses movimentos podem caminhar juntos, abordando todas as pautas que lhes são relevantes e cuidando para que em seus coletivos nenhum tipo de discriminação seja reproduzida sem que seja confrontada. Apesar dos desafios, Pablo Soares afirma que a experiência de militância no Cariri é muito rica. “As relações que se estabelecem entre as pessoas para uma única finalidade e uma única luta é muito prazerosa, mas também árdua, já que cada um possuí suas especificidades e linhas de pensamento”, explica. “A mobilização deve ser uma das nossas principais tarefas, mas também é a mais complexa, já que muitas vezes as pessoas acreditam que militância é uma perda de tempo, o que é muito triste. A população, principalmente as escolas, se mostram bastante abertas para que desenvolvamos nossas atividades, já que os assuntos pautados muitas vezes geram situações de constrangimento entre as pessoas que não sabem discutir a respeito e acabam reproduzindo uma série de preconceitos. Os jovens são os mais receptivos com essas questões e observamos como são carentes e atenciosos quando pautamos assuntos vistos como tabus na sociedade”, relata Soares. [caption id="attachment_67194" align="alignright" width="300"] "Se embrenhando contra a homo-lesbo-transfobia", uma das atividades do Queerdel. (Imagem: Arquivo Pessoal)
[/caption] A coragem e energia de grupos como o Queerdel, o Pretas Simoa e a Frente de Mulheres dos Movimentos do Cariri deve servir como inspiração para coletivos no Brasil inteiro. Afinal, tem gente enfrentando muitas cargas de conservadorismo e muitas dificuldades, incluindo aquelas impostas pelo preconceito contra o Nordeste, para que nossa sociedade, como um todo, se torne mais inclusiva, acolhedora e diversa. “Esperamos igualdade”, diz Soares. “Não sei se conseguirei ver uma sociedade igualitária como um todo. Mas só em ver as relações que se estabelecem ao meu redor sofrendo grande influência por causa das nossas lutas me deixa feliz e com força para lutar cada dia mais. Olhar para minha mãe e ver a vontade dela de desconstruir os preconceitos que reproduzimos diariamente, por conta da nossa formação, é o máximo para mim. Lutemos!”, finaliza. Foto de capa: Pretas Simoa - Reprodução / Facebook
[/caption] Tendo isso como missão e prioridade, o Pretas Simoa realizou um evento totalmente gratuito na cidade de Crato (CE), em Agosto de 2014, onde trabalhadoras domésticas tiveram acesso a informação sobre seus direitos trabalhistas. Apesar disso, as militantes negras denunciaram a falta de interesse e participação de feministas brancas; embora o Pretas Simoa realize periodicamente formações, debates, exibições de filmes e documentários, além de outras atividades, a presença de pessoas brancas, mesmo entre aquelas que já militam em movimentos sociais, é bastante rara. Os desafios da militância são imensos. “O Cariri, por ser uma região interiorana, ainda tem aspectos que devem influenciar e servir de reflexão em nossas lutas e formas de atuação. Nossa população é composta por grande parte de indivíduos trabalhadores rurais e idosos, que possuem uma formação baseada no patriarcado”, afirma Pablo Soares. Por isso, marchas muito populares no Sudeste, como a Marcha das Vadias, não cabem na realidade do Cariri. “Não tem como ou é muito difícil exigir, por exemplo, que essas pessoas se identifiquem com a própria marcha das vadias. É legitima, sim - mas é um contexto muito mais complexo, que devemos repensar para trabalhar determinadas reflexões. Um movimento que não abrange a magnitude das diferenças que compõem os indivíduos é um movimento fraco!”, salienta. A própria lógica de que todas as ações feitas pelo sudeste do país também servem para outras regiões do Brasil revela discriminações diversas. Sem que se possa levar em consideração a realidade de lugares como o Cariri e os desafios que as mulheres daquele lugar enfrentam, muitas vezes extremamente diferentes das questões das mulheres brancas paulistanas, não se pode falar de Feminismo para todas. O mesmo, claro, vale para o movimento LGBT e negro. [caption id="attachment_67192" align="alignleft" width="300"] Ato em protestos contra os altos índices de feminicídios na região do Cariri. Em 31 de Maio, na cidade de Barbalha (CE) (Imagem: Arquivo Pessoal)
[/caption] “O Cariri assim como qualquer outra região do interior é sempre invisibilizada e exotificada”, denuncia Soares. “O nosso movimento é invisibilizado e nossas pautas muitas vezes são vistas como inferiores ou desnecessárias, sim, por muitos partidos e coletivos. Mas é bom ver que apesar de tudo temos sempre forças para manter a luta e cada dia mais interseccionalizar os nossos movimentos!”, declara. E por falar em interseccionalidade, no próximo dia 27, os coletivos Queerdel e Pretas Simoa realizarão o “Akuenda a Diverdade”, uma marcha que traz o foco para as questões da população LGBTTQI com recortes de gênero, raciais e de classe. Esse é um excelente exemplo de como todos esses movimentos podem caminhar juntos, abordando todas as pautas que lhes são relevantes e cuidando para que em seus coletivos nenhum tipo de discriminação seja reproduzida sem que seja confrontada. Apesar dos desafios, Pablo Soares afirma que a experiência de militância no Cariri é muito rica. “As relações que se estabelecem entre as pessoas para uma única finalidade e uma única luta é muito prazerosa, mas também árdua, já que cada um possuí suas especificidades e linhas de pensamento”, explica. “A mobilização deve ser uma das nossas principais tarefas, mas também é a mais complexa, já que muitas vezes as pessoas acreditam que militância é uma perda de tempo, o que é muito triste. A população, principalmente as escolas, se mostram bastante abertas para que desenvolvamos nossas atividades, já que os assuntos pautados muitas vezes geram situações de constrangimento entre as pessoas que não sabem discutir a respeito e acabam reproduzindo uma série de preconceitos. Os jovens são os mais receptivos com essas questões e observamos como são carentes e atenciosos quando pautamos assuntos vistos como tabus na sociedade”, relata Soares. [caption id="attachment_67194" align="alignright" width="300"] "Se embrenhando contra a homo-lesbo-transfobia", uma das atividades do Queerdel. (Imagem: Arquivo Pessoal)
[/caption] A coragem e energia de grupos como o Queerdel, o Pretas Simoa e a Frente de Mulheres dos Movimentos do Cariri deve servir como inspiração para coletivos no Brasil inteiro. Afinal, tem gente enfrentando muitas cargas de conservadorismo e muitas dificuldades, incluindo aquelas impostas pelo preconceito contra o Nordeste, para que nossa sociedade, como um todo, se torne mais inclusiva, acolhedora e diversa. “Esperamos igualdade”, diz Soares. “Não sei se conseguirei ver uma sociedade igualitária como um todo. Mas só em ver as relações que se estabelecem ao meu redor sofrendo grande influência por causa das nossas lutas me deixa feliz e com força para lutar cada dia mais. Olhar para minha mãe e ver a vontade dela de desconstruir os preconceitos que reproduzimos diariamente, por conta da nossa formação, é o máximo para mim. Lutemos!”, finaliza. Foto de capa: Pretas Simoa - Reprodução / Facebook