Escrito en
MOVIMENTOS
el
Ao sobrevalorizar horizontalismo e consulta permanente às bases, movimento teria renunciado a formular propostas concretas, derrapando para elitismo e impotência
Por Thomas Frank, no Le Monde Diplomatique. Publicado no Outras Palavras.
Uma cena vem à minha memória cada vez que tento recuperar o efeito excitante que o movimento Ocupar Wall Street (OWS) produziu em mim quando a manifestação ainda parecia ter um grande futuro. Estava no metrô de Washington,lendo um artigo sobre os manifestantes reunidos no Zuccotti Park de Manhattan. Fazia três anos que Wall Street havia se recuperado; dois anos que meu círculo de colegas e amigos havia abandonado a esperança de ver o presidente Barack Obama provar sua audácia; dois meses que os amigos republicanos dos banqueiros haviam conduzido o país à beira da moratória ao empreender um braço de ferro orçamentário com a Casa Branca. Como todos, já não aguentava mais.
Ao meu lado, estava um cidadão impecavelmente vestido, talvez um quadro superior que acabara de sair de algum salão comercial, a julgar pela bolsa a tiracolo com slogans que se referiam ao dinheiro. As frases indicavam como otimizar os investimentos financeiros, sugeriam que o luxo é um benefício e que ser um ganhador é magnífico. O homem parecia realmente incomodado. Eu saboreava a situação: em outros tempos, eu é que teria vergonha de exibir a capa do meu jornal em um vagão lotado; hoje, são pessoas como ele que tentam passar despercebidas.
Alguns dias depois, assistia a um vídeo na internet que mostrava um grupo de militantes do OWS debatendo em uma livraria. Em um momento do filme, um participante se perguntou sobre a obsessão de seus camaradas em insistir que se expressam “por si mesmos”, em vez de assumir que pertencem a um coletivo. Outro, então, replicou: “Cada um pode falar apenas por si mesmo; ao mesmo tempo, o ‘si mesmo’ poderia muito bem se diluir em seu próprio questionamento, como convida todo pensamento pós-estruturalista que leva ao anarquismo [...]. Não posso falar apenas por mim: é o ‘apenas’ que conta nesse caso, e certamente é aí que muitos espaços se abrem”.
Ao escutar essa parafernália pseudointelectual, entendi que já não havia esperança. O filósofo Slavoj Žižek já havia prevenido os acampados do Zuccotti Park em outubro de 2011: “Não se apaixonem por vocês mesmos. Passamos um bom momento aqui, mas, lembrem-se, os carnavais não custam caro. O que conta é o dia seguinte, quando precisamos retomar nossa vida normal. E é quando nos perguntamos: alguma coisa mudou?”.
A advertência de Žižek está na obra Occupy! Scenes from occupied America[Ocupe! Cenas da América ocupada], o primeiro livro consagrado ao protesto publicado em 2011. Desde então, uma avalanche de produções editoriais invadiram as prateleiras das livrarias, de discursos pronunciados por manifestantes a análises jornalísticas, passando por testemunhos de militantes.1
Quase todas essas obras caem no contexto evocado por Žižek. Seus autores estão profunda e desesperadamente apaixonados pelo OWS, e dão por certo que os manifestantes anti-Wall Street abalaram os poderosos do mundo financeiro e sufocaram de admiração os excluídos do planeta. Essa visão beata em geral já aparece no próprio título do livro: This changes everything: Occupy Wall Street and the 99% Movement [Isto muda tudo: Ocupar Wall Street e o Movimento dos 99%],2 por exemplo. Os superlativos abundam, usados sem censura ou precaução. “Os 99% despertaram, a paisagem política norte-americana jamais será a mesma”, anuncia o autor de Voices from the 99 percent[Vozes dos 99%].3 Uma profecia quase morna se comparada ao entusiasmo peremptório de Chris Hedges. Em Jours de destruction, jours de révolte [Dias de destruição, dias de revolta], o antigo jornalista do New York Times compara o OWS às revoluções de 1989 na Alemanha do Leste, Tchecoslováquia e Romênia. Os manifestantes nova-iorquinos, escreve, “eram desorganizados no início, não sabiam exatamente o que fazer, não estavam sequer convencidos de que tinham cumprido algum papel de mérito. Com ares inofensivos, porém, desencadearam um movimento de resistência global que eclodiu em vários países e nas capitais europeias. O status quo precário imposto pelas elites durante décadas foi implodido. Outro relato ganhou forma, a revolução começou”.4
[caption id="attachment_21075" align="alignright" width="300"] (http://www.flickr.com/photos/silveiraneto/)[/caption]
O que torna esses livros tão tediosos é o fato de, salvo algumas exceções, recontarem as mesmas anedotas, citarem os mesmos comunicados e discursos, oferecerem as mesmas interpretações históricas, se concentrarem nas mesmas coisas. Como o tocador de djembê impediu que todos dormissem, o que realmente aconteceu na ponte do Brooklyn, por que e como fulano foi parar ali, quem teve a ideia de realizar assembleias gerais, como cada um limpou o parque durante uma noite de pânico para evitar que fossem expulsos no dia seguinte etc. Medido pelo número de palavras por metro quadrado de grama ocupada, o Zuccotti Park constitui, sem sombra de dúvida, o lugar mais analisado da história do jornalismo.
A grande epopeia, contudo, teve curta duração. Os acampados foram evacuados dois meses após a instalação. À exceção de alguns grupos residuais aqui e ali, animados por militantes mais experientes, o movimento OWS se desagregou. A tempestade midiática que recaiu sobre as lonas do Zuccotti Park foi levada pelo vento. Façamos uma pausa e comparemos o balanço do OWS com o de seu vilão gêmeo, o Tea Party, e da renovação da direita ultrarreacionária, do qual esse partido é ponta de lança.5 Graças aos seus devotos, o Partido Republicano se tornou majoritário na Câmara dos Representantes; nos legislativos estaduais, tirou seiscentas cadeiras dos democratas. O Tea Party conseguiu até impulsar um dos seus, Paul Ryan, à candidatura para a vice-presidência dos Estados Unidos.
A questão à qual os enaltecedores do OWS consagram suas considerações apaixonadas é a seguinte: qual é a fórmula mágica que permitiu ao movimento ter tanto sucesso? Ora, essa é a questão diametralmente inversa à que deveriam se perguntar: por que tamanho fracasso? Como os esforços mais legítimos caíram no lamaçal da glosa acadêmica e das posturas anti-hierárquicas vazias de sentido?
De qualquer forma o movimento começou forte. Desde os primeiros dias de ocupação do Zuccotti Park, a causa do OWS tornou-se incrivelmente popular. De fato, como sublinha Todd Gitlin, era a primeira vez desde a década de 1930 que um tema progressista como a aversão a Wall Street unia a sociedade norte-americana. As moções de simpatia pelo movimento choviam aos milhares, os cheques de apoio também, além das pessoas que faziam fila para doar livros e comida aos acampados. Celebridades foram demonstrar solidariedade à causa e os meios de comunicação começaram a cobrir a ocupação com uma atenção que jamais é dedicada aos movimentos sociais etiquetados de esquerda.
Mas os analistas interpretaram de forma equivocada o apoio à causa do OWS como um apoio às suas modalidades de ação. As barracas armadas no parque, a preparação de comida por legiões de acampados, a busca sem fim do consenso, os enfrentamentos com a polícia etc.: aí está, aos olhos dos exegetas, o que fazia a força e a singularidade do OWS; aí está o que o público tem sede de ver.
O que estava sendo realmente tecido em Wall Street durante esse tempo todo suscitou um interesse muito menos vivo. Em Occupying Wall Street, uma compilação de textos redigidos por escritores que participaram do movimento, a questão dos empréstimos bancários usurários apareceu somente uma vez, em uma citação na boca de um policial. E não espere descobrir como os militantes do Zuccotti pretendiam enfrentar o poder dos bancos. Não porque tal façanha pudesse ser considerada impossível, e sim porque a forma como a campanha do OWS é apresentada nessas obras dá a impressão de que o movimento não tinha nada a propor além da construção de “comunidades” no espaço público e o exemplo dado ao gênero humano pela nobre recusa de eleger porta-vozes.
Infelizmente, um programa político como esse não é suficiente. Construir uma cultura de luta democrática é, sem dúvida, muito útil para os ambientes militantes, mas é apenas um ponto de partida. O OWS jamais foi além disso: não desencadeou uma greve, não bloqueou um centro de recrutamento ou sequer ocupou o gabinete de um reitor de universidade. Para seus militantes, a cultura horizontal representa o estágio supremo da luta: “O processo é a mensagem”, entoavam em coro os manifestantes.
“A obra-prima última da virtude democrática”
Seria possível objetar que a questão de apresentar ou não reivindicações foi intensamente debatida pelos militantes quando ocuparam efetivamente o espaço. Mas para quem folheia essas publicações um ano depois, esse debate parece de outro mundo. Quase nenhuma arriscou reconhecer que a recusa de formular proposições constituiu um grave erro tático. Ao contrário: Occupying Wall Street, o relatório quase oficial da aventura, relaciona toda intenção programática a um fetiche concebido para manter o povo na alienação da hierarquia e do servilismo. Hedges não está dizendo outra coisa quando explica que “apenas as elites dominantes e seus canais midiáticos” incitavam o OWS a fazer que suas demandas fossem reconhecidas. Apresentar reivindicações suporia admitir a legitimidade de seu adversário, a saber, o Estado norte-americano e seus amigos, os banqueiros. Em suma, um movimento de protesto que não formula nenhuma exigência seria a obra-prima última da virtude democrática.
Reside justamente aí a contradição fundamental dessa campanha. Ao que tudo indica, protestar contra Wall Street em 2011 implicava protestar também contra as manobras financeiras que levaram à grande recessão; contra o poder político que tinha salvado os bancos; contra a prática delirante dos primese bônus que tinham metamorfoseado as forças produtivas para o 1% mais rico. Todas essas calamidades têm origem na desregulação e na queda dos impostos – em outras palavras, na filosofia de emancipação individual que, pelo menos na retórica, não é contrária às práticas libertárias do OWS.
Inútil ter assistido a cursos de “pós-estruturalismo que leva ao anarquismo” para entender como inverter a tendência: reconstituir um Estado regulador competente. Lembremos o que diziam os manifestantes do OWS nos célebres primeiros dias de setembro de 2011: retomemos a Lei Glass-Steagall de 1933, que separa os bancos de poupança e os bancos de investimento. Viva o “Estado obeso”! Viva a segurança!
Mas não é assim que se atiça a imaginação de seus contemporâneos. Como animar um carnaval quando se reivindicam especialistas contábeis e de administração fiscal? Deixando as coisas para mais tarde. Evitando reclamar de medidas concretas. Reivindicar é admitir que os adultos afetados e sem humor retomem a batuta e acabem com a recreação. Essa escolha tática realmente funcionou no início, mas também fixou uma data de perempção a todo o movimento. Ao proibir reivindicar qualquer coisa, o OWS se fechou naquilo que Christopher Lasch chamava – em 1973 – de “culto da participação”. Ou seja, um protesto cujo conteúdo se resume à satisfação de ter protestado.
Em suas declarações de intenção, os acampados do Zuccotti Park celebravam em alto e bom som a vox populi. Na prática, contudo, seu centro de gravidade pendia para apenas um lado, o do pequeno mundo universitário. Os militantes citados nos livros nem sempre revelam sua identidade socioprofissional, mas, quando o fazem, se denominam estudantes recém-formados, ou professores.
É preciso celebrar a mobilização do mundo universitário; a sociedade precisa escutar essa voz. Em tempos de crescimento vertiginoso das taxas de escolaridade, de endividamentos estratosféricos para a obtenção de um diploma universitário, de doutorandos explorados de forma sem-vergonha, as pessoas afetadas têm completa razão em protestar.6 Eles deveriam lutar contra o sistema, exigir um controle rígido das taxas de matrícula. Nas manifestações que abalaram o Québec no primeiro semestre, quando uma parte importante da população apoiou a exigência estudantil de uma educação acessível para todos, o movimento ganhou. Os estudantes obtiveram quase tudo o que reivindicaram. O protesto social fez as portas da universidade se abrirem.
Mas é quando se produz exatamente o inverso, ou seja, quando a discussão acadêmica da alta cultura se torna um modelo de luta social, que o problema aparece. Por que o OWS inspira em seus admiradores a necessidade de se expressar em um jargão ininteligível? Por que tantos militantes sentiram a necessidade de deixar seus trabalhos para participar de debates de salão entre eruditos?7 Por que outros ainda decidiram reservar seus testemunhos a revistas de acesso restrito, como American Ethnologist ouJournal of Critical Globalisation Studies? Por que um panfleto concebido para galvanizar as tropas do OWS está cheio de declarações enigmáticas do tipo: “Nosso ponto de ataque se situa nas formas de subjetividade dominantes produzidas no contexto das crises sociais e políticas atuais. Dirigimo-nos a quatro figuras subjetivas – o endividado, o midiatizado, o segurado e o representado – que estão em via de empobrecimento e cujo poder de ação social está mascarado ou mistificado. Consideramos que os movimentos de revolta e de rebelião nos permitem não apenas recusar regimes repressivos sofridos por essas figuras subjetivas, mas também inverter essas subjetividades perante o poder”?8 E por que, alguns meses depois de ter ocupado o Zuccotti Park, vários militantes julgaram indispensável criar sua própria revista universitária com pretensão teorizante, aOccupy Theory, destinada a compilar ensaios impenetráveis que demonstram a futilidade de qualquer teorização? É assim que se constrói um movimento de massa? Obstinando-se a usar uma linguagem que quase ninguém entende?
Já sabemos a resposta: antes que um protesto se torne movimento social de grande amplitude, seus protagonistas devem refletir, analisar, teorizar. O fato é que, desse ponto de vista, o OWS oferece material para alimentar meio século de lutas – sem, contudo, ser capaz de tirar a sua própria do impasse.
Rebuscado, verborrágico e professoral
O movimento Ocupar Wall Street realizou coisas excelentes. Encontrou um bom slogan, identificou o inimigo certo e captou a imaginação do público. Deu forma a uma cultura de protesto democrática, estabeleceu laços com sindicatos de trabalhadores, um passo crucial no caminho das lutas sociais. Retomou o vigor da noção de solidariedade, virtude cardinal da esquerda. Mas os reflexos universitários rapidamente ganharam um lugar preponderante e transformaram o OWS em um laboratório usado por seus sábios para validar suas teorias nebulosas. Os acampamentos não abrigavam somente militantes preocupados em transformar o mundo: também serviram de arena para a promoção individual de alguns carreiristas.
E essa ainda é uma forma otimista de apresentar as coisas. A maneira pessimista consistiria em abrir o último livro de Michael Kazin, American dreamer, e concordar com ele que, desde a Guerra do Vietnã e do combate pelos direitos civis na década de 1960, nenhum movimento progressista se conectou com o grande público norte-americano – à exceção da campanha contra o apartheidna década de 1980. É certo que na época do Vietnã o país estava repleto de esquerdistas, principalmente nas universidades. Porém, desde então, estudar a “resistência” se transformou em um meio garantido de melhorar as perspectivas de carreira; muitas vezes, o tema chegou a ser conteúdo de disciplinas optativas. Contudo, por mais erudita que seja no plano intelectual, a esquerda continua, de fracasso em fracasso, sem conseguir estabelecer uma causa comum com o povo.
Essa incapacidade se explica, talvez, pela sobrerrepresentação de uma profissão cujo modo de operar é deliberadamente rebuscado, ultra-hierarquizado, verborrágico e professoral, pouco propício a um processo de aglutinação. Ou talvez resulte da persistência da esquerda em desprezar o homem da rua, em particular quando pode ser acusado de ter votado mal ou cometido qualquer pecado político. Ou, ainda, pode ser o desmoronamento do aparelho industrial que torna muitos movimentos sociais obsoletos. Mas, de qualquer forma, não será nas publicações sobre o OWS que encontraremos as respostas.
Os ativistas anti-Wall Street não gostam – está claro – de seus homólogos do Tea Party. Em seu entendimento, aparentemente, eles não são pessoas de verdade, como se outros princípios biológicos se aplicassem à sua espécie. A filósofa Judith Butler, professora da Universidade de Columbia, evoca com repugnância uma reunião do Tea Party durante a qual os indivíduos celebraram a morte próxima de vários doentes desprovidos de seguro-saúde. “Em que condições econômicas e políticas emergem formas prazerosas de crueldade?”, pergunta a professora.
É uma boa questão. Dois parágrafos depois, contudo, Judith muda de tema para celebrar a admirável decisão do OWS de não reivindicar nada, o que gera um ponto de partida para uma teoria de alto voo: uma multidão que protesta é espontânea e intrinsecamente liberacionista. “Quando os corpos se reúnem para manifestar a indignação e afirmar a existência plural no espaço público, também expressam reivindicações mais vastas”, escreve. “Reivindicam ser conhecidos e valorizados; reivindicam o direito de aparecer e de exercer liberdade; reivindicam uma vida vivível.”9 É preciso, assim como o papel à música: os descontentes que saem às ruas o fazem necessariamente para afirmar a existência plural de seu corpo, por toda parte e sempre – a menos que pertençam ao grupo mencionado dois parágrafos acima.
Os dois movimentos, contudo, apresentam algumas semelhanças. Compartilham, por exemplo, a mesma aversão obsessiva pelos planos de salvamento de 2008, qualificados pelos dois lados de “capitalismo de conivências”. Ambos se expressam ocupando os espaços públicos; destinaram um lugar importante aos partidários de Ron Paul, o líder da corrente “libertária” do Partido Republicano. Até a máscara do Anônimo (o vingador solitário do filme V de Vingança) circulou nos dois campos.
No plano tático, também há analogias. O OWS e o Tea Party permaneceram com reivindicações fluidas, para abarcar o mais amplamente possível a opinião pública. Os dois grupos insistiram com a mesma ênfase sobre as persecuções das quais se consideravam vítimas. Do lado dos acampados, insistiu-se sobre as brutalidades policiais. Em um relato de 45 páginas,10 Will Bunch narra em detalhes a repressão cega e a prisão em massa ocorridas em uma manifestação sobre a ponte do Brooklyn. Do lado do Tea Party, é o suplício infligido pelos “meios de comunicação de esquerda” e suas acusações de racismo que alimentam o martirológio coletivo.11
Libertarismo preguiçoso e narcisista
A ausência de dirigentes é outro ponto comum entre os dois campos. No manifesto do Tea Party redigido em 2010 por Richard (“Dick”) Armey, ex-parlamentar republicano do Texas, figura um capítulo intitulado “Somos um movimento de ideias, não de líderes”. O raciocínio desenvolvido pelo Tea Party não destoaria dos teóricos do OWS: “Se eles [seus adversários] soubessem quem movimenta o cenário, poderiam atacá-lo. Poderiam massacrar a oposição desagradável do Tea Party”.
Ao mergulhar nas referências literárias do Tea Party, também é possível encontrar traços da filosofia do OWS relativos à recusa de qualquer reivindicação. Vejamos o que diz o filósofo Ayn Rand, cujas teorias “objetivistas” serviram de base moral para a desregulação capitalista.12 Em A greve, sua grande obra romanesca publicada em 1957, que vendeu 7 milhões de exemplares nos Estados Unidos, as “reivindicações” são assimiladas pelo mundo nocivo do poder político, que as formula em nome de seus administrados preguiçosos e improdutivos. Os empresários, por outro lado, negociam contratos: atuam na harmonia dos laços consensuais estabelecidos pelo livre mercado. A ousadia aparece no momento em que o personagem John Galt, que fez greve contra o flagelo do igualitarismo, dirige seu discurso ao governo norte-americano: “Não temos nenhuma reivindicação para apresentar, nenhuma disposição para negociar, nenhum compromisso de atingir qualquer objetivo. Vocês não têm nada a oferecer, não precisamos de vocês”.
Fazer greve sem reivindicar nada? Sim, porque reivindicar qualquer coisa ao Estado seria reconhecer sua legitimidade. Para definir essa atitude, Rand forjou uma expressão sofisticada: “a legitimação da vítima”. Engajado na realização de seu potencial pessoal, o patrão – a “vítima”, na pitoresca visão de mundo do autor – recusa a bendição de uma sociedade que o tiraniza com impostos e regras. O bilionário esclarecido não quer ter de fazer qualquer coisa pelos larápios e parasitas que povoam uma sociedade nivelada por baixo.
O que fariam, então, esses precursores do “1%”? Construiriam uma comunidade-modelo no coração do Velho Mundo. Mas os biliardários sofredores imaginados por Rand não organizam assembleias gerais nos jardins públicos; em vez disso, se retiram em um vale deserto do Colorado, onde criam um capitalismo paradisíaco, não coercitivo, cujo capital não deve nada ao Estado.
Uma última semelhança. A astúcia ideológica do Tea Party consistiu, certamente, em desviar a fúria popular contra Wall Street e reorientá-la contra o Estado.13 O OWS fez o mesmo, mas de modo mais abstrato e teórico. É possível identificar essa atitude, por exemplo, ao decifrar o argumento do antropólogo Jeffrey Juris: “As ocupações colocaram em questão o poder soberano do Estado de regular e controlar a distribuição dos corpos no espaço, [...] notadamente pela aparição de espaços urbanos particulares como os parques públicos e praças, e pela requalificação do lugar da assembleia pública e da expressão democrática”.14 Esse tipo de retórica ilustra um ponto de convergência entre o OWS e a esquerda universitária – a acusação do Estado e de seu poder de “regular” e “controlar” tudo, mesmo que, no caso de Wall Street, o problema resida, antes, no fato de que o Estado não regule ou controle coisa alguma. Com algumas considerações menores, o texto poderia ser lido como um panfleto libertário contra os espaços verdes.
Já que nenhum dos livros citados aqui se preocupou em estar de acordo, ou formar uma unidade, não há nenhuma teoria expressa que possa explicá-los. Então, permitam-me propor a minha.
A razão pela qual o OWS e o Tea Party às vezes parecem tão próximos é que ambos tomam emprestado esse libertarismo um pouco preguiçoso e narcisista que impregna nossa visão de protesto social, desde adolescentes do Disney Channel em busca deles mesmos até os pseudoanarquistas que vandalizam um Starbuck’s. Todos imaginam que eles se revoltam contra “o Estado”. Está no genoma de nossa época, ao que tudo indica.
Quando veio o sucesso, o Tea Party engavetou seus discursos fanfarrões sobre a organização horizontal. As mentiras serviram para atrair clientes. Esse movimento não tinha pensadores pós-estruturalistas, mas dispunha de dinheiro, redes e o apoio de um grande canal de televisão (Fox News). Também não tardou em produzir dirigentes, reivindicações e um alinhamento frutífero com o Partido Republicano. O Ocupar Wall Street não foi por esse caminho: de fato, acreditava na horizontalidade. Mas depois de conhecer um sucesso estrondoso, desmoronou.
Thomas Frank
Jornalista, autor de Pourquoi les pauvres votent à droite. Comment les conservateurs ont gagné le coeur des Etats-Unis (et celui des autres pays riches) [Por que os pobres votam na direita. Como os conservadores ganharam o coração dos Estados Unidos (e o dos outros países ricos), Agone, Marselha, 2008. Acaba de publicar Pity the billionaire: the hard-times swindle and the unlikely comeback of the right [Pobre bilionário: o embuste dos tempos difíceis e o improvável retorno da direita], Metropolitan Books, Nova York, 2012.
–
1 Por exemplo, Todd Gitlin, Occupy nation: the roots, the spirit and the promise of Occupy Wall Street[Nação ocupada: as raízes, o espírito e a promessa do movimento Ocupar Wall Street], HarperCollins, 2012; Occupying Wall Street: the inside story of an action that changed America[Ocupando Wall Street: a história dos bastidores de uma ação que mudou a América], diversos autores, Haymarket, 2012.
2 Sarah van Gelder e a equipe da Yes Magazine, This changes everything: Occupy Wall Street and the 99% Movement [Isto muda tudo: Ocupar Wall Street e o Movimento dos 99%], Berrett-Koehler, 2012.
3 Lenny Flank, Voices from the 99 percent: an oral history of the Occupy Wall Street movement[Vozes dos 99%: uma história oral do movimento Ocupar Wall Street], Red and Black, 2011.
4 Chris Hedges e Jo Sacco, Jours de destruction, jours de révolte [Dias de destruição, dias de revolta], Futuropolis, 2011.
5 Ler Robert Zaretsky, “Au Texas, le Tea Party impose son style” [No Texas, o Tea Party impõe seu estilo], Le Monde Diplomatique, nov. 2010.
6 Ler Christopher Newfield, “La dette étudiante, une bombe à retardement” [A dívida estudantil, uma bomba-relógio], Le Monde Diplomatique, set. 2012.
7 Situação que observamos também em outros lugares. Ler Pierre Rimbert, “La pensée critique dans l’enclos universitaire” [O pensamento crítico na clausura universitária], Le Monde Diplomatique, jan. 2011.
8 Antonio Negri e Michael Hardt, “Take up the baton” [Pegue o bastão], Jacobin, maio 2012. Disponível em: .
9 Judith Butler, “From and against precarity” [De e contra a precariedade], dez. 2011. Disponível em: .
10 Will Bunch, October 1, 2011: the battle of the Brooklyn bridge[1º de outubro de 2011: a batalha da ponte do Brooklyn], Kindle Singles, 2012.
11 Por exemplo, Michael Graham, That’s no angry mob, that’s my mom: team Obama’s assault on Tea-Party [Esta não é uma multidão em cólera, é minha mãe: o ataque do time de Obama ao Tea Party], Talk-Radio Americans, Regnery Publishing, 2010.
12 Ler François Flahaut, “La philosophe du Tea Party” [A filósofa do Tea Party]; “Où va l’Amérique” [Para onde vai a América], Manière de Voir, n.125, out./nov. 2012.
13 Ler “Et la droite américaine a détourné la colère populaire” [E a direita norte-americana desviou a cólera popular], Le Monde Diplomatique, jan. 2012.
14 Jeffrey S. Juris, “Reflections on #Occupy everywhere: social media, public space and emerging logic of aggregation” [Reflexões sobre #Ocupar qualquer espaço: mídia social, espaço público e a lógica emergente da agregação], American Ethnologist, v.39, n.2, maio 2012.