Estreou no último domingo (22), na HBO e na HBO Max, a terceira temporada de A Era Dourada (The Gilded Age, no original). Criada por Julian Fellowes — o mesmo de Downton Abbey —, a série continua mergulhando na Nova York do fim do século XIX, um período marcado pelo embate entre a velha aristocracia e os novos-ricos da industrialização.
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Entre os grandes trunfos da produção está seu figurino. Mais do que uma reconstituição estética da era vitoriana, as roupas em A Era Dourada funcionam como personagens silenciosos, carregadas de informação histórica, simbologia social e impacto dramático. Por trás dessas criações está a figurinista Kasia Walicka-Maimone, que orquestra um espetáculo visual com rigor artesanal, sensibilidade narrativa e uma pesquisa histórica obsessiva.
A figurinista por trás do luxo
Nascida na Polônia e formada pelo renomado Fashion Institute of Technology (FIT), em Nova York, Walicka-Maimone atua há décadas na criação de figurinos para teatro, dança, cinema e televisão. Seu portfólio inclui produções como I Know This Much Is True (Dupla Personalidade), Bridge of Spies (Ponte dos Espiões), Moonrise Kingdom e The Goldfinch (O Pintassilgo).
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“Cada um desses trabalhos representa um universo único”, afirmou em entrevista à Revista Emmy, publicação oficial da Television Academy, organização responsável pelo "Oscar da televisão", o Emmy. Ela considera A Era Dourada sua primeira imersão em um período verdadeiramente revolucionário para a história da moda.
Fontes de inspiração: dos museus às telas
A criação do figurino da série é resultado de uma pesquisa meticulosa conduzida por Walicka-Maimone e sua equipe. O objetivo era duplo: recriar com fidelidade o vestuário da elite novaiorquina do final do século XIX e traduzi-lo para a linguagem televisiva atual.
Foram consultadas fotografias originais da década de 1880, retratando membros da aristocracia em diferentes contextos — desde eventos formais até momentos íntimos. A equipe também mergulhou nos acervos do Metropolitan Museum of Art e do Museum at FIT, onde vestidos, chapéus, sapatos e etiquetas de costureiras foram examinados minuciosamente.
Entre as referências artísticas, destacam-se os retratos sofisticados de John Singer Sargent, cujos quadros inspiraram a escolha de tecidos luxuosos, caimentos realistas e paletas ousadas — especialmente para Bertha Russell. Já as obras da impressionista Mary Cassatt, com suas cenas do cotidiano feminino, serviram de inspiração para figurinos mais sensíveis, usados em momentos domésticos de personagens como Marian Brook e Peggy Scott.
A equipe também consultou coleções de moda histórica em instituições europeias, como o Victoria and Albert Museum (Londres) e o Palais Galliera (Paris), construindo um repertório visual que transcende fronteiras e reforça o caráter cosmopolita da elite retratada.
Quinta Avenida como passarela
Com mais de 40 mil referências visuais arquivadas, a figurinista transformou a Nova York da série em uma verdadeira vitrine de luxo. “A cidade era uma passarela”, afirma Walicka-Maimone. “As mulheres desfilavam várias vezes ao dia, como se cada rua fosse uma vitrine do seu prestígio.”
Essa grandiosidade se traduz em números: até o final da segunda temporada, foram confeccionados mais de 1.200 vestidos femininos, mil ternos masculinos, 750 chapéus femininos, 400 chapéus masculinos e 4 mil pares de sapatos — todos desenhados a partir de aquarelas e feitos sob medida por costureiros dos Estados Unidos e da Europa.
Vestindo o poder: quem é quem pela roupa
O figurino em A Era Dourada não apenas identifica, mas define os personagens. Bertha Russell (Carrie Coon), por exemplo, é a nova rica determinada a conquistar espaço na elite. Seus vestidos dramáticos e coloridos, como o vermelho com flores azuis na inauguração da Ponte do Brooklyn, são armas visuais de ascensão.
Agnes van Rhijn (Christine Baranski), guardiã da velha aristocracia, veste-se com tons escuros, tecidos encorpados e cortes datados. Já Marian Brook (Louisa Jacobson), recém-chegada do interior, usa florais delicados e tons suaves que expressam sua ingenuidade.
Elite negra do Brooklyn
A jornalista negra Peggy Scott (Denée Benton), personagem fictícia, tem figurinos que fogem do estereótipo, desenvolvidos com consultoria da historiadora Erica Armstrong Dunbar.
Dunbar é professora da Universidade Rutgers (EUA) e uma referência em estudos afro-americanos, história das mulheres e escravidão. É autora de livros premiados, como Never Caught, que narra a história de Ona Judge, mulher negra que fugiu da escravidão de George Washington — obra finalista do National Book Award.
Sua colaboração com a HBO foi fundamental para dar profundidade e veracidade à trajetória de Peggy. A consultoria envolveu uma extensa pesquisa sobre o vestuário da elite negra do Brooklyn na década de 1880 — um grupo pouco representado na ficção histórica. Dunbar orientou a figurinista da série a evitar clichês visuais, propondo roupas elegantes, com cortes refinados e tecidos sofisticados, mas sem imitar o luxo ostentatório da elite branca.
Mais do que moda, os figurinos de Peggy traduzem sua posição social, sua independência e seu protagonismo. A escolha das roupas também foi pensada para destacar o papel de mulheres negras educadas que, no pós-Reconstrução dos EUA, atuavam como professoras, jornalistas ou ativistas, construindo trajetórias inspiradoras em meio a uma sociedade ainda profundamente marcada pelo racismo.
Graças ao trabalho de Erica Dunbar, Peggy Scott não é apenas uma exceção na TV: ela é um exemplo de como a ficção pode se tornar mais fiel à história — e mais rica em diversidade — quando guiada por pesquisa rigorosa e compromisso com a representação digna.
Técnica e sofisticação em cada detalhe
Sedas, brocados, tule, rendas e chapéus esculturais compõem o guarda-roupa da série. Alguns adereços eram tão grandes que os atores não passavam pelas portas do set. “Às vezes, temos que frear a ambição por razões práticas”, brinca Kasia.
A paleta vibrante da série deve-se à invenção dos corantes sintéticos, popularizados no século XIX. Tons como lilás, azul aço e vermelho escarlate refletem a opulência da época e desmentem a ideia de que a moda vitoriana era apenas austera.
Moda como dramaturgia
Para Walicka-Maimone, figurino é narrativa. “Não estamos apenas copiando roupas antigas — estamos construindo personagens.” Essa abordagem garantiu à série indicações ao Emmy e ao Costume Designers Guild Awards.
Cada cena é um banquete visual — e também uma aula de história. A estética da série dialoga diretamente com os códigos da era vitoriana: o luxo, a rigidez moral, a separação entre público e privado, o controle dos corpos femininos.
A estética vitoriana: o pano de fundo de um mundo em transformação
Você já reparou na riqueza de detalhes nos cenários de séries como A Era Dourada e Downton Abbey? Mais do que obras assinadas por Julian Fellowes, essas produções compartilham um mesmo universo visual: cortinas pesadas, vestidos volumosos, móveis entalhados e um ar de luxo clássico e cerimonioso.
Tudo isso é herança direta da chamada estética vitoriana — um estilo marcante que dominou o século XIX durante o extenso reinado da Rainha Vitória, no Reino Unido (1837–1901), e que ainda hoje inspira o cinema, a moda e o design contemporâneos.
A era vitoriana foi um período de intensas contradições. Enquanto o Império Britânico expandia sua influência global e colhia os frutos da Revolução Industrial, sua sociedade se apegava a valores conservadores, como a moral cristã, a família tradicional e uma rígida divisão de papéis entre homens e mulheres. Era um tempo de progresso técnico, mas também de forte contenção dos costumes.
Na decoração, a sobriedade não era uma virtude. Pelo contrário: os lares vitorianos exibiam uma profusão de ornamentos. Papéis de parede florais e coloridos, móveis robustos e entalhados, espelhos, vasos, bibelôs, tapeçarias — tudo se acumulava em ambientes densamente decorados. Quanto mais enfeitada a casa, maior a demonstração de status. Era assim que a nova classe média — em ascensão com a industrialização — exibia sua recém-conquistada posição social.
A vestimenta feminina refletia essa lógica: corsets apertadíssimos moldavam cinturas minúsculas, enquanto saias armadas, golas altas e mangas longas compunham silhuetas imponentes e recatadas. A estética era exuberante, mas o conforto feminino era sacrificado em nome de uma imagem de pureza, disciplina e submissão. O corpo era moldado não só pelo tecido, mas pelos valores patriarcais que ele encarnava.
Os homens, por sua vez, adotavam ternos escuros, coletes, cartolas e gravatas — trajes que expressavam sobriedade, autocontrole e respeitabilidade.
Na cultura vitoriana, o lar era visto como o templo da moral familiar — e a mulher, seu "anjo protetor". Ela devia ser recatada, dedicada ao marido e aos filhos, sempre presente em casa. A separação entre os espaços era rígida: os homens habitavam o mundo público, do trabalho e da política; as mulheres, o privado, do lar e da domesticidade. Essa lógica se manifestava até na arquitetura, com ambientes domésticos projetados de acordo com o gênero.
A arte vitoriana também foi um instrumento de reforço moral. Na literatura, autores como Charles Dickens e George Eliot narravam dilemas sociais e familiares com finais edificantes. Já nas artes visuais, prevaleciam cenas domésticas idealizadas, que exaltavam os valores da ordem e da virtude.
Ainda assim, surgiram fissuras nesse discurso dominante. O movimento pré-rafaelita, por exemplo, buscou maior liberdade estética, sensualidade e expressividade, flertando com temas místicos e eróticos. A literatura gótica vitoriana revelou o lado sombrio da época — em obras como Drácula, O Retrato de Dorian Gray e Frankenstein, nas quais desejo, medo, repressão e transgressão se entrelaçam.
Na arquitetura, o estilo vitoriano combinava influências neogóticas e medievais com o uso de novos materiais, como ferro fundido e vidro. O resultado eram construções imponentes, repletas de torres, vitrais coloridos e ornamentos — um casamento entre a nostalgia histórica e o entusiasmo pelo progresso tecnológico.
Essa tensão entre contenção e desejo também marcava a moda. Embora o discurso público exaltasse a decência e a obediência, os vestidos sussurravam uma sensualidade contida: rendas finas, tecidos translúcidos, laços apertados, cores dramáticas. Era uma elegância construída sobre o paradoxo entre repressão e sedução.
Não à toa, a estética vitoriana segue viva no imaginário coletivo. Ela inspira movimentos como o steampunk, influencia a moda gótica e aparece constantemente em filmes, séries e romances. Produções como A Era Dourada atualizam esse legado, resgatando não apenas os visuais deslumbrantes, mas também os dilemas morais, sociais e simbólicos de uma época em que vestir-se era, antes de tudo, uma forma de poder.
A moda da elite brasileira no século XIX
No final do século XIX, período retratado em A Era Dourada, as roupas da elite brasileira comunicavam status, civilização e distinção social. Mais do que adorno ou vaidade, o vestuário era uma linguagem de poder — uma forma de marcar hierarquias e naturalizar desigualdades. Como analisa Gilda de Mello e Souza em O Espírito das Roupas (1998), a moda da alta sociedade brasileira era profundamente simbólica: suas formas, texturas e regras funcionavam como códigos de conduta social.
Inspirada nos modelos franceses, essa moda refletia o desejo das elites de se aproximarem dos padrões europeus. Vestir-se “como em Paris” era uma forma de se distinguir da população pobre e de afirmar pertencimento à chamada “civilização ocidental”. Tecidos finos, perfumes importados, rendas, sedas e acessórios luxuosos compunham um visual cuidadosamente controlado.
As mulheres da elite usavam vestidos longos e pesados, marcados por espartilhos que estreitavam a cintura e por armações internas que expandiam o volume das saias. Golas altas, mangas compridas e bordados delicados completavam a composição. Esses trajes impunham disciplina ao corpo e limitavam os movimentos — o que, simbolicamente, reforçava valores como recato, submissão e docilidade. Como destaca Gilda, essas roupas “educavam o corpo”, condicionando posturas, gestos e até formas de caminhar e sentar.
A aparência era moldada para expressar pureza e decoro. A moda feminina não era pensada para o conforto, mas para produzir uma imagem idealizada da mulher: bela, frágil, obediente. O corpo era domado para caber nos padrões morais e estéticos do patriarcado oitocentista.
Já os homens vestiam ternos escuros com coletes, camisas engomadas, gravatas e cartolas. A sobriedade dos trajes masculinos contrastava com a ornamentação feminina, refletindo a divisão social entre razão e emoção, público e privado, poder e delicadeza. A masculinidade se expressava por meio do autocontrole e da funcionalidade; a feminilidade, pelo enfeite e pela contenção.
A ostentação era parte essencial do ritual social. As roupas eram feitas para serem vistas e admiradas — em eventos públicos como missas, jantares, bailes, passeios de carruagem ou idas ao teatro. A rua e o salão funcionavam como vitrines simbólicas, onde as famílias da elite exibiam seu prestígio por meio da indumentária. A moda, assim, era também espetáculo e vigilância: quem não se vestia conforme as normas era rapidamente identificado como forasteiro, decadente ou “fora do lugar”.
No contexto brasileiro, as mulheres não apenas usavam as roupas — elas eram usadas por elas. O vestuário feminino funcionava como extensão da honra da família, especialmente dos homens que a lideravam. A mulher era o espelho do prestígio paterno ou conjugal, e sua imagem pública era rigorosamente controlada. A roupa não exprimia tanto uma individualidade quanto um papel social prescrito.
Ao analisar esse sistema de representação, Gilda revela como a moda se articulava com as estruturas de classe, gênero e poder. No século XIX, o vestir não era uma escolha neutra ou pessoal: era um ato carregado de significado político e cultural. Cada tecido, cada corte, cada ornamento contava uma história sobre quem a pessoa era, o lugar que ocupava e os limites que não podia ultrapassar.