As Angels da Victoria's Secret marcaram a indústria da moda dos anos 1990. Perfeição física, glamour e sensualidade com padrões de beleza irreais e restritivos.
Eis que a quarta onda do feminismo, que ganhou força a partir dos anos 2010, mudou a percepção de muitas mulheres, consumidoras, a partir de críticas ao padrão de beleza tradicional, frequentemente imposto pela mídia e pelas grandes marcas de moda.
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As feministas colocaram a Victoria's Secret e suas Angels na parede ao enfatizarem temas como a inclusão, o empoderamento feminino, a interseccionalidade e a diversidade de corpos e exigirem maior representatividade.
O resultado é que o espetáculo anual da marca de luxo começou a perder audiência, especialmente com a maré feminista. Em 2019, após críticas relacionadas à falta de diversidade e inclusividade, a Victoria's Secret decidiu suspender o desfile.
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A marca passou por uma série de reestruturações nos anos seguintes e, em 2023, anunciou que o evento retornaria neste 2024.
O retorno das Angels
Na última terça-feira, 15 de outubro, as Angels voltaram à passarela para o Victoria's Secret Fashion Show 2024. O desfile realizado em Nova York, após um hiato de seis anos, trouxe de volta o glamour, as plumas, os brilhos e as icônicas asas.
O retorno foi transmitido ao vivo, inclusive pelo perfil da marca no Instagram, com a participação de grandes nomes da moda, como Tyra Banks, que desfilou pela primeira vez desde 2005, e Paloma Elsesser, que se tornou a primeira modelo plus size a participar do desfile. Houve ainda a estreia da brasileira Valentina Sampaio, primeira modelo trans a ser contratada pela marca.
Entre as atrações musicais, destaque para Cher, Tyla e a estrela do K-pop Lisa.
A marca bem que tentou mais diversidade e inclusão nesse revival, mas ainda enfrenta críticas sobre se essas mudanças são realmente substanciais.
Não havia modelos de diferentes idades, com deficiência, e apenas uma transgênero e uma plus size. Faltou representatividade racial com variedade de negras, asiáticas e indígenas.
Poucos dias antes do retorno do Victoria's Secret Fashion Show, a marca anunciou o último detalhe de sua renovação: a estreia de Joseph Altuzarra como "designer residente".
Segundo a Vogue, Altuzarra passará um ano criando peças para a Victoria's Secret — e não apenas lingerie ou pijamas. As primeiras criações do estilista foram apresentadas na passarela nesta terça-feira.
O estilista franco-estadunidense ficou conhecido por sua marca de luxo Altuzarra, lançada em 2008. Nascido em Paris, estudou em várias cidades, incluindo Londres, antes de se mudar para Nova York.
Altuzarra colaborou com nomes como Marc Jacobs e Givenchy. Seus designs são famosos por combinar sofisticação com sensualidade.
Auge das Angels
No auge de sua popularidade, o desfile anual da marca era um evento cultural que ia muito além da moda. Diferentemente de outros eventos do ramo, ele conseguia atrair uma audiência global, composta por milhões de pessoas fora do "universo fashion".
Para as modelos, participar do show era um marco na carreira, e conquistar as famosas "asas" era considerado um selo de aprovação da indústria. Grandes nomes como as brasileiras Gisele Bündchen e Adriana Lima estiveram nessa passarela para alçar suas posições de supermodelos.
Além das supermodelos, o desfile sempre contou com apresentações musicais de artistas de renome, como Taylor Swift, Ariana Grande e Lady Gaga. Em 2001, até o tenor Andrea Bocelli participou do evento, cantando ao vivo, o que destacou ainda mais o glamour do show.
Novos tempos
A partir desta quarta onda do feminismo, a Victoria's Secret passou a ser alvo de críticas crescentes por promover uma visão limitada e irrealista do corpo feminino, com foco em um padrão de magreza extrema e sensualidade padronizada.
Esse padrão contrastava com as demandas do novo feminismo, que exigia um abandono da objetificação do corpo feminino e uma abordagem mais inclusiva e respeitosa em relação à diversidade de corpos e à sexualidade.
Além disso, escândalos envolvendo ex-executivos da marca, incluindo acusações de sexismo e comportamento inadequado, também contribuíram para a decisão da empresa de interromper seus desfiles.
A marca estava fora de sintonia com os novos valores de empoderamento e inclusão, que passaram a ser promovidos por marcas concorrentes como a Savage X Fenty, de Rihanna.
O hiato da marca foi uma resposta à pressão social e às críticas feministas, que exigiam que a indústria da moda se ajustasse aos novos padrões de justiça social e inclusão.
O importante é ter lucro
Tenha ou não sucesso em seu retorno ao "mundo da moda" depois da reforma, fato é que a Victoria's Secret segue a bula capitalista, que transforma valores como diversidade, inclusão e empoderamento em mercadorias para obter lucro.
Não é por acaso que o auge da estética das Angels, nos anos 1990, refletia diretamente o neoliberalismo ao exaltar um ideal de beleza padronizado, focado em corpos magros e perfeitos, que se alinhava às demandas capitalistas de consumo daquele período.
No capitalismo, em qualquer que seja o modelo de gestão, o corpo feminino é transformado em uma mercadoria para promover a busca incessante por um padrão de beleza que responda às demandas sociais.
Nos anos 1990, eram todas magras, agora têm que representar todos os tipos de consumidoras. Esse padrão – que está sempre mudando – gera lucros para as indústrias da moda, cosméticos e fitness, que vendem a promessa de conformidade estética e sucesso pessoal.
Beleza feminina como commodity
A ideia da beleza feminina como uma commodity do capitalismo é amplamente discutida por especialistas em diversas áreas, como sociologia, antropologia, e estudos feministas.
Esses debates refletem sobre como a beleza é transformada em um produto negociável, em um contexto que combina normas culturais e a lógica de consumo do capitalismo.
A filósofa feminista Susan Bordo, em sua obra "Unbearable Weight: Feminism, Western Culture, and the Body", sem edição em português, argumenta que a beleza, especialmente a feminina, foi moldada pelas demandas do mercado capitalista.
Para ela, o corpo da mulher tornou-se uma "superfície de inscrição" onde se expressam as normas culturais e econômicas. Bordo sugere que a pressão para que as mulheres atendam a padrões de beleza irreais está intimamente ligada a interesses de mercado, no qual a aparência idealizada gera lucros para indústrias como a da moda, cosméticos, dietas e cirurgias estéticas.
Beleza como controle
Outra escritora, Naomi Wolf, em seu livro "O Mito da Beleza", argumenta que a beleza é usada como uma forma de controle sobre as mulheres em sociedades capitalistas.
Ela afirma que o "mito da beleza" é uma construção social mantida por indústrias que lucram com a insegurança feminina, criando uma dependência de produtos e serviços que prometem conformidade com os padrões de beleza.
Wolf defende que, ao tratar a beleza como uma commodity, o capitalismo perpetua a exploração das mulheres ao transformá-las em consumidoras de uma indústria que exige uma aparência cada vez mais inatingível.
Já a socióloga britânica Angela McRobbie introduz o conceito de "feminilidade neoliberal", que explora como a cultura contemporânea valoriza a autoapresentação e a busca pela beleza como indicadores de sucesso e autonomia.
Em seu trabalho, McRobbie argumenta que o capitalismo neoliberal usa a beleza feminina como uma ferramenta de autoempoderamento comercializável, promovendo uma lógica de consumo onde as mulheres são incentivadas a "investir" em si mesmas por meio de cuidados com a aparência. Nesse contexto, a beleza torna-se um produto, vendido como sinônimo de valor e status.
Aparência e consumo
A mídia e a publicidade consolidam a beleza feminina como um produto de consumo. As indústrias de cosméticos, moda e fitness promovem continuamente a ideia de que a aparência física é central para a identidade e o sucesso.
Nesse cenário, o corpo feminino é moldado pelas exigências do mercado, com a beleza sendo constantemente vendida como um ideal que pode ser alcançado com os produtos certos, promovendo um ciclo de consumo perpétuo.
A feminista e crítica cultural bell hooks critica a objetificação das mulheres negras na cultura capitalista, onde a beleza é moldada por normas eurocêntricas e vendida como um ideal universal.
Ela argumenta que o capitalismo explora corpos racializados ao não apenas marginalizar, mas também vender uma visão de beleza que exclui e invisibiliza mulheres que não se encaixam nos padrões convencionais, como mulheres negras, gordas ou de outras etnias. Ela defende que a luta contra a mercantilização da beleza deve incluir a crítica à normatividade racial.
A beleza feminina como commodity do capitalismo é um conceito que reflete como o corpo feminino é explorado por um sistema que transforma normas culturais em produtos de consumo.
Com ou sem diversidade, empoderamento e inclusão, com ou sem asas de anjos, ao promover a beleza como algo a ser comprado e alcançado, o capitalismo cria um ciclo de insegurança e dependência, no qual as mulheres são incentivadas a investir continuamente em sua aparência.
Esse ciclo tóxico limita a liberdade feminina e perpetua desigualdades de gênero, raça e classe.
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