O Grupo Folha contratou dois agentes da repressão para cargos de alta hierarquia durante a ditadura militar, colocando ambos em posições de poder -- o que, em tese, permitiu que obtivessem informações privilegiadas sobre trabalhadores das empresas comandadas por Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira.
Os detalhes fazem parte do recém-lançado A Serviço da Repressão, Grupo Folha e Violações de Direitos Humanos na Ditadura, pela editora Mórula.
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O levantamento sobre o Grupo Folha resultou de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do Ministério Público Federal com a Volkswagen, que admitiu ter violado os direitos de seus trabalhadores durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985).
O dinheiro resultante do TAC permitiu a investigação de outras empresas. Os jornalistas e historiadores Ana Paula Goulart Ribeiro, Amanda Romanelli, André Bonsanto, Flora Daemon, Joëlle Rouchou e Lucas Pedretti conduziram o trabalho sobre o Grupo Folha.
Um dos casos mais relevantes de violação de direitos envolveu a jornalista Rose Nogueira, que foi demitida por "abandono de cargo" quando estava presa na sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em São Paulo.
Rose tinha recém dado à luz e, para esconder que estava em licença maternidade, na ficha funcional dela a data de nascimento do filho foi alterada.
A própria Rose, em depoimento à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", relatou:
Essa aqui é a minha ficha funcional da Folha de S. Paulo. Eu era repórter em 1969, entrei no dia primeiro de agosto de 68, fui presa no 4 de novembro. Eu era funcionária da Folha da Tarde. O meu filho nasceu em 30 de setembro, portanto ele tinha 34 dias quando eu fui presa. Estava de licença maternidade, que até a ditadura respeitava, era de 90 dias na época. A Folha da Tarde noticiou minha prisão por terrorismo. Estava lá todos os dias escrevendo sobre teatro, cinema, era repórter de cultura e variedade. Mas, para poder fazer essa gracinha aqui, de me dar abandono de emprego, que eu só fui saber 20 anos depois, a Folha fez o seguinte: falseou a data do nascimento do meu filho. Meu filho nasceu em 30 de setembro de 1969, no Hospital 9 de Julho, na rua Peixoto Gomide. Eu fiquei internada 24 dias porque tive grande movimento de bexiga no parto. Eu trabalhei até um dia antes dele nascer. E aqui a Folha escreve que meu filho nasceu em 9 de agosto. Meu filho nasceu em 30 de setembro. Para que [o falseamento]? Para me dar o abandono de emprego no começo de dezembro.
Achaque na sede do jornal
Em outro caso bizarro, um militante que não era funcionário da Folha foi levado por um dos delegados empregados do jornal até o saguão da sede do Grupo, na alameda Barão de Limeira, no centro de São Paulo. Lá o pai do preso, que acompanhava o filho, foi alvo de achaque por parte de policiais.
Já era de conhecimento público que Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira "emprestaram" um jornal, a Folha da Tarde, para que a ditadura noticiasse falsos "confrontos" com militantes da resistência -- uma forma de encobrir o assassinato deles. Além disso, forneceu veículos de entrega do jornal para que a repressão fizesse campanas.
Em entrevista à Fórum, Ana Paula Goulart Ribeiro esclareceu que foi bem mais que isso:
Já se sabia [da presença] de muitos policiais, agentes da repressão, militares, em várias instâncias do jornal, não só na Folha da Tarde, que era um caso mais conhecido, mas se espraiando por toda a estrutura do jornal, inclusive em cargos de alta gestão. A gente tem a presença de dois delegados de alta patente, delegados do DOI-Codi, que eram também da alta cúpula, um deles era diretor, por exemplo, de Patrimônio e Segurança da Folha de São Paulo, com sala, secretária, enfim, com utilização de toda a estrutura do jornal. A gente pode dizer que o grupo era um braço dessa repressão, não só pelo empréstimo de carros, mas também por toda essa estrutura que se que se fazia dentro do jornal.
Testado inicialmente como Operação Bandeirantes e financiado por grandes empresários, o Destacamento de Operações de Informações -- Centro de Operações de Defesa Interna, órgão subordinado ao Exército, foi o maior centro de torturas do Brasil. Militantes estimam que dezenas de pessoas morreram na sede do DOI-Codi sob tortura ou foram eliminados depois de passar por lá.
Trechos da entrevista de Ana Paula Goulart Ribeiro foram exibidos nesta sexta-feira, 20, no Fórum Café.
A íntegra ficará disponível na pós-TV Fórum no You Tube.
Beneficiária da ditadura militar
De acordo com o livro, o Grupo Folha se expandiu rapidamente por apoiar o golpe de 1964 e tirar proveito de negócios obscuros depois que a ditadura foi instalada.
Frias e Caldeira compraram o título da Folha de S. Paulo em 1962.
Ana Paula relata:
Em seis anos, ele se transforma num grande império de comunicação, porque o grupo vai adquirindo outros, compra a Última Hora, Notícias Populares, lança a Cidade de Santos, relança a Folha da Tarde, compra a TV Excelsior, depois vai adquirir o controle da Fundação Casper Libero, junto com ela, o jornal Gazeta, a Gazeta Esportiva, a Rádio Gazeta. Nos anos 70 eles lançam a TV Gazeta. É um grupo muito forte, então uma das nossas perspectivas era ver o quanto esse grupo se beneficiou economicamente desse contexto que lhe foi extremamente favorável, o contexto da ditadura militar.
Em contraponto ao Grupo Folha, a Última Hora, que apoiava o governo constitucional de João Goulart, foi à bancarrota depois do golpe de 64. O mesmo aconteceu com o grupo econômico de Mário Wallace Simonsen, produtor de café, dono da empresa aérea Panair do Brasil e da TV Excelsior. Sobre a súbita derrocada da Panair, já foi publicado o livro Pouso Forçado, de Daniel Leb Sasaki. Em resumo, o golpe provocou perdedores e "ganhadores".
Até hoje, os herdeiros de Octávio Frias de Oliveira sustentam que não houve dolo nem na relação com agentes da repressão, nem no trato com os trabalhadores. O MPF abriu um inquérito contra a Folha a partir da apuração em que se baseia o livro.
Ana Paula discorda da versão da História que a família Frias continua "vendendo" aos leitores:
O Grupo Folha sempre disse que, se isso aconteceu, teria acontecido sem a anuência da empresa. É uma das coisas que a gente argumenta muito no livro: tudo isso aconteceu de forma orgânica, sistemática, continuada no tempo -- inclusive pelo cargo de confiança que algumas dessas pessoas tinham com a direção. É impossível que essas coisas acontecessem sem anuência do Frias e do Caldeira.