Em uma longa carta enviada a colegas, Ali Kamel informou nesta terça-feira (29) que deixará após 22 anos a direção-executiva de jornalismo da Globo em 31 de dezembro deste ano.
O texto afirma que ele será substituído por Ricardo Vilela, que atuou como diretor-executivo de jornalismo na emissora. Para acomodar Kamel, a Globo criou a função de coordenador do Conselho Editorial do Grupo Globo.
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"No ano passado, ao completar 40 anos de profissão, decidi conversar com João Roberto Marinho, presidente do Conselho de Administração e do Conselho Editorial do Grupo Globo. Foi no dia 26 de julho – guardo a data porque foi um passo importante na minha vida, claro. Em seguida, conversei também com Paulo Marinho, diretor-presidente da Globo, com quem tenho tido o prazer de trabalhar desde que ele assumiu a posição. Eu disse a ambos a verdade: depois de muita reflexão, concluí que tinha chegado o momento de deixar as minhas atividades diárias que exerci e ainda exerço com grande entusiasmo", afirmou Kamel na carta - leia a íntegra ao final da reportagem.
Nas mais de quatro décadas de carreira - ele começou como estagiário em 1982 a Rádio Jornal do Brasil -, Kamel teve uma ascensão meteórica ao tornar editor-assistente da Veja em 1989, antes de ser convidado por Henrique Caban para atuar como chefe de reportagem dos jornais de bairro em O Globo.
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Seis anos depois, assumiu a direção da Central Globo de Jornalismo da Rede Globo até 2001, quando foi alçado à direção-executiva de jornalismo da central.
A ascensão meteórica foi acompanhada por polêmicas na mesma proporção. Formado também em Sociologia, Kamel é autor do livro "Não Somos Racistas", escrito em 2006, com críticas à política de cotas raciais do governo Lula.
Lula também foi protagonista de outro livro de Kamel. Em Dicionário Lula, um presidente exposto por suas próprias palavras, de 2009, o comandante do jornalismo da Globo se propõe a analisar os discursos de improviso e entrevistas de Lula do alto de sua posição na emissora.
Polêmicas
Hábil com as palavras, Kamel comandou com braço-de-ferro o jornalismo da Globo, cumprindo ordens diretas dos irmãos Marinho sobre as diretrizes seguidas pela emissora.
Após as críticas à programas de Lula, como no livro inteiro dedicado às cotas raciais, Kamel teria orquestrado diretamente com Sergio Moro a campanha de difamação do atual presidente durante o lawfare da Lava Jato, segundo insinuou o advogado Rodrigo Tacla Duran.
Foram centenas de horas de exposição das "investigações" da Lava Jato até a condenação do petista, sempre com elementos gráficos de impacto no Jornal Nacional - quem não lembra dos dutos de dinheiro?
O que é certo é que Kamel chefiou a cobertura dos atos nas ruas que deram força ao golpe contra Dilma Rousseff, com sobrevoos de helicóptero e transmissão ao vivo convidando as pessoas a participarem dos eventos golpistas, mentindo que mais de 1 milhão de pessoas se aglomeravam na Avenida Paulista em março de 2015.
Kamel também postergou por mais de um mês a demissão de William Waack após declarações racistas do então apresentador do Jornal Da Globo.
O diretor da Globo também é o autor de uma nota enviada aos jornalistas da emissora em 2018 após vazamento de um áudio em que Chico Pinheiro, então apresentador do Jornal Hoje e substituto do Jornal Nacional, afirma que "realizam o fetiche, o fetiche deles era Lula na cadeia", após a prisão.
“A Globo é apartidária, independente, isenta e correta. Cada vez que isso acontece, o dano não é apenas de quem se comportou de forma inapropriada nas redes sociais. O dano atinge a Globo”, escreveu no e-mail Kamel.
Coube a Tonico Duarte, ex-editor da Globo demitido juntamente com nomes como Renato Machado e Francisco José em 2021, resumir um pouco sobre o que pensavam - ou pensam - os jornalistas da emissora sobre Kamel.
"O lead está no pé, as melodramáticas cartas de despedida do Ali Kamel. Como ele não sabe escrever, elas soam como os bolerões cafonas de Carlos Alberto ou Lindomar Castilho. Poderia resumir a coisa pra: 'Tio, está com muito cabelo branco, chegou a hora de comprar um sítio e criar galinhas'. Trabalhei com Gaspar, Zé Hamilton, Chico José, Isabela e Renatão entre outros. São todos puros-sangues da profissão. Quem os rifa, um pangaré", afirmou em texto nas redes sociais.
Leia na íntegra a carta de Ali Kamel sobre a saída do comando do jornalismo da Globo.
"A todos vocês, com grande admiração.
Em 1982, participei da cobertura da Rádio Jornal do Brasil na apuração dos votos na primeira eleição para governador depois do golpe de 1964. Minha tarefa não exigia mais de mim do que ler os boletins de urna para alguém na redação usando um telefone público. Mas a simplicidade da missão não me impediu de viver a experiência com a mesma intensidade com que viveria o jornalismo nos anos seguintes. Vieram a Revista Afinal, a Revista Veja, o jornal O Globo, em 1989, e, desde 2001, a Globo. Ao longo dessa trajetória, nas mais diferentes funções, testemunhei os acontecimentos que marcaram o Brasil e o mundo com os olhos de um jornalista profissional, essa atividade que se mantém indispensável hoje como no passado, talvez mais.
À medida que os anos se passaram, nunca a vivi como um "velho homem de imprensa", esse jargão que designa aquele que já não se surpreende mais com nada. Vivi tudo e ainda vivo com a postura daquele estagiário de 41 anos atrás: com curiosidade, empolgação, vontade de aprender e de acertar. E, talvez o mais importante, com a humildade de saber que o jornalismo é uma atividade coletiva, ninguém faz nada sozinho: o resultado do nosso trabalho será sempre melhor se muitos dele participarem.
No ano passado, ao completar 40 anos de profissão, decidi conversar com João Roberto Marinho, presidente do Conselho de Administração e do Conselho Editorial do Grupo Globo. Foi no dia 26 de julho – guardo a data porque foi um passo importante na minha vida, claro. Em seguida, conversei também com Paulo Marinho, diretor-presidente da Globo, com quem tenho tido o prazer de trabalhar desde que ele assumiu a posição. Eu disse a ambos a verdade: depois de muita reflexão, concluí que tinha chegado o momento de deixar as minhas atividades diárias que exerci e ainda exerço com grande entusiasmo. Em 1995, eu me tornei editor-chefe do Globo de onde saí como diretor-executivo. Cheguei aqui na Globo em 2001 como diretor-executivo de jornalismo para me tornar diretor geral de jornalismo em 2012. São muitos anos exercendo funções de grande responsabilidade, mesmo dividindo-as com equipes maravilhosas. Pesa, e muito, o desejo de ter mais tempo livre com minhas enteadas, Alice e Sofia, e ao lado de minha mulher, Patricia Kogut, com quem compartilho a vida há tanto tempo, ela própria já tendo desacelerado recentemente a sua vitoriosa carreira jornalística. Mas pesa também a consciência de que quase três décadas em funções de liderança são um tempo excessivo.
Ajudou na decisão o fato de o jornalismo da Globo contar com profissionais talentosíssimos e prontos para seguirem adiante. Foi com alegria que constatei haver um consenso irrestrito em torno de Ricardo Villela, que me sucederá, e de Miguel Athayde, que o sucederá. Para completar o novo time vitorioso, Vinícius Menezes, na GloboNews, e Márcio Sternick, na Editoria Rio.
João e Paulo foram muito generosos em nossas conversas e na avaliação do meu trabalho.
Eu me relaciono profissionalmente com João de forma mais direta desde 1991, quando ele liderou o seminário em Mangaratiba que deu o pontapé inicial a um processo ainda mais intenso de modernização do Globo. De lá para cá, foram anos de respeito mútuo, de comunhão de valores e de aprofundamento da convicção de que o jornalismo tem princípios que – se seguidos sem concessões – levam à busca da verdade e à produção de conhecimento. Sua crença na importância do jornalismo e a maneira serena de liderar, guiada sempre por valores, foram para mim mais do que uma inspiração: foram uma fonte de aprendizado. Não é preciso dizer da minha alegria quando ele me convidou para manter nossa parceria na condição de coordenador do Conselho Editorial, função que ele decidiu criar agora para auxiliá-lo na condução desse órgão. Vou procurar honrar esse convite.
Paulo entendeu também as minhas ponderações e foi acolhedor. Eu o conheci ainda quando deu os primeiros passos no Grupo Globo e o tenho acompanhado desde então, mais de perto desde que se tornou presidente-executivo da Globo, com grande liderança e competência. Só posso ser grato a ele, como a toda a família Marinho. Nesses anos todos, pude ver de perto que eles não abrem mão dos valores democráticos e não medem esforços pela cultura brasileira. Os hoje vice-presidentes do Conselho de Administração, Roberto Irineu Marinho, que liderou sempre de maneira inovadora o Grupo Globo até há pouco, assim como José Roberto Marinho, que tem no seu currículo a criação de uma potência como a CBN, sempre me prestigiaram com a sua confiança. O mesmo quero dizer de Roberto Marinho Neto, hoje diretor-presidente da Globo Ventures, com quem trabalhei de perto na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas de 2016 quando ele era diretor de projetos especiais do Esporte - ali pude constatar o executivo brilhante que é. Tenho a consciência de que foi no Grupo Globo que tive os meios, o ambiente, as oportunidades e a liberdade de me desenvolver profissionalmente. Ao João Roberto, ao Roberto Irineu, ao José Roberto, ao Paulo e ao Roberto Marinho Neto serei grato por toda a vida.
Termino agradecendo a todos os colegas, sem exceção, com quem trabalhei nessa trajetória tão longa. Todos, ao seu modo, foram marcantes: com eles aprendi, forjei minhas convicções nos princípios do bom jornalismo, ampliei meus horizontes. Cito alguns. Nos anos de formação na Rádio JB, Regina Bodstein, Carlos Grandin, Alceste Pinheiro e Ramiro Alves, morto tão jovem; Dorrit Harazim, na Veja; e Elizabeth Carvalho, na Afinal. No Globo, o mestre Evandro Carlos de Andrade, que nos deixou em 2001. E, claro, meu amigo e companheiro Merval Pereira. Cito também Rodolfo Fernandes e Jorge Bastos Moreno, que partiram de forma tão prematura, de quem me tornei amigo e com quem compartilhei tantas histórias e reportagens. Na Globo, concentro minhas homenagens em quatro pessoas queridas: Silvia Faria, Maria Thereza Pinheiro, a nossa Terezoca, e Carlos Henrique Schroder, com quem dividi grande parte da minha caminhada aqui. E William Bonner, companheiro de um mundo de coberturas. Citando-os, eu presto meu reconhecimento e gratidão a todos com quem convivi nesses anos maravilhosos de trabalho frutífero e bem-sucedido. O jornalismo da Globo é de excelência porque excelentes são seus profissionais. Todos eles, a quem agradeço agora.
Fico com vocês até 31 de dezembro com o mesmo entusiasmo de sempre. Depois, assumem Villela e Miguel, Vinícius e Sternick, esses craques, profissionais impecáveis, altamente preparados e que vocês conhecem tão bem.
Ao contrário do que eu costumava recomendar ao fim dos meus e-mails durante a pandemia, o período tão triste que atravessamos juntos numa cobertura histórica, eu me despeço com um beijo, um abraço e um aperto de mão.
Muito obrigado
Ali Kamel"