No penúltimo capítulo da série “O País que Sobrou do Golpe”, no domingo retrasado, um jornalista (de um meio de comunicação que não admite que houve golpe contra Dilma em 2016) perguntou ao atual mandatário deste país que sobrou do golpe:
“Presidente, por que a primeira-dama recebeu R$ 89 mil do Queiroz?”.
A questão foi respondida por Jair Bolsonaro com uma ameaça de agressão, que expôs o ódio à liberdade que lhe é peculiar. Ódio à verdadeira liberdade, não as duas únicas liberdades que ele defende: a de lucrar e a de matar. O bolsonarismo odeia a liberdade de ser, de viver, de exercer ideias, de divergir e (a mais importante) de fazer parte de um conjunto social onde todas essas liberdades podem coexistir e se respeitar mutuamente.
Diante desse ataque grotesco, muitos jornalistas, quase todos os que honram de verdade esta sucateada profissão que também exerço, se manifestaram em defesa do colega que fez a pergunta. Fizeram muito bem, muito melhor que eu, que titubeei, e me resignei a tímidos e insuficientes gestos de solidariedade.
Confesso que minha tardia e fugaz reação foi resultado de algo que pode parecer “rancor” para alguns, ou “sentimento de exclusão” para outros. O colega que fez a pergunta pertence a um dos meios de comunicação mais poderosos do país, e eu colaboro somente com veículos de menor poder econômico.
Aos que entenderem minha opaca solidariedade como fruto do ressentimento, eu aceito a crítica, mas asseguro que não foi um ressentimento ao colega ou ao meio que ele trabalha, e por isso prefiro pensar mais que foi um sentimento de exclusão. É um ressentimento a uma situação: está muito bem a reação de solidariedade da classe jornalística, quase em uníssono, quando um de nós é intimidado dessa maneira por um presidente em pleno mandato, num grotesco exercício de ostentação do poder, com a força real e simbólica que essa ameaça carrega, mas… e se fosse com outro de nós? Com outros tipos entre nós, um ou uma jornalista da imprensa alternativa, ou da imprensa regional, ou de pequenos veículos de imprensa regionais. Haveria, ou melhor, há semelhante solidariedade? – e a retificação no tempo verbal se dá porque não deveriam existir dúvidas, entre nós, de que ameaças desse tipo e inclusive piores não são incomuns no Brasil profundo, onde não faltam exemplos de colegas acostumados a sofrê-las, e outros que até já pagaram com suas vidas.
Sou jornalista de meios conhecidos do jornalismo brasileiro, e que podem ser considerados mais médios que pequenos, já que têm projeção nacional. Escrevo diariamente para a Revista Fórum, colaboro eventualmente com o Opera Mundi e a Carta Maior, e também já publiquei em muitos outros, inclusive fora do Brasil (Chile e Argentina), sempre em veículos da chamada “imprensa alternativa”, ou “imprensa progressista”. Esses que, desde 2010, passaram a ser chamados de “sites sujos” – alcunha lançada pelo “campeão da pluralidade” José Serra –, e que, com o tempo, a nova direita preferiu mudar o rótulo para “imprensa financiada pelo PT”, que cabe para qualquer meio que ouse contrariar a agenda de quem está no poder desde 2016.
Seríamos nós merecedores da mesma solidariedade? Foi essa dúvida que me levou a uma resposta menos fraternal do que eu realmente gostaria, considerando a grave situação que vivemos. Contudo, neste fim de semana tivemos o mais recente capítulo da série “O País que Sobrou do Golpe”. Um com bastante menos audiência, o que, no fim das contas, serviu para responder meus questionamentos anteriores.
Não vou economizar nos spoilers: neste episódio, um juiz da 32ª Vara Cível do Rio de Janeiro obrigou o GGN a tirar do ar uma série de matérias que traziam investigações sobre atividades suspeitas e possivelmente corruptas do banco BTG Pactual, sentença que incluiu também uma ameaça, não física, mas sim econômica, na forma de multas diárias de 10 mil reais caso o conteúdo fosse mantido no ar.
Este típico caso de censura tem evidentes diferenças com o do episódio anterior, mas também semelhanças. Não se trata de uma ameaça de violência física, como da outra vez, mas não deixa de ser uma violação à liberdade de expressão.
O primeiro caso foi cometido por um presidente da República, e este segundo foi obra de um juiz de primeira instância. No entanto, não é difícil perceber, lendo a sentença, a influência do poder econômico na decisão – que, aliás, segue a mesma linha de argumentação conspiratória e agressiva do bolsonarismo, tratando a série de reportagens como uma “campanha orquestrada para difamar o banco (…) causando dano à honra objetiva do banco”, e tratando o GGN como um meio insignificante e enviesado.
Ademais, o BTG Pactual pode não ser o próprio Jair Bolsonaro, mas tem sim grande influência nas atuais estruturas de poder, já que possui vínculo de origem com o ainda ministro da Economia, Paulo Guedes.
A decisão judicial contra o GGN pode não ser tão explícita quanto uma ameaça de agressão física, mas no fundo tem o mesmo efeito de mostrar aos jornalistas que mexer com os interesses econômicos de alguém poderoso tem consequências. Algo que deveria ser inaceitável em um país com as liberdades que dizem haver no Brasil.
Contrariando o rótulo pré-fabricado, as reportagens não foram escritas por jornalistas militantes ou de fundo de quintal, e sim por dois profissionais de talento indiscutível. Um deles é o conhecidíssimo Luís Nassif, diretor de redação do GGN e um dos mais respeitados jornalistas de economia do país, que inclusive já foi parte do conselho editorial da Folha de São Paulo, um passado que impede qualquer acusação de “bolivariano” ou “soviético”. A outra é Patricia Faermann, uma brilhante jornalista, mais jovem e, portanto, sem o mesmo currículo do Nassif, mas com um trabalho também admirável por sua enorme qualidade.
Infelizmente, não houve, no caso deles, a mesma reação de apoio transversal dentro da classe jornalística. As suspeitas levantadas pelas excelentes reportagens do GGN sequer repercutem, mesmo em alguns meios da imprensa alternativa, e nos grandes veículos – aqueles que descobriram tarde demais que Bolsonaro também é uma ameaça a eles, mas que continuam adorando Paulo Guedes, fio de esperança dos interesses e ideais dos seus donos – não há qualquer indício de que as suspeitas ao BTG existam, e menos ainda que possa haver censura contra meios e jornalistas que denunciam essa situação.
Tampouco se vê manifestações de solidariedade fora dos meios, em ações individuais. Algo que lamento, mas não condeno. Inclusive, acho menos lamentável que o meu equívoco da semana anterior, porque existe um paradoxo da liberdade no meio jornalístico brasileiro.
Como profissional de sites de médio e pequeno porte, curiosamente, tenho mais liberdade de expressar minha opinião. Se me arrependo de não ter cumprido com o dever moral de ser mais solidário com um colega de um meio grande é porque eu posso fazer isso, pois se o faço, isso não vai acarretar nenhuma consequência, não vou perder meu trabalho nem ser tratado diferente por isso. Um jornalista da grande imprensa brasileira, caso tenham algum gesto de fraternidade para com colegas de meios menores (sou consciente, claro, que muitos nem se importam), especialmente os divergentes ideologicamente, pode sim sofrer represálias diversas.
Ao longo deste artigo-desabafo, tentei inclusive me antecipar a algumas desculpas que poderiam ser usadas para justificar a inação coletiva em favor dos colegas Luís Nassif e Patricia Faermann, mas o fato é que continuamos falhando no que diz respeito ao dever moral de defender a liberdade de expressão, ou de imprensa, ou de divergência. Diferente do que muitos disseram na semana passada, inclusive mostrando entusiasmo sobre uma suposta união inusitada da classe jornalística, que como vemos, não é tanto. As coisas continuam sendo como sempre foram.
Na verdade, mesmo dentro do universo da mídia alternativa ou progressista houve uma reação bem menor do que o esperado em defesa dos colegas do GGN, o que aumenta a minha frustração. Ao menos entre nós, deveríamos mostrar aos nossos leitores que também sofremos censura, violência e perseguição jurídica e econômica.
Os próximos capítulos da nossa série da vida real tendem a ser ainda piores que os dois últimos. Não se vê nenhuma possibilidade de plot twist nesta temporada, ou mesmo nas próximas duas – ou talvez seis, ao final das quais o golpe completará 10 anos, e teremos sorte se restar ainda algum resquício de país, e de jornalismo livre.