O que está em jogo com a mudança na lei da TV por assinatura. Por João Brant

A depender da decisão do Congresso, a produção independente brasileira pode retroagir ao cenário de oito anos atrás

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Por João Brant* Em setembro de 2011, depois de anos de negociação no Congresso, foi sancionada a lei 12.485, que reorganizou o serviço de TV por assinatura no Brasil. Naquele momento, foi construído um texto de lei que equilibrava o interesse de todas as partes envolvidas na produção e distribuição de conteúdo audiovisual no Brasil: empresas de telecomunicações, empresas de televisão e produtores independentes brasileiros. Este equilíbrio proporcionou, nos anos seguintes, o crescimento do serviço de TV por assinatura e a ampliação da produção e exibição de obras brasileiras, com grande participação da produção independente. Oito anos depois, este arranjo está ameaçado pelo Projeto de Lei 3832/2019, do senador Vanderlan Cardoso (PP/GO). O projeto, feito para facilitar o processo de fusão da AT&T com a WarnerMedia, está para ser votado no Senado e tem seu rumo disputado por vários agentes econômicos com diferentes interesses. As definições do projeto terão grande impacto no desenvolvimento do audiovisual no Brasil, mas também no setor de telecomunicações, sendo parte do capítulo da briga entre Estados Unidos e China para o 5G. Mas o que está em jogo e como se posicionam os diferentes interessados? O arranjo da 12.485 Para entender o cenário complexo, é preciso antes compreender o arranjo sustentado pela Lei 12.485, obtido num longo processo de negociação liderado pelo relator Jorge Bittar (PT-RJ), Ministério da Cultura e Ancine: - as empresas de telecomunicações puderam, a partir da lei, prestar também o serviço de TV a cabo. Até aquele momento, as concessionárias só podiam oferecer o serviço por satélite ou micro-ondas. - as empresas de televisão, especialmente a Globo, conseguiram impor regras que impediam as empresas de telecomunicações de controlar canais de TV por assinatura e comprar direitos de transmissão de grandes eventos. O contrário também foi proibido, o que fez a Globo ter de diminuir bastante sua participação na NET e na Sky. - a produção independente brasileira conseguiu a garantia de cotas para produção brasileira nos canais de TV a cabo, e de cota de canais brasileiros de espaço qualificado (filmes e séries, documentais ou de ficção) dentro dos pacotes. Conseguiu também um incremento significativo no Fundo Setorial do Audiovisual com a inclusão de um fato gerador específico da Condecine (contribuição que alimenta o Fundo Setorial do Audiovisual) gerada a partir das linhas ativas de celular. O resultado foi o seguinte: - o número de assinantes de TV por assinatura cresceu 100% em quatro anos: saiu de 9,8 milhões em 2010 para 19,6 milhões em 2014. - o valor adicionado pelo audiovisual na economia brasileira cresceu 50% entre 2011 e 2014 (de R$ 16,3 bilhões para R$ 24,5 bilhões). Se considerado só o setor de TV por assinatura, o crescimento foi de mais de 100%. - A produção brasileira independente saiu de uma participação insignificante até 2011 para alcançar, em 2017, 13,8% do tempo da TV paga. Se considerado apenas o horário nobre em canais que veiculam majoritariamente filmes e séries são 29,4% – sendo dois terços destas horas de programação produzidas por produtoras brasileiras independentes[1]. - o número de longas-metragens brasileiros lançados comercialmente saltou de 100, em 2011, para 185 em 2018. O número de obras seriadas realizadas passou de 100, em 2011, para 697 em 2018. - o número de canais brasileiros de espaço qualificado subiu de menos de 5, antes da lei, para 19, em 2018. - o novo fato gerador da Condecine ampliou a arrecadação do Fundo Setorial do Audiovisual  em cerca de R$ 1 bilhão por ano. O motivo do PL O objetivo central do projeto no Senado é revogar os artigos 5º e 6º da Lei, que definem o seguinte: - TVs, rádios e produtoras e programadoras com sede no Brasil não podem ter controle ou mais de 50% do capital total e votante das prestadoras de serviços de telecomunicações - Prestadoras de serviços de telecomunicações não podem ter nem controle nem mais de 30% do capital total e votante das TVs, rádios e produtoras e programadoras com sede no Brasil - Prestadoras de serviços de telecomunicações não podem, com o objetivo de produzir programação de TV aberta ou por assinatura, adquirir ou financiar a aquisição de direitos de exploração de imagens de eventos de interesse nacional; e contratar talentos artísticos nacionais de qualquer natureza, inclusive direitos sobre obras de autores nacionais. Esta mudança tem o objetivo de viabilizar que se concretize a fusão da AT&T com a WarnerMedia. Como a AT&T controla a distribuidora Sky e a WarnerMedia controla, como programadora, diversos canais da TV por assinatura (HBO, TNT, Space, Warner, CNN, Cartoon e Turner, só para citar os principais), a fusão não poderia se dar sem que a AT&T saísse da Sky – ou sem que os canais fossem retirados dos pacotes vendidos. A AT&T prefere concretizar a fusão sem abrir mão de nenhum dos dois mercados. E, como foi amplamente noticiado, o assunto foi objeto de pedido direto do presidente dos EUA, Donald Trump, ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro. O pedido dá ideia do caráter estratégico da fusão, mas suscitou outras especulações. Uma delas é que o interesse maior da AT&T não seria manter o controle da Sky, mas colocar-se em condições de mercado para eventual aquisição da Oi, operadora que é concessionária em todos os estados brasileiros com exceção de São Paulo, e que está em recuperação judicial. A disputa sobre a Oi inclui as atuais prestadoras de telecomunicações no Brasil, mas também os chineses. As restrições atuais do artigo 5º impediriam essa compra pela AT&T-WarnerMedia (por ela ser programadora) e abririam espaço para os chineses em meio a uma guerra no 5G que implica o controle sobre as informações do mundo nas próximas décadas[2]. Os efeitos da derrubada dos limites atuais Se os artigos forem realmente revogados, é possível prever um cenário de maior concentração e integração vertical também nas comunicações brasileiras, seguindo a tendência global. Uma consequência disso é a liberdade que empresas como a Claro e a Telefônica podem ter para adquirir canais e comprar direitos de imagem de campeonatos esportivos. Em um cenário em que Google e Facebook não estão sujeitos a quaisquer limites, essa movimentação pode ampliar o nível de competição entre os gigantes. Mas dificilmente vão beneficiar a diversidade de conteúdo brasileiro. O mercado brasileiro estará cada vez mais integrado em uma estratégia global de confronto das gigantes de tecnologia e de telecomunicações, em um quadro de ampliação das fusões destas com empresas de mídia. Nesta condição, deverá ser cada vez mais difícil manter regras específicas que impedem a uniformização da programação e garantem espaço para a produção brasileira, especialmente independente. Independentemente dos novos movimentos, um risco imediato da integração vertical é que a empresa que tem esse benefício busque a exclusão de competidores do mercado. Ela pode tanto dificultar a aquisição dos canais pelos distribuidores concorrentes como se recusar a carregar canais que concorram com os seus próprios. De olho nesse possível efeito, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), ao aprovar a fusão da AT&T com a WarnerMedia, impôs alguns condicionantes. Essas condicionantes buscam justamente garantir a oferta de canais em condições isonômicas e não-discriminatória para outros distribuidores, e o impedimento de que os distribuidores imponham aos canais concorrentes qualquer restrição na transmissão da programação. Algumas das emendas apresentadas ao PL de Vanderlan Cardoso no Senado buscam justamente trazer esses condicionantes para a lei. Assim, eles não seriam válidos só para a AT&T-WarnerMedia, mas para todos os agentes econômicos que sejam ao mesmo tempo distribuidores e programadores. Além destes efeitos diretos, o projeto também tem sido usado como palco para disputas entre SBT e Record, de um lado, e Globo, de outro. As emissoras menores querem dar aos órgãos reguladores capacidade de atuar sobre efeitos negativos da integração vertical, inclusive os já presentes no mercado, pela capacidade da Globo em usar sua condição de acionista minoritária na Sky e na NET-Claro para barrar concorrentes. A tentativa de excluir a Internet Na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado, onde tramita em caráter terminativo (se aprovado vai direto para a Câmara), o projeto já recebeu dez emendas, que ampliam seu impacto. Ao se analisar as emendas apresentadas, fica claro que a derrubada dos artigos que separam o mercado de distribuição da programação e produção é só o motivo original do PL. Tão importante quanto a questão dos artigos 5º e 6º passou a ser o debate sobre a aplicação ou não da lei 12.485 aos serviços audiovisuais prestados pela Internet. Essa questão surgiu por conta de uma briga entre a Claro e a Fox pelo direito ou não da segunda de oferecer diretamente os seus canais lineares ao consumidor pela Internet, sem precisar do pacote de TV por assinatura. A Anatel julgou que a oferta de um pacote de 11 canais da Fox pela Internet deveria ser caracterizada como Serviço de Acesso Condicionado (SeAC), e suspendeu, por medida cautelar, a oferta da empresa. A Fox recorreu e conseguiu uma liminar para continuar vendendo o serviço. Para tentar limpar este terreno, foram apresentadas emendas para dizer que a lei 12.485 não se aplica à internet. Essas emendas têm sido apoiadas pelas programadoras brasileiras, incluindo os canais de televisão, e internacionais. Este tem sido o grande ponto de tensão na tramitação do projeto. De um lado, operadoras como a Claro alegam que a possibilidade de oferta direta de canais cria uma concorrência desleal, já que a oferta passa por cima do serviço de acesso condicionado. No novo arranjo, as programadoras atuam como empacotadoras, pagando menos impostos (2 a 5% de ISS para os municípios em vez de 15% de ICMS para os estados), e correm o risco de deixar o consumidor desguarnecido, pela não aplicação das regras próprias de proteção ao consumidor do SeAC. De outro, as empresas alegam que a oferta de pacotes pela Internet não se caracteriza como serviço de telecomunicações, e sim como serviço de valor adicionado, e não pode ser enquadrada como SeAC. Elas teriam a liberdade de vender diretamente seus pacotes sem a regulação atual da lei 12.485. Outra parte preocupada com a exclusão da aplicação das regras do SeAC à Internet são os produtores brasileiros independentes. O temor dos produtores é que a exclusão da Internet do escopo de aplicação da lei 12.485 jogue fora, de uma hora para outra, as garantias que fizeram o audiovisual brasileiro dar um salto nos últimos anos – cotas de produção brasileira nos canais internacionais, cotas de canais brasileiros nos pacotes e arrecadação de Condecine pela prestação do serviço. Saída negociada Nesta disputa, há uma diferença que não está sendo devidamente considerada pelos senadores. A lei 12.485 faz uma diferença clara entre comunicação audiovisual de acesso condicionado e o serviço de acesso condicionado. Comunicação audiovisual de acesso condicionado: complexo de atividades que permite a emissão, transmissão e recepção, por meios eletrônicos quaisquer, de imagens, acompanhadas ou não de sons, que resulta na entrega de conteúdo audiovisual exclusivamente a assinantes  Serviço de Acesso Condicionado: serviço de telecomunicações de interesse coletivo prestado no regime privado, cuja recepção é condicionada à contratação remunerada por assinantes e destinado à distribuição de conteúdos audiovisuais na forma de pacotes, de canais nas modalidades avulsa de programação e avulsa de conteúdo programado e de canais de distribuição obrigatória, por meio de tecnologias, processos, meios eletrônicos e protocolos de comunicação quaisquer. Ou seja, a comunicação audiovisual de acesso condicionado inclui todas as atividades – distribuição, empacotamento, programação e produção. Já o Serviço de Acesso Condicionado é um serviço de telecomunicações para distribuição de comunicação audiovisual de acesso condicionado. A lei 12.485, diferentemente do que dizem os interessados, não é a lei do SeAC. Seu objeto é toda a comunicação audiovisual de acesso condicionado. As cotas de programação e de canais, por exemplo, não são impostas ao SeAC, mas à comunicação audiovisual de acesso condicionado. Nesta diferença pode estar a saída que garantirá a aplicação das cotas e da cobrança da Condecine nos serviços pela Internet. É, de fato, cabível a discussão sobre a oferta de pacotes pela Internet se caracterizar ou não como distribuição e, portanto, como SeAC. Mas é indiscutível que a oferta de canais da Fox diretamente ao consumidor se caracteriza como empacotamento e programação, ou seja, é comunicação audiovisual de acesso condicionado e deve seguir todas as regras impostas a ele. Nesse sentido, se for acatada emenda que afasta a aplicação da lei para a Internet, seria de fato um desastre para a produção audiovisual brasileira, especialmente a produção independente. Significaria ‘voltar oito casas’ no tabuleiro modificado desde 2011 e ameaçar todos os avanços dos últimos anos. É relevante entender, entretanto, que há caminhos possíveis de soluções negociadas para garantir o espaço e financiamento da produção brasileira, inclusive independente, que passam pelo reconhecimento da diferenciação que a lei 12485 faz entre comunicação audiovisual de acesso condicionado e serviço de acesso condicionado. Se ficar claro que canais ofertados pela Internet não são SeAC mas seguem sendo comunicação audiovisual de acesso condicionado, afasta-se o risco mais grave para a produção audiovisual brasileira. Essa solução afastaria a Anatel da regulação, já que ela é responsável apenas pelo campo da distribuição, e manteria a regulação setorial da Ancine. Desta maneira, a legislação brasileira seria mantida em linha com a atualização feita pela União Europeia de sua Diretiva de Serviços de Comunicação Audiovisual, que não diferencia os serviços prestados pela Internet ou por cabo. A pressa que vem de fora A urgência na aprovação do projeto não é das empresas de telecomunicações, nem das empresas de televisão, nem dos produtores independentes. A pressa é da AT&T, de Trump e de Bolsonaro. Ainda assim, esta urgência tomou conta do debate no Congresso, por temor de que o governo publique uma medida provisória. O maior risco do projeto de lei que modifica a lei 12.485 é desestruturar de forma repentina um arranjo que, em oito anos, deu frutos positivos em todas as frentes. Não é possível dizer que este marco tenha se tornado obsoleto simplesmente porque ele não permite a fusão da AT&T com a WarnerMedia. Essa é uma questão comercial, não tecnológica. Do ponto de vista das atualizações tecnológicas, o Brasil tem assistido à inovação em todas as frentes, e já é um mercado chave para os serviços de vídeo sob demanda (VOD). Estudos estimam que a Netflix já tem, no país, o mesmo número de assinantes que o maior provedor de SeAC (grupo Claro, com NET). O VOD, aliás, é um mercado disruptivo porque concorre com as quatro janelas que antes organizavam a cadeia audiovisual: salas de cinema, video doméstico, televisão por assinatura e televisão aberta. A discussão sobre a atualização da lei 12.485 deveria ser feita já de maneira a trazer os avanços obtidos na lei da tv por assinatura para o serviço de VOD. Há projetos para isso na Câmara (PL 8889/17, do deputado Paulo Teixeira) e no Senado (PL 57/18, do senador Humberto Costa), inspirados nos pontos positivos da lei 12.485 e na atualização europeia de sua Diretiva de Serviços de Comunicação Audiovisual. Se não compreender com clareza o que está em jogo, o Congresso corre o risco de inverter os interesses nacionais: apressa a discussão do projeto de interesse da AT&T e deixa encostado os projetos que podem empoderar a produção brasileira ante os gigantes tecnológicos. *Pesquisador e consultor em políticas de comunicação e cultura, ex-Secretário Executivo do Ministério da Cultura [1] Estes números são bem analisados na contribuição feita por SIAESP, SICAV, BRAVI e APRO a consulta pública nº 22 da ANATEL. [2] Como melhor explicado aqui: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/25/economia/1558795538_036562.html