Se Lula não existisse seria preciso inventá-lo: o culto à corrupção pela mídia e pela cultura política popular

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"A palavra 'corrupção' está sendo manipulada pelas classes dominantes que possuem acesso privilegiado aos meios de comunicação mais difusos no mundo social. As pessoas apropriaram-se deste conceito de forma turva, personificando-o, como se ele tivesse um representante carnal: Lula". Leia mais no artigo do professor Raphael Silva Fagundes  Por Raphael Silva Fagundes*  
"Aos poucos, as pessoas pareciam perder sua individualidade e se fundiam num monstro não muito sagaz mas imensamente poderoso, pouco racional e portanto capaz de fazer qualquer coisa". Roger E. Money-Kyrle, psicólogo inglês que participou de um comício de Hitler
A corrupção se tornou um óbice para o progresso em dois sentidos: por um lado, pelo fato dela ser endêmica, cultural, um mal entranhado em nossa sociedade; por outro, por ser usada como um argumento que serve para legitimar qualquer atitude política, que possa levar, inclusive, ao retrocesso e ao cultivo oficializado do ódio. A cultura política do brasileiro médio se resume a uma única palavra: corrupção. Dificilmente alguém falará de política sem mencionar essa palavra ou algo relacionado a ela quando está a debater no bar, em casa ou nas redes sociais. Parece com aquele senhor que nos comerciais de TV se encontra prostrado em um assento, trançando o seu balaio, e quando requisitado a dar alguma informação tende a repetir: Posto Ipiranga. Não há como negar que a corrupção não seja uma vilã. Desde os tempos coloniais, devido à distância em relação à metrópole, fato que dificultava a regulação do funcionamento da sociedade nos trópicos, as falcatruas corriam soltas. Mas bem antes disso, Aristóteles já acreditava que a corrupção era inerente a política: “à medida que está inserido nesse campo político o homem também se corrompe no sentido em que se deixa influenciar pelo poder”. O agenciamento da corrupção O cientista político Gianfranco Pasquino, explica que a corrupção ocorre quando a elite que goza do poder se sente insegura. “Quanto mais ameaçada se sentir, tanto mais a elite recorrerá a meios ilegais e a corrupção para se manter no poder”.1 Vemos que no Brasil isso aconteceu de forma clara. Pois o PT lançou mão de procedimentos ilícitos para se manter no poder, assim como o PSDB também o fez, recentemente, para voltar e si firmar como condutor político da nação. Assim a corrupção é sempre parte da política, um dispositivo usado pelas elites para se manterem no poder. Embora tal desvio de conduta seja considerado em termos de legalidade e ilegalidade e não de moralidade e imoralidade, a própria palavra carrega elementos emocionais. Santo Agostinho mostra a sua etimologia: coração (cor) rompido (ruptus) e pervertido. Além disso, ela “está também relacionada com a cultura das elites e das massas”.2 Por isso é de fácil uso na atividade retórica. Desta forma, o cidadão médio apropriou-se desse termo, que circula prosaicamente no vocabulário político, de modo a interpretar toda relação política a partir dele. E não digo isso através de uma classificação socioprofissional, mas como algo que passou a fazer parte da mentalidade atravessando diferenças sexuais, de classe, hábitos profissionais, gerações, religiões, tradições educacionais ou solidariedades territoriais. É facilmente possível encontrar um empresário bem sucedido que, ao falar de política, vomite apenas a palavra corrupção, assim como um desfavorecido, que se esgueira nos becos da favela onde mora, explicando que o problema da sua miséria são os políticos ladrões. É lógico que a corrupção é um problema sério na política que deve ser resolvido, mas apenas o orvalho da noite não é capaz de manter viva as plantas. A palavra “corrupção” está sendo manipulada pelas classes dominantes que possuem acesso privilegiado aos meios de comunicação mais difusos no mundo social. As pessoas apropriaram-se deste conceito de forma turva, personificando-o, como se ele tivesse um representante carnal: Lula (que sem dúvida aproveitou-se da corrupção em algum momento). Temer foi acusado de corrupção, mas não condenado. Os opositores ao lulopetismo, por seu turno, afirmaram categoricamente que tudo é culpa do Partido dos Trabalhadores, porque foi ele que colocou o nefasto político do PMDB no poder. Isso explica a tímida indignação com a permanência de Temer e a comemoração alienada perante a condenação de Lula. A corrupção está relacionada a um único indivíduo, causador de todos os problemas. Daí o sumiço dos políticos do PSDB, que também “mamaram” na teta do governo, mas vivem hoje na regalia de tudo que roubaram. Melhor nem lembrar deles, o alvo é Lula. Até o atrapalhado Aécio Neves saiu de cena. A mídia se transformou em uma máquina capaz de criar seus próprios mitos, como no conto de Philip Dick, “Se Benny Cemoli não existisse”, onde o New York Times se transforma em um computador autônomo que capta tudo que acontece. Ele inventa um rebelde que mobiliza toda a polícia que, por sua vez, se dedica, neuroticamente, a capturá-lo. Duvidando, por um momento da existência de Benny Cemoli, o agente Hood percebe que a dedicação da polícia para prender o rebelde fazia parte de um plano maior e pensa: “Se Benny Cemoli nunca tivesse existido, seria quase preciso inventá-lo”. Da mesma maneira, podemos dizer que se Lula não existisse seria preciso inventá-lo. Dilma, por seu turno, não foi acusada de corrupção, mas ao longo de todo o processo do impeachment tocou-se na mesma tecla: o PT é corrupto. As pedaladas fiscais estão ligadas a um distúrbio administrativo, que só convenceu realmente a população de que se tratava de um crime grave por causa da palavra “corrupção” relacionada incessantemente ao partido da ex-presidenta. “A palavra traiu-me ante o verdugo” O pré-candidato à presidência, Jair Bolsonaro, já cansou de dizer que o chamam de fascista porque não podem chamá-lo de corrupto. Os seus seguidores, por sua vez, dizem o mesmo quando alguém o chama de nazista. A palavra “corrupção” passou a justificar tudo no que tange a política. O pensar político no Brasil se fecha no fato de se acusar alguém de corrupto ou de isentá-lo de tal mancha macabra. Isso se tornou perigoso porque aquele que é reconhecido como “isento” de tal marca bestial, acaba tendo o direito de fazer o que quer. Ele pode dizer que a mulher deve receber menos porque engravida, ou defender o porte de armas em um país onde pessoas morrem baleadas em números maiores que em países abalados pela guerra. Ele pode conduzir milhares de trabalhadores a defender o fim dos seus direitos ou a venda dos bens nacionais para empresários americanos. É lógico que ninguém defende um político por ele não ser corrupto. Mas a palavra acaba por classificar todas as suas asserções e atos que, se fossem proferidas ou cometidos por um corrupto, não teria como se justificar. Pois o bom político é apenas aquele que não é corrupto! Ele pode defender a tortura e a cultura do estupro, mas se não for corrupto, logo está correto. É como um dos versos de Bertolt Brecht: “A palavra traiu-me ante o verdugo”. Assim, os que não são acusados de “corrupção” (o que não quer dizer que não sejam corruptos) estão explorando tal vocábulo para trair a todos. Ninguém defende um político por ele não ser corrupto (repito), o que as pessoas (pelo menos as que usam desse discurso para defender o retrocesso econômico e cultural do país) defendem é o ódio, um discurso violento reprimido pelos nossos parâmetros civilizatórios, onde determinadas ideias não são polidas de se dizer, muito menos de se defender. Há vários políticos que não são corruptos, mas não ganham a proporção de certos outros, justamente, porque não são trogloditas e violentos. A insatisfação desperta sentimentos de violência e de ódio, e há muita gente insatisfeita por aí. Tanto o ódio quanto a violência são vistos por nós como corruptos, porque estraga o coração humano, no entanto, se arrancarmos destas emoções agressivas tal marca ignóbil, elas se tornarão legítimas, e mais, excitantes. A ideia de corrupção, ao em vez de “purificar” a política, parece querer acabar com ela, ou melhor, parece querer pôr fim a tentativa pacífica de administrar as diferenças, como a concebe Hannah Arendt. E como explicou o dramaturgo e editor inglês Jerome K., por volta de 1900, sobre os duelos tão comuns em seu tempo: “Quando os homens não conseguem conversar e, através da fala e da argumentação livres, esclarecer questões passíveis de debate, recorrem ao vulgar raciocínio da espada e da pistola”.3 É o que vemos no crescimento da bancada da bala e do discurso ridículo de culto à ditadura militar na ladainha desses políticos que se dizem honestos e honrosos. Vamos voltar à época em que se defendia a honra por meio da violência e do ódio? É preciso ver o que há por trás da retórica da “não-corrupção”. Não ser corrupto deveria ser a obrigação de qualquer político e não um argumento que lhe dá carta branca para fazer o que quer. Não quer dizer, também, que tudo que diz é certo. Estamos tão inebriados pelo conceito que nos esquecemos de racionalizar. Alguém pode ser nazista desde que não seja corrupto? Vamos pensar um pouco mais. Vamos refletir mais sobre a amplitude do que é política e sobre as possibilidades do debate público para alcançarmos, o mais de pressa possível, a harmonia. 1 PASQUINO, Gianfranco. “Corrupção”. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Dicionário de política I. trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1 la ed., 1998. p. 292. 2 Id. 3 Apud GAY, Peter. O cultivo do ódio: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. Trad: Sérgio Flaskman. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 18. *Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí