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Em artigo, professor Raphael Fagundes explica como grandes veículos de comunicação, como a Globo, utilizam de estratégias diferentes para adestrar a indignação das pessoas de acordo com sua classe social
Por Raphael Silva Fagundes*
Confesso que nunca tive interesse no quadro RJ Móvel do jornal regional da minha cidade, até que a Globo, com sua repórter extrovertida, Susana Naspolini, apareceu em uma rua próxima a minha casa. Os moradores reclamavam da obra de uma ponte que a prefeitura deixou por fazer.
A repórter sobe em uma espécie de triciclo infantil motorizado e atravessa a ponte improvisada pelos membros da vizinhança. Do outro lado, ela é recebida com palmas e gritos. A natureza, com sua modelagem deformada, resume-se a um matagal abandonado que serve de palco para a cena. A repórter canta com os populares, faz piadas, improvisa uma rede que amarra nas estruturas da obra inacabada. O povo local a balança. Depois ela lê um documento que diz que o secretário de infraestrutura, Índio da Costa, só dará seguimento à obra quando houver dinheiro. A repórter voltou em junho e nada mudou. Depois em agosto...
Em uma de minhas estadias no bar, misturei-me aos habitantes do recinto que não se incomodavam em inclinar o pescoço para assistir o programa da Record, Balanço Geral, que adota uma estratégia diferente para televisionar a denúncia. Uma mulher na sala de sua casa, sem nenhuma pintura e com alguns tijolos visíveis, chora. Reclama da fraude de um corretor. É o jornalismo que investe na tristeza, na expressão facial de dor, tocando o telespectador de forma trágica e dramatizada.
Professor do turno da noite, do projeto de Educação de Jovens e Adultos, ouço a indignação de meus alunos sobre as condições da escola, com ventiladores e ar condicionados danificados, paredes pichadas e material didático escasso. Um deles grita: “vou chamar a Globo para vir aqui resolver esse problema”. No entanto, o mesmo aluno quando vê professores fazendo greve, diz: “esse povo não quer é trabalhar”.
Esse tipo de ação popular da mídia dominante tem um objetivo claro: conduzir a indignação popular. Mas a dimensão do discurso televisivo pode ser compreendido através do semiolinguista francês Patrick Charaudeau: “o telespectador é, nesse caso, solicitado muito mais a crer e a sentir do que a compreender”.
Em um país com grande carência, esses programas têm duas funções: uma ligada a ideia do benfeitor, a grande corporação que ajuda os desafortunados; a segunda, que esses desafortunados não devem lutar contra a estrutura que os condena, mas saber que podem contar com alguém quando precisam exercer a cidadania.
Para tal usam da folia ou do drama para persuadir os seus ouvintes a sentirem e a interpretarem a realidade do jeito que mantém a vida lucrativa da emissora, deixando a estrutura incólume. A emoção é engendrada no discurso pelo espetáculo. A informação jornalística, por sua vez, apresenta-se carregada de valores que se revelam ao público definindo o que é democracia, adestrando a ação cidadã.
A dramatização torna-se um recurso imprescindível para captar o maior número de espectadores. O contrato de captação interessa a instância de recepção de maneira que não se resume apenas ao “princípio de seriedade inscrito na figura de instância cidadã, mas é também uma instância de desejos, valores e afetos”, conclui o professor Wander Emediato Souza da UFMG. O telespectador está interessado também “no princípio de prazer”, no entretenimento.
Marx e Engels acreditavam que a união da classe operária seria facilitada “pelo crescimento dos meios de comunicação que são criados pela grande indústria e que colocam em contato os operários de diferentes localidades”1. E que a burguesia não havia assegurado as condições que pudessem dar continuidade à existência servil do proletariado, por isso ela seria “incapaz de continuar por muito mais tempo sendo a classe dominante da sociedade"2.
Hoje sabemos, desde os estudos de Adorno, que os meios de comunicação, principalmente os criados pela “grande indústria”, agem não para unir os operários, mas para separá-los através da venda de sonhos inalcançáveis, assegurando a reprodução das relações tradicionais de produção.
O controle e a dominação devem assumir a forma de prazer ou de qualquer outra manifestação emocional para esconder o seu interesse principal, subjugar o outro. O
vínculo de dependência é obscurecido quando a repórter se mistura a multidão. A emissora torna-se uma igual, conduzindo, assim, o principal sentimento que da seguimento a vida: a esperança.
A indignação manipulada
É importante ter em mente que a Globo tem duas formas de passar uma mensagem (muito similar ao modelo midiático norte-americano)3. Através da TV aberta e de jornais como O Extra, Meia-hora etc. busca ser imparcial, embora o véu da neutralidade acaba sendo violado quando uma posição se revela, por exemplo, no Jornal Nacional ao se dedicar 90% de seu tempo a Lula.
Em contrapartida, a mensagem transmitida através da TV fechada (Globo News), do jornal O Globo, e da rádio CBN é muito mais carregada de parcialidade. Esses últimos veículos têm como consumidor a classe média, sendo esta o grande alvo para o qual essa mídia dispara seu interesse ideológico. É esse grupo que precisa “pensar” e, por isso, ter o pensamento moldado. O “povão”, por seu turno, deve estar condenado ao seu trabalho pesado, a suas viagens em trens entupidos, enquanto que a classe média seria a detentora da interpretação “correta” da realidade.
A indignação para os populares é transformada em entretenimento ou dramatização, já para a classe média deve ser fundamentada no princípio do liberalismo econômico, uma indignação que está associada ao mercado como solução. Daí, a indignação se volta para o preço da gasolina, ou para o preço da conta de luz.
Na TV aberta, os programas que tratam de cidadania tem a vocação de “fazer pelo povo”, de entrar em contato direto com ele. Já o mesmo tipo de programa, quando direcionado para a classe média, assume a missão de formador de opinião, ideológico, com o propósito de fazer com que essa classe se mova em prol do projeto de Estado defendido pelas grandes corporações, onde a política é demonizada e o mercado endeusado.
À esta última forma de indignação, que levou milhares de brasileiros às ruas para tirar Dilma do poder, está atrelada às maneiras pelas quais Aristóteles classifica tal sentimento. “Indignamo-nos, vendo os maus beneficiarem da riqueza, do poder e de vantagens análogas”, diz o filósofo grego. Já a indignação dos populares seria, de acordo com Aristóteles, contida porque não se tem o objetivo de despertar nessas
pessoas a ambição, apenas a subserviência: “as pessoas de caráter servil e desprovidas de ambição não são suscetíveis de se indignarem”.
O que estamos tentando dizer (se ainda não ficou claro) é que a instância midiática tem um discurso sobre cidadania para cada classe. Às camadas populares apresenta-se como intermediária entre a indignação (que é anulada) e a realização; às camadas médias coloca-se como a condutora, esclarecedora, produtora de ferramentas ideológicas para solucionar a sua indignação (que é alimentada).
Podemos até acreditar que a mídia se comporta desta maneira porque os pobres têm mais urgência, e o anseio daquele que passa por dificuldades o obriga a aceitar a primeira solução que o propõe. Para o filósofo Ernst Bloch, a urgência torna a ação vaga e indefinida. Não há reflexões.
Já a classe média, com menos urgência, passa por um trabalho mais pormenorizado. É nela que a má consciência que serve como névoa que esconde a infra-estrutura econômica deve ser implantada. Ela é também explorada, mas “como nenhuma exploração deve se deixar surpreender nua, ideologia é, por esse lado, a soma das representações em que cada sociedade se justificou e se transfigurou com o auxílio da má consciência”, nos explica Bloch. E dessa maneira, a sociedade continua se reproduzindo. Sendo sua indignação manipulada pelos que controlam os canais de difusão da informação, do entretenimento e do drama.
1MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2006. P. 54.
2Id. P. 57.
3BENSON, Rodney. Metamorfoses da mídia norte-americana. Le monde diplomatique Brasil. Ano 11, n. 122, set. pp. 5-7, 2017.
*Raphael Silva Fagundes é doutorando em História Política da UERJ e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí