O mercado de notícias falsas na internet

De que maneira as redes sociais potencializaram a boataria na cultura pública brasileira.

Escrito en MÍDIA el
De que maneira as redes sociais potencializaram a boataria na cultura pública brasileira Por Murilo Cleto* “Este filho da puta, desgraçado, deve ser caçado e morto a faca. Vou distribuir este escarnio para todo o Brasil. E vamos aguardar no que vai dar. Gostaria muito de enfiar 5 balas 1.40 no meio da testa deste filho da puta para ele nunca mais falar mau dos idosos. Desgraçado.” No dia 30 de janeiro, o jornalista e doutor em Ciência Política Leonardo Sakamoto já se preparava para mais uma viagem internacional. Alguns dias depois, falaria em Genebra, na ONU, sobre abolição do trabalho escravo no século XXI. Ainda que quisesse, não caberiam nas malas todas as mensagens recebidas neste interstício. Assim como a epígrafe deste artigo, os recados enviados a Sakamoto não pouparam intensidade. Ao todo, somaram-se a eles, a essa altura, já incontáveis 37 ameaças diretas de morte. O motivo: um jornal de Minas Gerais havia publicado, na capa, uma entrevista em que o blogueiro do portal UOL dizia, dentre outros impropérios, que aposentados eram inúteis e um peso para a sociedade. Foi tudo inventado. Sakamoto nunca disse nada disso. É possível até que tenham invertido os sinais de algumas das suas publicações a respeito do tema. Mas de nada adiantou a errata publicada em seguida pelo próprio jornal. Memes já circulavam incontrolavelmente pela rede e as ofensas, assim como as ameaças, só aumentaram. Sakamoto está longe de ser o único alvo do mercado de notícias falsas na internet. Junto a ele, figuram personalidades públicas como os parlamentares Jean Wyllys e Maria do Rosário, ainda hoje os preferidos nas redes sociais. Em comum, além do posicionamento à esquerda, os três têm a atuação profissional vinculada aos Direitos Humanos. E, no Brasil do século XXI, esse tem sido um grande problema. Com a ascensão dos regimes militares de direita na América do Sul a partir dos anos 1950, os Direitos Humanos, pauta historicamente vinculada aos liberais, acabaram se concentrando sobretudo na esquerda, que a esta altura já começava a romper com o stalinismo soviético diante da repercussão do XX Congresso do Partido Comunista. Depois da redemocratização, seguida pelo auge do neoliberalismo no bloco, emergiram governos de centro-esquerda que, grosso modo, representaram uma espécie de triunfo dos outrora perseguidos políticos durante a Guerra Fria. No Brasil, que até agora não soube lidar com este passado nem tão distante, é crescente a sensação de que esta esquerda, hoje no poder, tem invertido valores sociais em nome de um projeto de poder. Um deles, talvez o mais incansavelmente denunciado nas redes, é o de que os Direitos Humanos existem para acobertar e proteger bandidos. Além disso, a ideia de que produtores e difusores tradicionais de informação são cooptados por este governo estimulou a expansão de redes alternativas ao discurso oficial, o que é fundamentalmente bom para o funcionamento da democracia. Aos poucos, agências de checagem têm ocupado espaço nas mídias digitais do país, como as ótimas Aos Fatos e Lupa. Mas nem só de rigor vive a desconfiança. E, nas redes sociais, as páginas mais populares de contraponto aos discursos oficiais são justamente as menos criteriosas na checagem de informações. Na verdade, a grande maioria destes polos consegue flertar muito bem com a dinâmica virtual de consumo compartilhamento. Apesar da controvérsia gerada pela divulgação dos resultados de uma pesquisa conduzida por cientistas de dados do Facebook e da Universidade de Michigan, é possível dizer que a busca pelo contraditório não é exatamente uma das práticas mais comuns dos usuários nas redes sociais. Em geral, à esquerda e à direita, no campo dos valores ou das políticas econômicas, a tendência é de navegar em busca de confirmar posições pessoais. Com o Edge Rank, o algoritmo que direciona as publicações na linha do tempo dos usuários, o isolamento torna-se quase imperceptível. A opção de escolher ler apenas o que convém nas redes se deve a pelo menos dois fatores. O primeiro deles é mais pragmático. Ninguém tem tempo de conferir tudo e, neste caso, a afinidade é determinante para qualquer tipo de engajamento. O segundo corresponde a um dos grandes paradigmas da contemporaneidade, que é resultado de campanhas de desqualificação que naturalizam interlocutores dissonantes como maus-caracteres. “Não li e nem lerei” virou até meme de tão orgulhosamente repetida que é a expressão online. Novos e velhos portais de notícias sabem bem disso e tendem, cada vez mais, a lançar links em redes sociais já com a conclusão de todo o seu conteúdo nos títulos. O recurso amplia consideravelmente a possibilidade de engajamentos. Outro velho truque costuma ser bem utilizado especialmente no Facebook: com a opção de editar estes títulos, usuários criam redes próprias de compartilhamento para reforçar posições prévias e são retroalimentados por outros que também pensam parecido. Noutra ponta, a pressão social por posicionar-se acerca de qualquer tema a todo tempo para não parecer “alienado” – um velho axioma da esquerda agora também incorporado pela direita – enriqueceu como nunca este mercado de notícias falsas. Essa pressão, evidentemente, não é exercida somente sobre usuários, mas também sobre grandes veículos de comunicação, que têm acumulado barrigadas homéricas nas busca destes cliques. Em O Mercado de Notícias, o cineasta Jorge Furtado usa a peça moderna homônima como fio condutor de uma narrativa tragicômica da realidade das grandes redações no país. O combo acaba sendo explosivo: com a divergência naturalizada como desonestidade, o pouco tempo e a pouca disposição para consultá-la, além da ansiedade pelo posicionamento crítico dentro do timming progressivamente escasso na internet, os cliques de endosso ou partilha tornaram-se quase irresistíveis. Com o objetivo de barrar algumas dessas correntes que circulam sem qualquer fonte que as comprovasse, os sites E-Farsas e Boatos.org nadam, muitas vezes sem sucesso, contra a maré. E qualquer usuário com a menor experiência na rede sabe quais são, normalmente, as reações de quem é alertado por compartilhar alguma mentira. Uma delas, bastante recorrente, é o desdém: finge-se que não viu – isso quando o comentário dissonante não é apagado. Outra é a teimosia: se o objeto da denúncia é o fulano já encarado de antemão como desonesto, o conteúdo que a desmente só pode ser manipulado, financeira ou ideologicamente. Mas uma das mais emblemáticas é a explosiva: ainda que tenha compartilhado mentira, o usuário orgulha-se de que aquele conteúdo até poderia ser verdadeiro, considerando que o objeto da denúncia não é digno de confiança. E é bem por isso que as redes têm parecido imensos engarrafamentos. Enquanto a oposição ao governo federal insiste, muitas vezes sem critério, na marca da corrupção que se colou ao Partido dos Trabalhadores, a oposição estadual em São Paulo, por exemplo, reforça a seletividade da imprensa no trato de grandes escândalos do PSDB. E, sem negar o que há de verdadeiro em ambos os casos, a verdade é que nenhum dos lados parece disposto a entregar suas teses conclusivas, o que muitas vezes inclui a reprodução de conteúdo duvidoso ou deliberadamente mentiroso. No fim das contas, toda essa realidade contribuiu para que, ainda que desmentidas, as notícias falsas continuem exercendo influência sobre os usuários das mais variadas redes. Primeiro porque, mesmo com a existência do contraditório, o conteúdo original difamatório muito raramente é extinto. Em geral, ele costuma retornar periodicamente quando já se esqueceu do caso. Segundo porque operações acusatórias têm o hábito de influenciar a rejeição aos seus objetos de qualquer forma. Afinal, ainda não há como “desler” determinada publicação, por mais que muita gente sonhe com essa opção. E, ainda, a experiência mostra que cartas de retratação nunca têm tanto alcance quanto os boatos anteriormente lançados. Hoje, sabe-se, há verdadeiros profissionais que atuam no ramo de notícias falsas. Ainda que soem todas elas orgânicas, e, portanto, verdadeiras, as que têm maior alcance são, na maioria dos casos, criteriosamente bem planejadas porque dialogam com os mais íntimos preconceitos e hábitos virtuais de quem as consome e partilha. Há quem aposte que quem perde com isso são os próprios difamadores, o que não parece ser verdade, afinal os mecanismos de controle e responsabilização são ainda muito insuficientes. Há quem acredite que são os difamados. Mas, no fim das contas, quem perde mesmo é a cultura pública, contaminada por um sistema vicioso que não dá sinais de inflexão e que tem tudo para dar em tragédia. Que eu esteja enganado. * Murilo Cleto é historiador e mestre em Cultura e Sociedade. Atua como professor no Colégio Objetivo e no curso de Licenciatura em História das Faculdades Integradas de Itararé