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É preciso fazer uma reflexão sobre o papel da mídia na organização do nosso futebol, mas não só dele. Um modelo menos concentrador e mais democrático na comunicação seria muito bem vindo para o país como um todo. E também para o esporte
Por Glauco Faria e Renato Rovai*
No dia 9 de julho do ano passado, parte dos brasileiros acordou com uma sensação de ressaca que não era necessariamente associada ao consumo exagerado de álcool. Na véspera, a seleção brasileira havia sofrido a pior derrota de sua história, um inapelável 7 a 1 para a Alemanha, e a partir daquele momento a mídia começava a discutir os possíveis efeitos da derrota. Nascia o debate sobre o que fazer diante daquela tragédia esportiva que apontava para uma evidente necessidade de mudanças no futebol brasileiro.
No entanto, boa parte do que se viu e ouviu foi uma continuação da cobertura midiática que já vinha sendo feita antes e durante a Copa do Mundo. Mesmo emissoras de TV fechada que costumam ser críticas oscilavam entre a construção de novos “Barbosas”, no caso, o técnico Felipão, seu auxiliar Carlos Alberto Parreira ou um ou outro jogador. Ou centravam fogo na avaliação do trabalho da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), sem dúvida uma das maiores responsáveis pela situação algo calamitosa do futebol nacional, construída muito antes da goleada. Mas não se viu uma reflexão fundamental: qual o papel dos próprios meios de comunicação nessa quase tragédia futebolística?
Por exemplo, não se sabe quanto a Globo lucrou de forma direta e indireta com o Mundial. Estima-se que só com o dinheiro vindo de patrocinadores, o faturamento tenha chegado a 1,4 bilhão de reais1. Nada mal, em especial levando-se em conta a queda contínua de sua audiência.
Mas não foi só o grupo da família Marinho que lucrou. Mesmo quem não partilhou os direitos de transmissão adquiridos pela emissora na TV aberta, caso da Rede Bandeirantes, teve a oportunidade de fazer pacotes para anunciantes vendendo coberturas especiais em todos os meios. A Record, que não transmitiu o evento, anunciava ao mercado no início do ano cotas de patrocínio no valor de 47 milhões de reais2.
Isso talvez explique também a pouca ênfase dada aos protestos que ocorreram durante o Mundial, assim como as prisões arbitrárias e táticas repressivas utilizadas pelas polícias o que, aliás, representa o mais do mesmo da mídia tradicional: cobre-se o fato, faz-se a alusão política que interessa no momento, mas não se discute ou mesmo se divulga aquilo que os movimentos ou manifestantes pregam. O viés durante a Copa foi o mesmo de sempre, mas os questionamentos ficaram ainda mais submersos.
Globo, a dona da bola
Os interesses comerciais e o indisfarçável corporativismo talvez justifiquem também a falta de debate sobre o papel da mídia no cenário do futebol, que seria um dos pontos fundamentais a ser tratado após o duelo contra a seleção alemã. Se os direitos de transmissão são um negócio obscuro para a Fifa na negociação do Mundial, não são mais transparentes quando voltamos os olhos para o nosso quintal. Jornalistas esportivos sérios garantem que a CBF ganha, proporcionalmente, mais do que os clubes. Mas quanto ganha a Globo, por exemplo?
E a bem da verdade, não só ela, ainda que seja a principal detentora dos direitos de transmissão dos principais torneios do Brasil. No total, são sete emissoras que dividem tais direitos nas principais competições nacionais, a maior parte delas na TV fechada3. Assim, é de esperar que o debate sobre a participação da televisão no futebol seja mais restrito nesses canais, mas impressiona a falta da discussão em outros meios como a mídia impressa e a internet.
Quando houve uma disputa entre Globo e Record pela transmissão do campeonato brasileiro, em 2011, com uma oferta muito mais generosa do grupo de Edir Macedo para o Clube dos Treze, associação dos principais times do Brasil que gerenciava a venda de direitos de transmissão, um cenário de dependência financeira do futebol brasileiro se desnudou. O duelo entre as duas gigantes fez não só com que o Clube dos Treze se desmanchasse como também aumentou o poder da Vênus Platinada sobre o mundo da bola.
Naquele momento já era possível perceber que o poder da emissora para causar tal mudança advinha dos seus cofres. Mesmo que quisessem, alguns clubes não poderiam sair debaixo de suas asas porque a Globo tem por hábito adiantar o valor de cotas de direitos de transmissão de anos vindouros. Ou seja, algumas equipes devem para a Globo até 2016 ou mais. É algo bastante similar a outro hábito monopolista da emissora, o BV (Bonificação por Volume) que é pago às agências de publicidade e que faz com que se concentrem os recursos do mercado publicitário nas mãos de poucos. Ou seja, uma forma de corrupção legalizada.
Dessa ingerência quase que absoluta no esporte mais popular do Brasil, seguem-se outras mazelas. A transmissão excessiva de jogos de clubes mais populares, em especial Flamengo e Corinthians, para a maioria das praças, contribuiu para a desvalorização do futebol como um todo e, embora possa parecer que seja mais benéfico para ambos, o que geraria vantagens desportivas mais adiante, trata-se de um jogo em que todos perdem porque o esporte em si se desgasta e cansa o telespectador. Um exemplo é que foi justamente a transmissão de uma partida do Corinthians, contra o Coritiba, no dia 3 de agosto, a pior audiência da emissora em jogos do campeonato brasileiro em 20144. O que parece bom a curto prazo, não se sustenta ao longo do tempo.
Outro fato que prejudica o futebol mesmo como produto, mas também como patrimônio cultural, é a forma como os direitos de transmissão são distribuídos entre os clubes. Se a estrutura entre os doze maiores permaneceu quase inalterada proporcionalmente mesmo com o fim do Clube dos Treze, tendo aumentado de forma geral a receita para todos, o fosso entre estes e os demais times do país se amplia. Sem introduzir o mérito técnico (ou seja o desempenho de uma equipe em uma competição) como fator que influencie a distribuição desses recursos, à semelhança do que acontece em ligas de outros países, os clubes menores ficam à míngua, tornando-se menos competitivos e servindo muitas vezes de “barriga de aluguel” de empresários. O próprio sentido de competição é esvaziado pela força do dinheiro.
É essa discussão sobre a relação entre poderosos meios de comunicação e a incapacidade de fazer uma autocrítica de sua participação no caos do futebol escancarado nos 7 a 1 que não ocorreu durante a Copa e ainda não aparece como questão primordial nas discussões sobre o que mudar no esporte daqui em diante. Não deixa de ser irônico, por exemplo, ver comentaristas tecerem críticas à situação fiscal dos clubes de futebol quando todos sabem que a saúde financeira de algumas emissoras e seus débitos com o fisco não são exatamente exemplo de boa gestão, vide o processo da Receita Federal contra a Globo, em decorrência justamente de possível sonegação decorrente da compra dos direitos de transmissão relativos à Copa de 20025, assunto ignorado pela mídia tradicional. E, nesse caso, não é só o corporativismo que explica.
Quem sabe um dos legados da hoje quase distante Copa não seja uma reflexão de diversos setores a respeito do papel da mídia na organização do nosso futebol, mas não só dele. De como a concentração midiática tem feito muito mal ao desenvolvimento de várias áreas no país. A responsabilidade pelos 7 a 1 também é da Globo e de outras emissoras que se associam às suas práticas. Como também muito das nossas carências na área de cultura, entretenimento, educação etc. Um modelo menos concentrador e mais democrático na comunicação seria muito bem vindo para o país como um todo. Também para o futebol.
1# http://intervozes.org.br/fifa-e-globo-queremos-jogar-tambem/
2# http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noticias/2014/03/11/Record-sem-Copa-mas-com-plano.html
3# http://trivela.uol.com.br/veja-quem-tem-os-direitos-de-transmissao-dos-principais-torneios-de-futebol/
4# http://maquinadoesporte.uol.com.br/artigo/com-corinthians-campeonato-brasileiro-amarga-sua-pior-audiencia-em-2014_26899.html
5# https://revistaforum.com.br/blogdorovai/2014/07/16/sonegacao-da-globo/
Foto:
*Texto adaptado, publicado originalmente na edição nº 14 da revista Mídia com Democracia, da FNDC