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Mais uma vez as mulheres negras são estereotipadas em sua sexualidade
Por Ângela Figueiredo*
Na quarta feira, dia 16 de setembro, excepcionalmente, eu estava em casa quando meu filho ligou a TV e estava passando o programa Encontros, de Fátima Bernardes. Então ele me chamou: – Mãe, venha ver o programa que estão discutindo o tema do novo seriado da Rede Globo, que já está dando problema! Diante dos debates que têm ocorrido nas redes e nos movimentos sociais, apressei-me para assistir ao programa na esperança de que a emissora e a apresentadora tivessem o mínimo de sensatez para tratar do tema.
O problema é que toda vez que se fala da população negra no Brasil, qualquer um pode se pronunciar, não é preciso ser estudioso, pesquisador do tema ou mesmo apresentar dados de pesquisas, basta simplesmente dizer a opinião pessoal e tudo estará resolvido. Somos muitos pesquisadores e pesquisadoras que trabalham com o tema das desigualdades de gênero e raça no Brasil. Entretanto, somos absolutamente ignorados pela emissora, que prefere escolher a dedos uma pessoa que corrobore com a opinião dela, nesse caso em especial, o convidado para falar foi o cantor Carlinhos Brown. Todos sabem que Brown é mais indígena do que negro, basta observar o uso constante que ele faz do cocar, mas, naquela ocasião ele se constituiu como um representante legítimo para falar de um tema complexo: a relação entre gênero, raça e sexualidade. O depoimento de Brown não acrescentava nada às representações do senso comum. Realmente, ele prestou um desserviço à comunidade negra no Brasil que luta a duras penas por respeito e dignidade. Além dele, estava o autor da trama Falabella, e as quatro protagonistas negras. A Rede Globo, como sempre, perdeu uma grande oportunidade de ser democrática e abrir espaço para um verdadeiro debate.
Retomando o diálogo com o meu filho, pois, curioso como ele é, queria porque queria compreender qual o problema com o programa. Eu tentei explicar rapidamente o que a literatura feminista negra e suas diferentes abordagens têm realizado ao longo dos últimos 20 anos. Pensei em começar falando da história de Saartjie Baartman (1789-1815),Vênus Hotentote, que nasceu numa tribo hotentote na África do Sul. Ela possuía nádegas hipertrofiadas (esteatopigia), o que era uma característica nas mulheres de seu grupo étnico e tal aspecto despertou o interesse de seu proprietário holandês de exibi-la como atração na Europa. A partir dos 19 anos, Saartjie era exibida aos curiosos como uma exótica mistura humana e simiesca em apresentações na qual ela era forçada a dançar de modo grotesco, imitando animais, tendo suas nádegas tocadas pelos expectadores. A desumanização a que foi submetida Saartjie marcou não apenas a vida dela mais de todas as mulheres negras. Mas, tínhamos pouco tempo para falar e ao mesmo tempo assistir ao programa...
Então, busquei informá-lo, muito rapidamente, antes que ele perdesse o interesse pelo assunto, do modo como bell hooks, uma proeminente feminista afro-americana considera que: “O sexismo e o racismo, atuando juntos, perpetuam uma iconografia de representação da mulher negra que imprime na consciência cultural coletiva a idéia de que ela está neste planeta principalmente para servir aos outros (HOOKS, 1995; 468). Busquei dizer a ele como observou Collins (2005), que durante a escravidão, os negros não eram donos do seu corpo e nem da sua sexualidade. Construídos pelo discurso do outro, o corpo negro esteve associado a aberrações e, consequentemente, a sexualidade negra sempre foi relacionada a algo animalesco, descontrolado e violento e o modo como no Brasil o corpo da mulata também foi sexualizado a partir do olhar do outro.
De modo contrário, há um movimento afirmativo da negritude no Brasil e em outros lugares do mundo que buscam ressignificar a experiência da mulher negra. Nesse sentido, há uma investida do feminismo negro no Brasil na reconstrução das representações das mulheres negras, que tem permitido nos últimos anos que ela exiba com orgulho um corpo politizado, valorizado pelo discurso cujo principal objetivo é resgatar a autoestima negra, distanciando-se desse modo das representações associadas ao imaginário nacional que sempre nos coloca em um lugar subalternizado e as emissoras de televisão reproduz e reforça esta lógica, quando coloca as atrizes negras representando o papel de doméstica na televisão ou como pessoas cuja subjetividade e identidade são construídas fundamentalmente baseada no sexo. No final dos anos 80, Lélia Gonzáles denunciou o racismo e o sexismo existentes na sociedade brasileira. A autora definiu como neurose, a relação de desejo e de ódio mantidos pelo corpo negro na sociedade brasileira. Enfim, havia muitas informações para serem passadas em um curto espaço de tempo e eu temia por um súbito desinteresse por parte dele.
Nesse sentido, voltei a destacar, a emergência do discurso afirmativo deriva, inevitavelmente, de uma investida anti-racista e anti-sexista no sentido de reinventar, reconstruir o corpo negro, ou, como sugere Collins, resulta de um esforço e de uma busca por uma auto-definição, que seria o primeiro passo para a construção de um ponto de vista crítico. Isso quer dizer que as mulheres que se auto-definem como negras recusam serem construídas pelo olhar do outro, e é exatamente este o olhar que constrói o programa “O Sexo e as Nega”. Sabemos que é preciso desconstruir para reconstruir uma nova imagem, ou melhor, é preciso assumir o controle da própria imagem, como nos ensina Collins (2000). É por isso que é tão importante os embates com uma grande emissora como a Rede Globo, que ainda insiste em nos representar desse modo, sempre como seres hiper-sexualizados. Ainda que desigual, esta luta é muito importante para nós. E meu filho perguntou: – Mãe, você acha que a Rede Globo vai mudar? E eu lhe respondi: – provavelmente não. Ele disse: – Você é contra porque a TV fala de sexo? Eu disse: Não! Se houvesse vários programas com protagonistas negros, que incluíssem as diversas representações possíveis, este seria apenas mais um. O problema é que só existe este programa e, desse modo, a emissora só fortalece os estereótipos.
Por último, ele lembrou que há alguns dias atrás, ele leu nas redes sociais que a atriz Neusa Borges, aquela que sempre fazia o papel de empregada de Bruna Marquezine nas novelas, deixou de atuar e agora estava vivendo através da comercialização das roupas de Bruna... Mas, esta é uma história que ficará para mais adiante!
* Ângela Figueiredo - Professora e Pesquisadora do Centro de Artes Humanidades e letras (CAHL/UFRB) e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UFRB)
Foto: Divulgação