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Túlio Vianna vê o Marco Civil como uma lei pretensiosa: "Quer regular muita coisa e não consegue"
Por Luana Macieira, na UFMG
No final do mês passado, a Câmara dos Deputados aprovou o Marco Civil da Internet, lei que vai definir o funcionamento da rede no Brasil. Dentre os artigos aprovados, estão a neutralidade da internet e a obrigação dos provedores armazenarem dados de navegação dos seus usuários por pelo menos seis meses.
O Portal UFMG conversou com o professor Túlio Vianna, da Faculdade de Direito da UFMG. Especialista em crimes informáticos, ele falou sobre alguns pontos polêmicos e divergências do projeto de lei que seguiu para apreciação no Senado.
Alguns especialistas definem o Marco Civil como uma espécie de constituição que seria responsável por reger o funcionamento da internet brasileira. Essa comparação procede?
Essa comparação não é boa, uma vez que a Constituição é uma norma hierarquicamente superior às demais. O Marco Civil é uma lei comum que trata de alguns princípios que serão válidos até que uma nova lei os modifique, enquanto a Constituição foi concebida para ser um marco jurídico do país. Temos que considerar que o Marco Civil possui elementos semelhantes aos princípios encontrados nas constituições, mas a comparação é mais enganosa que didática.
Qual o maior avanço do Marco Civil?
É o artigo que trata da neutralidade da rede que impede que os provedores de acesso deem tratamento privilegiado para alguns serviços da Internet em detrimento de outros. Sem a neutralidade, os provedores poderiam privilegiar a velocidade de acesso a vídeos no Youtube, por exemplo, em detrimento das taxas de downloads de vídeos por torrents, o que seria bastante desigual. Uma das grandes belezas da internet é seu formato difuso e democrático em sua essência, e essa neutralidade precisa ser garantida. A neutralidade não estava prevista expressamente antes do marco, e essa garantia é um grande avanço, visto que a internet deve ser um território livre e com tratamento igualitário.
Se a internet é livre, o Marco Civil não pode ser visto como uma tentativa de regulá-la?
O Marco Civil é uma lei pretensiosa, pois quer regular muita coisa e não consegue. Há um desejo de se legislar para a internet, mas ela não deve ser vista como um ambiente tão diferenciado. O que não pode sair em jornal, não se pode publicar na internet. Por isso o Marco Civil vai bem em padronizar ações e medidas, mas peca em vários pontos, como a obrigação de os provedores armazenarem por seis meses os registros de acesso dos usuários.
Como esse armazenamento de dados pode afetar negativamente o usuário comum?
Não vejo motivo para o Estado obrigar os provedores a guardarem esse tipo de informação. Esse artigo é um retrocesso e me assusta ver os ativistas defendendo o Marco Civil com uma visão pouco crítica com relação a alguns fatores. O armazenamento de dados não é bom e as pessoas devem se preocupar com isso. Quando entrar em uma página, o usuário de internet terá esse acesso registrado e guardado pelo provedor. Para a maioria dos acessos comuns isso pode não ser visto como problema, mas se pensarmos em termos de privacidade, há alguns acessos delicados; talvez o indivíduo não tenha interesse, por exemplo, que o provedor guarde que ele entrou em uma página de conteúdo pornográfico. As pessoas não querem se sentir vigiadas.
Este artigo fere o direito à privacidade?
Sim. No momento em que obriga os provedores a guardar essa informação, o próprio Estado está invadindo a privacidade do usuário e preservando dados que, a princípio, não têm porque serem guardados.
O fato de que tais informações só poderão ser acessadas por via judicial não é uma garantia de preservação da intimidade do usuário?
Essa informação só pode ser acessada via judicial, mas estamos no Brasil. Se alguém está guardando essa informação, o que pode ser feito com ela? Quem garante que ela não será usada pelos provedores? Num país onde se vê declarações de imposto de renda sendo vendidas em praça pública, quem garante que não vão vender essas informações? É algo bastante delicado. Para que guardar essas informações? Não vejo utilidade nisso, as pessoas que usam a internet para a prática de crimes possuem meios de camuflar. É uma medida inócua para quem está mal intencionado e muito prejudicial para o usuário comum, que terá sua privacidade vigiada. Além disso, um banco de dados dessa magnitude permite que sejam traçados perfis dos usuários da internet (a que horas está online, os sites que frequenta, quando acessa a internet de casa etc). Essa informação pode parar nas mãos de um sequestrador, por exemplo, que vai saber o endereço de onde a pessoa acessa a internet e quando ela está em casa, por exemplo.
Segundo a proposta do Marco Civil, a exclusão de conteúdo da internet também só poderá ser solicitada por ordem judicial, com exceção de conteúdos pornográficos disponibilizados online por motivo de vingança. Essa medida preserva a liberdade de expressão em ambiente virtual?
A necessidade da medida judicial para tirar algum conteúdo do ar na internet assegura a liberdade de expressão, que é uma garantia fundamental, uma vez que não se pode pensar em nenhuma espécie de censura no estado democrático de direito. Porém não deveria haver exceções, como essa do conteúdo pornográfico. O Marco Civil prevê que, neste caso, a pessoa possa solicitar diretamente ao provedor que o conteúdo em questão seja retirado do ar. O provedor não tem competência técnica nem legal para isso, e o Marco Civil está dando esse poder a ele. O Estado está delegando a competência de julgar para uma empresa privada.
O que poderia ser feito neste caso, uma vez que é cada vez mais comuns vídeos pornográficos disponibilizados online sem a autorização ou consentimento da pessoa?
Esse conteúdos também só poderiam ser retirados com autorização judicial. O judiciário tem que garantir esse tipo de julgamento de forma célere. A pessoa deve recorrer à justiça quando se sentir lesada. É óbvio que vídeo pornográfico não autorizado gera um dano muito grande na imagem da pessoa, mas há outros tipos de publicações que também geram isso, como uma montagem de conteúdo racista. Temos que criar procedimentos para que essa medida judicial seja rápida, e não abrir exceções. Criando essa exceção para os vídeos pornográficos, esse artigo trata o assunto de forma moralista, dando um tratamento especial e desigual à questão pornográfica, como se ela fosse mais grave que as outras.
Como analisa a participação popular em torno da formulação do Marco Civil?
A participação popular é boa, mas nem sempre resulta em uma lei melhor. O Marco Civil é muito contraditório, gerando avanços em alguns artigos e retrocessos em outros. É uma lei que parece estar preocupada com a privacidade e o tratamento igualitário de todos os usuários, mas que também propõe que empresas de internet guardem dados privados de navegação. Essa contradição reflete a grande quantidade de pessoas que participaram da sua formulação. A regulação deveria ocorrer para manter a internet livre, mas infelizmente o Marco Civil não faz isso como deveria. Ele dá dois passos para frente e um para trás. Como se trata de uma lei ordinária, não devemos ficar muito empolgados, pois não garante muita coisa e pode sofrer alterações a qualquer momento.
Foto de capa: Cynthia Semíramis