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Personagens gays existem desde os anos 70 nas telenovelas, mas, antes de serem consideradas subversivas, devem ser lidas como reprodução de uma ideologia em torno da família
Por Marcelo Hailer
[caption id="attachment_41226" align="alignleft" width="300"] Foto: Personagens gays se beijam em último capítulo de "Amor à Vida"[/caption]
Na última sexta-feira (31) aconteceu o tão esperado e desejado beijo gay (até campanhas foram mobilizadas nas redes sociais) em uma novela das 21h da Rede Globo. O fato se deu no último capítulo de “Amor à Vida”, que encerrou a trama com o beijo entre as personagens Félix (Mateus Solano) e Nico (Thiago Fragoso) e com o perdão do pai de Félix, César (Antônio Fagundes), que durante toda a história desfiou comentários homofóbicos ao filho.
Não houve língua, mas também não foi um beijo envergonhado. Foi importante a realização do beijo entre dois homens no produto televiso mais consumido no Brasil? Sem sombra de dúvidas, ainda mais quando pensamos no momento político em que o país vive no que diz respeito aos Direitos Humanos das LGBT, sob ataque fundamentalista desde 2011, com a simbólica derrubada do Escola Sem Homofobia. Sem contar que o beijo tem um efeito pedagógico sobre a população, gerando uma discussão nacional que se arrasta desde sexta-feira (31).
Porém, apesar de todo o clima de Fla-Flu, é preciso atentar para outras questões que não dizem respeito apenas ao folhetim “Amor à Vida” e muito menos tem relação com o beijo, mas tem a ver com a presença histórica de personagens gays nas telenovelas das 21h (até os anos 90, das 20h) da Rede Globo. Existe uma questão de raça, classe e ideologia que marca a raiz das novelas e as personagens gays não escapam disso, com ou sem beijo.
Matrimônio e felicidade
A presença de personagens homossexuais em novelas não é algo novo. A primeira a tratar de tal assunto foi “O Rebu” (1975), exibida às 22h e que tinha entre os seus personagens Cauê (Buza Ferraz), michê que mantinha uma relação afetivo-sexual com o banqueiro Conrad Mahler (Ziembisnki). Esse tipo de caracterização da homossexualidade atravessa toda a década de 1970 e 1980. Os tipos sempre serão sujeitos obscuros e sem narrativa, ou seja, sem começo, meio e fim.
A virada na representação das relações homoafetivas pode ser identificada na novela “A Próxima Vítima”, a partir do casal Sandrinho (André Gonçalves) e Jeff (Lui Mendes) que, além da questão homossexual, trouxe também o debate das relações inter-raciais, visto que Sandrinho era branco e Jeff, negro. A história do casal fez grande sucesso e no final eles terminaram casados.
Na primeira década do século XXI, a presença de homossexuais nas telenovelas vai se tornar algo corriqueiro e é por conta disso mesmo que a urgência de um beijo gay ganha força, pois, enquanto as personagens heterossexuais mantêm relações sexuais em quase todos os capítulos, os casais homoafetivos seguem assexuados, como se fossem bons amigos que dividem o mesmo teto.
Três novelas deste início de século podem ser consideradas paradigmáticas no que diz respeito ao avanço na construção textual destas personagens, são elas: “América” (2005), que teve o beijo entre os personagens Junior (Bruno Gagliasso) e Zeca (Erom Cordeiro) censurado; “Duas Caras” (2008), que avança no debate com a personagem Bernardinho (Thiago Mendonça), que mantém um triângulo amoroso e uma dupla paternidade; e, por fim, “Insensato Coração” (2011) com uma galeria de cinco personagens homossexuais. E o que há de comum entre estas personagens? Além do fator de todos serem homossexuais, todos finalizam suas histórias casados, assim como qualquer outro personagem do folhetim onde estão inseridos.
Portanto, a única diferença de “Amor à Vida” para as suas antecessoras é que houve o beijo entre o casal gay, fora isso, todos estão dentro de um mesmo quadro normativo: monogamia, branquitude e reprodução familiar. Bernardinho encerra a sua história sob a benção de um juiz para o seu casamento; Hugo (Marcos Damigo) e Eduardo (Rodrigo Andrade) assinam um contrato de união estável no final de “Insensato Coração”, os outro personagens, que são pobres, ou não têm fim ou são assassinados, como foi o caso de Gilvan (Miguel Roncato) ; Félix e Niko terminam casados e com dois filhos.
Ou seja, se a questão do beijo entre personagens gays era algo que não era possível mais para adiar, então, que ele seja feito dentro de um quadro que não fuja do padrão moral das novelas (e sem língua, por favor). O beijo gay com certeza é um avanço, mas, não se pode esquecer que, mesmo sendo um beijo entre dois homens, está dentro de uma galeria ideológica que propaga e transforma em verdade social, a partir da repetição (todo término de novela há inúmeros partos e casamentos), que o status de “felicidade” e “final feliz” está reduzido ao matrimônio e a reprodução. Portanto, o que está fora desta conta é “anormal” e “infeliz”.