Por Maria Carolina Trevisan*
Foi em 1995, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu a existência de racismo e desigualdade racial no País, que políticas públicas específicas para a população negra passaram a ser discutidas mais fortemente pelo poder público, impulsionadas pela luta histórica do Movimento Negro e de setores progressistas da sociedade civil. O tema teve destaque em 2001, com a III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Conexas, em Durban, África do Sul. Naquele momento, o governo brasileiro se comprometeu a adotar oficialmente medidas contra o racismo, além de oferecer oportunidades para a população negra.
No início do governo Lula, em 2003, esse debate ganhou contornos polêmicos com o estabelecimento das primeiras reservas de vagas para negros em instituições de ensino superior, como na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), na Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). A reação de 200 alunos excluídos – que entraram com mandados de segurança contra a medida – e a tese de que reconhecer a existência de raças é um “racismo às avessas” tornaram evidente o quanto ainda seria preciso avançar – política, econômica, cultural e socialmente – no enfrentamento ao racismo.
Nesse momento, o “racismo à brasileira” (tão enraizado que muitas vezes é aceito) mostrou sua face mais cruel, e os jornais deram espaço a teses contrárias às cotas raciais, levantando argumentos que vão desde afirmar que as cotas criariam racismo no Brasil (como se não houvesse) até afirmações relativas ao mérito dos alunos cotistas, que não dariam conta de acompanhar os cursos. Com as primeiras turmas de cotistas se formando, essas teses foram sendo derrubadas.
É princípio do jornalismo informar sobre notícias e ideias de interesse público e vigiar o poder, promovendo o diálogo e fomentando a opinião pública. Portanto, é fundamental acompanhar políticas públicas para uma cobertura de qualidade. Mas como a imprensa cobre a questão racial no Brasil? No final de 2012, foi publicado o resultado do projeto “Imprensa e Racismo”, cuja primeira etapa consiste na análise de 54 periódicos de todas as regiões do país, entre 2007 e 2010. Executado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), em parceria com organizações negras, e regido por um conselho consultivo formado por líderes do Movimento Negro, com financiamento das fundações Kellogg e Ford, os dados apontam algumas tendências principais:
A pesquisa expõe um noticiário tecnicamente qualificado, porém permeado por um debate ideológico. De maneira predominante, quando se fala em ação afirmativa, fala-se em cotas raciais (18% do total de textos se destina a esse debate). Na grande maioria das vezes, esse tema é publicado nos espaços de opinião dos jornais, considerados nobres, correspondendo a 32% de todo o noticiário analisado, o que foge à tendência comum para uma temática específica. É importante notar que são os artigos assinados que encabeçam o conjunto de textos opinativos, trazendo em sua maioria posicionamentos contrários ao sistema de cotas. Os editoriais são os espaços opinativos que mais adotam essa posição, o que sugere também a linha editorial dos veículos em questão. Ainda assim, é positivo o frequente uso de estatísticas (em 25% das notícias) e de elementos de contextualização (73,9%), que vão além dos fatos, apontando para uma maior profundidade na abordagem do tema racial.
Chama a atenção também o fato de um jornal regional liderar, em termos quantitativos, o debate sobre racismo: A Tarde, de Salvador (BA), foi o impresso que mais publicou textos acerca da problemática analisada (13, 1% do total da amostra), seguido pelo jornal O Estado de S.Paulo (8,4%), de abrangência nacional. Pode-se concluir, portanto, que a cobertura é motivada, dentre outros fatores, por movimentos sociais, em especial o Movimento Negro, de forte atuação na Bahia. Ainda assim, esse ator político é sub-representado nas reportagens sobre a questão racial.
As temáticas invisíveis
A pesquisa também mostrou que assuntos de extrema importância para o debate sobre racismo no Brasil têm significativa invisibilidade no noticiário estudado. Temas como saúde da população negra, relações entre raça/etnia e gênero, e ensino de História da África, por exemplo, aparecem em menos que 2% das notícias pesquisadas. Da mesma forma, é diminuta a abordagem da relação entre a permanência da população negra em posições socioeconômicas desfavoráveis quando comparada aos não negros.
É no noticiário sobre violência que se verifica uma das negligências mais sérias da cobertura jornalística. Observa-se uma clara desvinculação entre a violência física praticada contra a população negra no Brasil e o debate sobre seu contexto de produção – ou seja, a violência simbólica do racismo, como demonstra a íntegra da pesquisa. Significa que quando a imprensa trata de violência física não questiona se houve racismo, mesmo que as estatísticas mostrem que a principal vítima de homicídio no Brasil é o jovem negro.
Das reportagens que tratam de violência física seguida de óbito, apenas 3,2% se referem ao tema racial. Essa ausência poderia ser superada caso o noticiário mencionasse, por exemplo, as características étnico-raciais das vítimas. É uma informação relativamente simples de ser obtida e publicada, mas seria necessária uma mudança de comportamento dos jornalistas, um outro olhar no tratamento do tema. O esforço seria suficiente para evidenciar uma situação extremamente grave e colaborar com a manutenção da vida e o combate ao racismo no Brasil. O avanço do compromisso por justiça racial é incontestável. A imprensa deve acompanhar esse panorama. F*Maria Carolina Trevisan é jornalista e coordenadora política do projeto “Imprensa e Racismo” na ANDI.