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Com base na defesa de liberdade científica, exposta no art. 5º, IX, da CF, houve autorização judicial para práticas profissionais destinadas à reorientação sexual. O assunto é mais do que controverso e nos exige séria reflexão. Confira o que diz o advogado Antonio Rodrigo Machado
Por Antonio Rodrigo Machado*
A decisão judicial provisória proferida pelo Juízo da 14ª Vara Federal de Brasília supostamente aplicou interpretação conforme a Constituição à Resolução 001/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP). No caso, trata-se de uma ação popular ajuizada sob o argumento de que a proibição de atendimento profissional e pesquisas relacionadas à reorientação sexual ofenderiam o patrimônio cultural brasileiro. Com base na defesa de liberdade científica, exposta no art. 5º, IX, da CF, houve autorização judicial para práticas profissionais destinadas à reorientação sexual. O assunto é mais do que controverso e nos exige séria reflexão. Para ajudar nessa tarefa, apresento algumas informações para conduzir os debates sobre a propalada decisão:
- Quais as exatas palavras do magistrado na decisão?Diferentemente de um filme, para começar a entender uma decisão judicial vale começar pelo seu fim, aquilo que o direito chama de dispositivo. O texto exato da decisão proíbe o Conselho Federal de Psicologia de “impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente a (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria”.
- O que objetivamente ficou decidido?Na decisão liminar, o magistrado determinou que o CFP não impedisse qualquer psicólogo de fazer duas coisas: a) Promover atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual; e b) Promover estudos pertinentes à (re)orientação sexual. Ao liberar atendimento profissional para (re)orientar sexualmente, a fundamentação da decisão concede interpretação à Resolução nº 01/1999 para garantir a liberdade científica estabelecida pelo artigo 5º, IX, da Constituição Federal. Mas importante ressaltar que pesquisa científica e atendimento profissional são questões distintas.
- Então a decisão autorizou a cura gay? Ao autorizar que profissionais psicólogos ofereçam o serviço de (re)orientação sexual, a decisão torna lícita a prestação de um serviço que tenha como escopo uma possível mudança de orientação sexual. Na prática, o psicólogo que disser ser possível a (re)orientação sexual, ainda que sem nenhuma base científica ou respaldo do Conselho Federal de Psicologia, estará protegido pela decisão judicial provisória.
- Existe diferença entre pesquisa científica e atendimento profissional? A pesquisa é atividade de investigação e construção de conhecimento e pode ser desenvolvida em diversos campos científicos. Já o exercício profissional é permeado pelo conjunto de conhecimentos e práticas necessárias à prestação do serviço. Embora a decisão coloque as duas coisas sempre juntas para incluir o argumento constitucional da liberdade científica, são atividades totalmente distintas. Uma pesquisa científica pode desenvolver tratamento que será recepcionado pelo exercício profissional no futuro, mas antes dessa aprovação, sua utilização será caracterizada como infração ética. Em regra, comissões de éticas de organizações ligadas à ciência se encarregam de fazer a aprovação de pesquisas. Os Conselhos de Fiscalização têm competência apenas para regulamentar o exercício profissional de categorias definidas em lei. A pesquisa científica não é regulamentada pelos conselhos. O argumento da decisão judicial sobre a livre expressão da liberdade científica exposto no art. 5º, IX, da Constituição não possui relação com a Resolução 001/1999 porque ela não versa sobre estudo ou pesquisa feita por psicólogos.
- O Conselho Federal de Psicologia regulamenta pesquisa científica da psicologia?Não. O Conselho Federal de Psicologia, criado pela Lei 5.766/1971, e seus conselhos regionais são “destinados a orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de Psicólogo e zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe”(art. 1º). A pesquisa científica e estudos são desenvolvidos no âmbito das Universidades e Centros de Pesquisa. Cada Universidade possui seu conselho de ética que autoriza ou não o início de uma determinada pesquisa científica. Isso não é regulado por Conselho de Fiscalização Profissional.
- A decisão proíbe o CFP de fazer algo que nunca fez?Em parte sim. Conselho de Fiscalização Profissional não regulamenta pesquisa, mas apenas o atendimento profissional. Quando o Juiz garante o atendimento profissional para a (re)orientação sexual ele está tratando de competência do CFP, mas quando fala de pesquisa científica, não. O problema é que a decisão é fundamentada no artigo constitucional que garante a liberdade científica no Brasil. O art. 5º, IX, é usado para autorizar duas coisas que são diferentes: o atendimento profissional e a pesquisa. Para quem quiser conhecer um pouco mais a questão, vale ler o próprio art. 5º, IX, da CF, que estabelece a liberdade de expressão científica, conforme decisão analisada, além dos artigos 218 a 219-A do texto constitucional que regulamentam o desenvolvimento, a pesquisa e a capacitação científica no Brasil.
- O CFP poderia, com base na Constituição, regulamentar o atendimento profissional? Sim. O fundamento de existência dos Conselhos de Fiscalização Profissional é o art. 5º, XIII, da CF que define ser “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. O conselho é entidade da Administração Pública indireta e existe para definir os termos das qualificações essenciais ao exercício profissional. O art. 6º da Lei 5.766/71, norma que criou o CFP, define que cabe ao órgão “orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de Psicólogo”, além de “expedir as resoluções necessárias ao cumprimento das leis em vigor e das que venham modificar as atribuições e competência dos profissionais de Psicologia”.
- A Resolução 001/1999 do CFP permite tratar questões de sexualidade?Sim. O tratamento dos mais diversos problemas humanos é livre dentro da esfera de atendimento profissional individual e a Resolução não trata disso. Quem precisar de atendimento para resolver problema em relação às questões de sexualidade pode e poderá procurar um psicólogo. O que a Resolução 01/1999 determina é o tratamento não discriminatório no atendimento sobre questões de sexualidade, declarando que “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”(art. 3º).
- Qual o conteúdo geral da Resolução? A Resolução nº 01/1999 é bem simples e de fácil leitura. Ela contém, basicamente, seis pontos de mandamento normativo: a) Os psicólogos devem se pautar pela não discriminação e a promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade; b) Devem contribuir para reflexão sobre o preconceito contra aqueles que apresentam práticas homoeróticas; c) Não exercer qualquer ação que favoreça patologização de comportamento/práticas homoeróticas; d) Não adotar ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados; e) Não colaborar com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades; f) Não se pronunciar publicamente – nos meios de comunicação de massa – de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de desordem psíquica. A resolução trata de exercício da profissão, não de estudo ou pesquisa.
- Se a resolução é de 1999, por que só agora está sendo questionada? Na verdade, ela não está sendo questionada somente agora. Existe um setor econômico que promove ações publicitárias das propaladas “terapias de reversão da homossexualidade” e acabam estigmatizando a população LGBT que são discriminados no cotidiano da sociedade e, em diversas ocasiões, pagam o preço desse preconceito com a própria vida. Muitas vítimas da inculcação dessa doença que não existe, acabam com graves transtornos psíquicos. No dia 17 de maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou o “homossexualismo”da Classificação Internacional de Doenças (CID). A Resolução do Conselho Federal de Psicologia regulamentou a questão apenas nove anos depois, após quase uma década de debates internos.
- O que significa essa ação contra a Resolução do CFP? O Juiz concedeu uma liminar numa ação popular (art. 5º, LXXIII) que é instrumento constitucional destinado a “anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”. São, portanto, quatro hipóteses de legitimidade para a interposição de ação popular. O fundamento para liberar o atendimento profissional de (re)orientação sexual foi com base na suposta ofensa ao patrimônio cultural brasileiro. Muito embora esse tipo de ação possa ser ajuizada por qualquer cidadão, o seu cabimento é restrito. Não é possível vislumbrar uma fácil conexão entre o pedido de anulação da Resolução que trata de atendimento profissional psicológico e a defesa do patrimônio histórico e cultural brasileiro. Essa é, sem dúvida, uma fragilidade relevante da ação popular em debate.
- E qual era o argumento dos autores? Segundo a própria decisão, os autores alegaram que a Resolução 01/1999 do CFP“impede os psicólogos de desenvolver estudos, atendimentos e pesquisas científicas acerca dos comportamentos ou práticas homoeróticas, constituindo-se, assim, em um ato lesivo ao patrimônio cultural e científico do país, na medida em que restringe a liberdade de pesquisa científica assegurada a todos os psicólogos pela Constituição, em seu artigo 5º, IX”. Ao contrário do que foi argumentado, importante dizer que a Resolução 01/1999 determina apenas tratamento não discriminatório no atendimento sobre questões de sexualidade, declarando que “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”(art. 3º).
- A decisão foi deferida numa audiência de justificação. O que é isso? É quando o juiz marca um encontro entre as partes para dirimir dúvidas que ele possua antes de decidir a questão provisoriamente. Antes de decidir a liminar, ele faz a audiência de justificação. No caso, a audiência consignou os seguintes questionamentos pendentes de esclarecimento: a) Pretendem os autores divulgar ou propor terapia tendente à reorientação sexual? b) Os autores estão impedidos ou foram punidos pelo CFP por prestarem suporte psicológico, ainda que solicitados e de forma reservada, às pessoas desejosas de uma reorientação sexual? c) No campo científico da sexualidade, em especial no que diz respeito ao comportamento ou às práticas homoeróticas, o que se permite ao psicólogo estudar ou clinicar sem contrariar a Resolução nº 001/1999?
- Diante das dúvidas apresentadas em audiência, qual a conclusão do magistrado? Ele definiu quatro pontos que entendeu relevantes, mas não necessariamente respondendo às três duvidas expostas anteriormente: a) Reconheceu que homossexualidade não é doença, de acordo com estudos científicos; b) Não sendo doença, a decisão afirmouque o Projeto de Lei nº 4.931, de autoria do Deputado Federal Pastor Ezequiel Ferreira (PTN/RJ), denominado “PL da cura gay”, é passível de críticas, consignando que essa não seria a ideia dos autores; c) Ressaltou que sendo a psicologia uma ciência da saúde é obrigação do psicólogo se aprimorar profissionalmente, envidando esforços na promoção da qualidade de vida das pessoas e das coletividades, baseando seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade; d) Enfatizou que a Constituição elenca como um dos seus objetivos fundamentais a promoção do bem-estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, além de garantir liberdade de expressão intelectual e científica.
- Mas essas respostas contradizem a Resolução do CFP? Não. Na verdade, a fundamentação da decisão não firma termos de conexão direta com o dispositivo da decisão. Resumindo, a decisão fundamenta num sentido, mas conclui em outra direção. Vejamos o parágrafo exato onde a decisão fixa a interpretação da Resolução 001/1999 conforme a Constituição: “Não privar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação. Até porque o tema é complexo e exige aprofundamento científico necessário”. Esse é o instante em que a decisão firma posicionamento sobre algo que não é e nunca foi controverso sobre a Resolução. Nenhum ato judicial ou administrativo questionou atendimento psicológico sobre sexualidade, mas apenas a proibição de atendimento que “favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”(art. 3º da Resolução 001/1999). E isso não aparece em lugar algum da decisão.
- A Resolução nº 001/1999 está suspensa? Não. Teoricamente, a decisão manteve os efeitos da Resolução, mas permitiu o atendimento profissional destinado à (re)orientação sexual, o que, no sentido aplicado pelo comando judicial, autoriza a prática profissional de reversão de sexualidade. A Resolução não está suspensa, mas a prática de exercício profissional destinado à reorientação sexual está protegida pela decisão da Justiça Federal.
- Então o sentido de (re)orientação está ligado à reversão de orientação sexual? Embora possa significar repetição, reforço ou retrocesso, o prefixo “re” na maioria das vezes tem o sentido de repetição, equivalente a “de novo/novamente”. Mas tem uma complexidade de casos em que o uso tem outra significação. No caso de "reorientar", o mais comum seria "orientar de novo". O que me parece interessante aí é uma disputa nas palavras e pelas palavras. O termo "orientação sexual" vem da comunidade/militância LGBT em oposição ao termo "opção sexual", que tem o sentido de escolha. Reorientar é uma tentativa desse discurso homofóbico de se apropriar do termo da comunidade e voltar a esses sentidos de escolha, de opção, como se fosse possível consertar, reorientar, voltar a uma posição correta. A palavra está impregnada de sentido e força contrários ao tratamento de respeito definido pala Resolução 001/1999 do Conselho Federal de Psicologia.