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Foi exibida na noite desta terça-feira (12), em capítulo inédito da novela das 23h "Liberdade, Liberdade", que é ambientada no século XVIII no contexto da Inconfidência Mineira, uma cena de sexo entre dois personagens masculinos: Tolentino (Ricardo Pereira) e André (Caio Blat). Antes da cena propriamente dita, os personagens dialogaram sobre a amizade e, posteriormente, trocaram beijos, tiraram suas roupas e foram às vias de fato.
Como era de se esperar, após a exibição da cena não se falava (ainda estão falando) de outra coisa nas redes sociais. Argumentos variados: que isso foi um plano da rede Globo para se reaproximar daqueles que a enxergam como incentivadora do impeachment da presidenta Dilma; que o canal quer destruir a tradicional família brasileira; e que, enfim, um canal aberto da televisão brasileira exibia uma cena de sexo entre dois homens, fato já concretizado na Argentina, Colômbia e México, países que também são fortes produtores de telenovela. Eis aqui um ponto importante: quem tem provocado as gentes a debater sobre as novas configurações da sociedade tem sido os produtos culturais (cinema, novela e séries) e o judiciário (casamento entre pessoas do mesmo sexo e a descriminalização das drogas e do porte de maconha). O legislativo segue na contramão.
Legislativo, reduto do atraso
Se, em algum momento da história recente do Brasil, o Congresso Nacional pautou a sociedade e colocou o Brasil na vanguarda dos direitos civis na América Latina, foi na metade da década de 1990, mais especificamente no ano de 1995. Naquele ano, a então deputada federal Marta Suplicy – à época no PT, hoje no PMDB – apresentou o Projeto de Lei que tinha por objetivo instituir a união civil entre pessoas do mesmo sexo, momento em que nenhum país latino estava fazendo tal debate. É também neste contexto histórico que surgem as paradas LGBT do Rio de Janeiro e de São Paulo, esta última a maior do mundo. Mas, parou aí. Hoje o Brasil é um dos países onde mais se mata LGBT.
Nesta primeira década do século XXI as telenovelas da TV aberta têm cumprido um importante papel em forçar a sociedade discutir a respeito das relações afetivas e sexuais entre as pessoas LGBT. No auge do debate e da “guerra santa” imposta pela bancada religiosa do Congresso Nacional contra o PLC 122/06, que visava tornar a homofobia crime em todo o território nacional, a novela Insensato Coração (2011) continha cinco personagens gays, sendo que um deles foi vítima fatal de um crime de ódio motivado por homofobia. Na mesma época, o jovem Alexandre Ivo, morador de São Gonçalo (RJ) e com apenas 14 anos, foi espancado até a morte por conta de sua suposta homossexualidade. Mas, boa parte dos deputados federais e senadores insistem em afirmar que a “homofobia não existe”.
Nos últimos anos o Congresso Nacional tem sido o porta-voz da barbárie na discussão sobre questões que envolvem sexualidade e direitos LGBT. Pauta inimaginável como a “cura gay”, em PL proposto pelo deputado federal João Campos (PRB-GO), foi amplamente debatida pelos congressistas. Também não é raro discursos como o do senador Magno Malta (PR-ES) e do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), onde comparam homossexuais com pedófilos e necrófilos. Além disso, o Congresso Nacional enterrou o projeto pedagógico Escola Sem Homofobia, impediu que as questões de sexualidade, gênero e LGBT fossem inclusas no Plano Nacional de Educação (PNE); sem contar a apresentação do famigerado Estatuto da Família, que contempla apenas uniões heterossexuais e exclui todas as outras configurações familiares.
Congresso morto, judiciário ativo
Em 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou por unanimidade a união estável entre pessoas do mesmo sexo, muito se criticou o STF. O órgão foi acusado de estar atuando no lugar do judiciário e isto não se limita às questões LGBT, mas também a outras pautas, tais como o aborto, a descriminalização das drogas e do porte da maconha. Porém, em todas essas questões o judiciário tem sido provocado pelas organizações da sociedade civil a se posicionar sobre estes assuntos. Eles estão na ordem do dia dos debates acadêmicos, das rodas de conversas, das mesas de boteco etc.
O que vivemos nos últimos cinco anos, pelo menos, é um completo divórcio do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais do que ocorre no seio da sociedade. Obviamente que os parlamentares não chegaram sozinhos aos seus mandatos, foram eleitos. Mas daí teríamos de abrir uma outra discussão, que é a maneira como se dão as eleições e quais candidaturas conseguem destaque... O que importa aqui é destacar que o legislativo, apesar de sua importância, vive em completo descrédito e não apenas por conta da corrupção. Porque vive em outro tempo, provavelmente em meados do século XIX, quando se jogava nas prisões e nos sanatórios todos aqueles que fugiam dos padrões normativos.
Por tudo isso e por um pouco mais, é que a cena exibida na noite de ontem deve sim ser destacada e os motivos são vários: a geração atual (15 a 20 anos) já cresce e forma o seu senso crítico com relações LGBT sendo abordadas nos principais produtos culturais, o que a geração anterior não teve; boa parte das produções ainda são pautadas pela norma heterossexual, mas, isso já não é o 100% de dez anos atrás e a tendência é que a presença de personagens LGBT sejam cada vez mais comuns. Isso faz com que a sociedade discuta mais o tema e passe a respeitá-lo mais... O ideal é que haja um casamento entre o parlamento e o que a sociedade está discutindo. Ainda deve demorar um tempo para isso acontecer, com raras exceções de governos locais que ousam nas políticas LGBT.