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Apesar da noção equivocada de que pessoas bissexuais possuem privilégios sociais quando estão em relacionamentos com pessoas de outro gênero, a realidade é que, em relacionamentos hetero, elas também passam por situações de abuso e bifobia, incluindo dos próprios parceiros
Por Jarid Arraes
Há muito equívoco e preconceito a respeito da bissexualidade – são clichês que acabam promovendo desinformação e causando exclusão e sofrimento para os bissexuais. De fato, esse assunto é tão pouco abordado, mesmo entre pessoas que combatem a homofobia e a lesbofobia, que ainda é muito forte a noção de que só é possível ser verdadeiramente homo ou heterossexual. Assim, o ativismo bissexual está organizado na busca por visibilidade, para que erros e hostilidades sejam combatidos. Uma das ideias com grande potencial nocivo é a noção de que as pessoas bissexuais possuem privilégio heterossexual, somente pelo simples fato de serem bi. Na maioria das vezes sem levar outros fatores em consideração, há quem pense que o ato de relacionar-se com alguém de outro gênero já concretiza esse privilégio, que, por essa lógica, tornaria as pessoas bissexuais resistentes à discriminação e mais seguras em seus relacionamentos hetero. [caption id="attachment_63904" align="alignleft" width="300"] "Quando um homem, em particular hétero, diz que gosta que a companheira seja bi, é um passo rumo a objetificação e a hipersexualização", alerta Amanda Bastos[/caption] No entanto, os ativistas do movimento bi rebatem essa afirmação, alertando para seu reducionismo e incapacidade de abordar as diversas outras questões envolvidas. Paulo Cesar Góis, integrante do coletivo Bi-Sides, dá o pontapé inicial na explicação: "Não existe privilégio em ser bissexual. Isso parte do mito de que estar numa relação homem/mulher nos protege de sofrer discriminação, o que pode acontecer, mas só é parcialmente real: eu, por exemplo, mesmo quando estou com uma mulher, abraçado, beijando, sou identificado como uma pessoa fora dos padrões heteronormativos e passo por agressões da mesma forma". Góis conta sobre um caso em que sofreu agressão, quando caminhava de mãos dadas com uma moça - também bissexual - e eles receberam olhares de repúdio acompanhados de gritos de "olha o viado e a sapatão!". Ele alerta: "Meus relacionamentos com mulheres não são considerados reais. A minha expressão de gênero, ou mesmo o fato de as pessoas já saberem de antemão que sou bissexual, pesa mais do que isso. Claro, isso é a minha experiência individual. Mas o 'privilégio' aí está em ser confundido com heterossexual, não em ser bissexual; e ser confundido com heterossexual não é exclusividade das pessoas bissexuais. Existe gente homo que passa como hétero e muita gente bi que passa como 'viado' e 'sapatão' na rua - o que também somos". Góis ainda explica que a diversidade humana de sexualidade e gênero faz com que muitas pessoas se encaixem parcialmente na definição patriarcal e heteronormativa. Mas "mesmo essas também sofrem discriminação de diferentes formas", afirma. "Tentar achar correlação com a vivência de pessoas homo e heterossexuais pode ser útil, mas também pode se tornar uma armadilha — não somos nenhum dos dois; temos particularidades que devem ser consideradas por si sós". O mito da calmaria em relacionamentos hetero Para Paulo Cesar Góis, há evidências que expõem a realidade de discriminação contra pessoas bissexuais e colocam em jogo até mesmo a recorrente comparação com gays e lésbicas. Segundo um uma publicação de Janeiro deste ano, na revista Journal of Public Health, mulheres bissexuais sofrem mais problemas de saúde mental do que mulheres lésbicas; por isso, mulheres bissexuais têm 64% mais probabilidade de enfrentar distúrbios alimentares, 37% mais chances de ter comportamentos de automutilação e são 26% mais vulneráveis a depressão. Ainda de acordo com os dados da pesquisa realizada pela London School of Hygiene & Tropical Medicine, isso acontece porque pessoas bissexuais sofrem mais marginalização, incluindo dentro de comunidades LGBT. Outra face do problema também pode ser encontrada nos próprios relacionamentos de bissexuais com pessoas de outro gênero, já que mesmo nessas relações é possível identificar a bifobia vinda também do parceiro. Amanda Bastos, integrante do Coletivo Guarda-Sol, fala abertamente sobre suas experiências em casos assim: "Já passei pelas situações terríveis que acredito que toda mulher bi já tenha passado: objetificação, unicornização, relacionamento abusivo em que o homem acha que porque a mulher é bissexual ela deve atender os desejos dele e as satisfazer fantasias, desconfianças de 'trocar' por uma pessoa de outro gênero, deslegitimação da sexualidade por conta de com quem eu estou me relacionando - na forma daquela frase 'ela é bi, mas agora é hétero porque está com fulano'. A lista é infindável e para cada item há infinitas manifestações, seja por hipersexualização e objetificação, seja por apagamento e deslegitimação", salienta. Bastos chama atenção para o perigo dos relacionamentos abusivos, algo a que os bissexuais são vulneráveis devido a bifobia. Em casos assim, quando a pessoa bissexual é mulher, o machismo se escancara de forma perversa; afinal, o homem enxerga a sexualidade da mulher como sua propriedade e, portanto, como direito. É comum que homens que se relacionam com mulheres bissexuais pressionem exaustivamente para que a mulher faça sexo a três, trazendo para o ato sexual outra mulher que também deve estar à disposição desse homem. "Quando um homem, em particular hétero, diz que gosta que a companheira seja bi, é um passo rumo a objetificação e a hipersexualização", alerta Bastos. "Há bifobia aí quando essa expectativa de que a mulher bi sempre quer sexo é quebrada. A partir daí vem a deslegitimação, aparecem as desconfianças de que o homem será trocado, surgem as perguntas mais invasivas sobre experiências anteriores com outros homens e, em particular, com mulheres. Já estive nessa posição em que o homem – não consigo chamar de parceiro, porque nunca houve de fato uma cumplicidade – está na relação e começa a hipersexualizar, conta para os amigos se gabando e, quando a expectativa é frustrada, começa o processo de deslegitimação, de questionar se eu sou de fato bi, como se eu devesse provar algo. Quando a bifobia aparece em um relacionamento afetivo-sexual, inevitavelmente deixa marcas. Para mim, essas marcas foram mais profundas do que a bifobia do dia-a-dia", relata. Amanda ainda conta que precisou de apoio para se recuperar do relacionamento abusivo vivido. "Esse relacionamento anterior foi muito danoso e muito está relacionado à bifobia em diversas formas e aprendi depois, com outras companheiras bissexuais, que há quase um script dos comportamentos abusivos envolvendo homens". Bastos nomeia alguns sinais desse roteiro de abuso: "Começa com o homem se gabando, muito feliz porque a companheira é bi, tem 'cabeça aberta'; se, por qualquer motivo, a mulher não é tudo o que ele esperava (o que geralmente envolve a fantasia do ménage ou swing), os mesmos amigos para quem ele se gabava começam a ouvir como a mulher não aceita nada, como ela é ruim, 'cabeça fechada', talvez seja lésbica. Tudo segue esse rumo para o homem mostrar como é viril e culpabilizar a mulher pelo fim do relacionamento". No entanto, Bastos faz questão de apontar que a biofobia não existe exclusivamente em relacionamentos de mulheres bissexuais com homens heterossexuais. "A bifobia pode aparecer no relacionamento com mulheres, com pessoas dentro de qualquer lugar do espectro de gênero. Em um relacionamento ou não, já fui muito ofendida por homens e é, de fato, o mais comum. No entanto, já sofri bifobia de mulheres e de pessoas monossexuais, desde dizer que não existe bifobia, tentar encaixar meu sofrimento em caixinhas de 'machismo' ou 'lesbofobia', quando é algo completamente diferente". A ativista ressalta que ter essas peculiaridades deslegitimadas por pessoas que teoricamente estão sob a mesma bandeira é muito ruim; "dói muito mais", declara. Enxergando a realidade [caption id="attachment_63905" align="alignright" width="300"] Existe uma presunção de que ser bissexual torna uma pessoa infiel, promíscua, sem caráter, disposta a tudo com qualquer coisa que se mova", critica Paulo César Góis[/caption] “Existe uma presunção de que ser bissexual torna uma pessoa infiel, promíscua, sem caráter, disposta a tudo com qualquer coisa que se mova", critica Paulo César Góis. Segundo esse raciocínio, pessoas bissexuais sempre vão enjoar e 'trocar' o parceiro por alguém de outro gênero. "Não ocorre só em relacionamentos homem/mulher e não é difícil perceber o que isso pode gerar: diversos tipos de agressão, principalmente sexual, no que concerne às mulheres cis, trans e outras pessoas trans. Existe também o fato de que a sexualidade de uma pessoa bissexual não é esquecida no momento em que ela entra num relacionamento homem/mulher e tudo vira um conto de fadas. Existem problemas com amigos e família te agredindo — principalmente se você veio de um relacionamento com uma pessoa do mesmo gênero —, dizendo que você é confuso, não se decide e é uma farsa, como se precisássemos provar algo a alguém". As relações familiares e o preconceito dos parentes, aliás, não muda quando as pessoas bissexuais estão em relacionamentos homem/mulher. "Infelizmente, conheço vários exemplos de gente que apanhou e foi expulsa de casa e nenhum relacionamento as protegeu: exatamente porque não deixamos de ser bissexuais e isso incomoda", afirma Góis. O militante ainda explica a necessidade de se compreender a interseccionalidade entre questões como gênero, raça e classe econômica. São diversos os fatores que podem gerar vivências específicas de bifobia, onde ainda existe o racismo, a transfobia e a misoginia. "As mulheres, por exemplo, experienciam uma forma de bifobia mesclada ao machismo e à misoginia que não atinge homens cis bissexuais", exemplifica. Góis relembra também o caso do jamaicano Oraisha Edwards, um homem negro e bissexual que pediu asilo na Inglaterra devido a chantagens de sua esposa, que ameaçou contar que ele era bi. "Na Jamaica, a homo ou bissexualidade é crime. Ele ficou dois anos recorrendo, foi mandado várias vezes para centros de detenção de imigrantes, a saúde mental dele ficou em frangalhos", diz Góis. No último dia 15, foi negado o pedido de asilo, com o motivo de que "foi desonesto sobre sua sexualidade", já que tinha esposa e uma filha. A luta contra a bifobia, como fica evidente pelo caso de Oraisha Edwards, é também a luta pela própria existência - que de diversas formas é negada a pessoas bissexuais. "A gente passa um tempão tentando provar que a violência que sofremos é real, que não estamos inventando, ao mesmo tempo em que resistimos e a enfrentamos praticamente sozinhos, pois mesmo os grupos 'LGBT' não estão preparados para lidar com pessoas bissexuais. Então imaginem aquela pessoa que sempre se relacionou com apenas um gênero e se descobre sentindo atração por outro. Ela vai achar que o mundo não é lugar pra ela e todos vão dizer exatamente isso: não existe, é putaria. Ela provavelmente não vai ter contato com algum grupo de pessoas bissexuais. Ela vai se esconder sob a alcunha de hétero ou homo, reprimindo-se sem nunca vivenciar por completo sua sexualidade e, na primeira situação em que demonstrar sinais de ser bissexual, sofrerá com a bifobia, além de toda a violência homofóbica", denuncia Góis. Mesmo entre as pessoas bissexuais que não falam sobre a própria orientação sexual para os parceiros e familiares, há muito para de discutir e compreender sobre o sofrimento e os transtornos mentais. Afinal, não ser reconhecido, aceito e amado pela pessoa que se é, sem precisar esconder partes importantes de sua afetividade e forma de se colocar no mundo, é algo que pode levar até mesmo ao suicídio. Em casos assim, por motivos diversos, que envolvem discriminação e violência, "sair do armário" como bissexual pode não ser uma opção segura. Apesar de tudo, Amanda Bastos, por meio de seu relato, é um exemplo de que mudanças são possíveis. Ela conta que sua família lida com naturalidade a respeito de sua bissexualidade e principalmente sua mãe lhe oferece apoio e acolhimento. Para ela, esse é um dos fatores que a auxiliam na superação dos preconceitos diários. É fato que poucas pessoas não-heterossexuais conseguem o apoio da família e dos amigos; portanto, já passou da hora dos movimentos sociais, sejam eles LGBT, feministas ou movimentos negros, agirem para que as pessoas bissexuais sejam devidamente inseridas nas discussões e nas pautas de reinvidicação dos grupos. A luta por direitos e respeito jamais pode ser bifóbica.