Ninguém esperava nada melhor. Foi o jeitinho Trump de admitir que perdeu. “Biden ganhou porque a eleição foi roubada”, disse o presidente derrotado, via mídias sociais. Uma declaração que a grande imprensa americana se apressou em reproduzir. Mas até agora não contou como Joe Biden venceu no estado que, a duras penas, sacramentou a virada: a Pensilvânia. Um exemplo do que o partido pode fazer para ampliar a base eleitoral e caminhar de volta às origens de representante da classe trabalhadora.
Jonathan Smucker tem 25 anos de experiência organizando a base progressista em Nova York, Washington, Rhode Island, Califórnia e Minnesota. Ele voltou à Pensilvânia, onde começou a vida, antes da primeira vitória de Donald Trump. Foi morar em Lancaster, uma cidade pequena e conservadora. Mas foi lá mesmo que ele começou o trabalho assim que Trump venceu, em 2016, contrariando todas as pesquisas de intenção de votos.
“Fizemos uma reunião comunitária de emergência, duas semanas depois da eleição, e apareceram 300 pessoas. Duas semanas depois já eram 400”. E assim foi. A turma se manteve mobilizada, organizou protestos e levou mil moradores às ruas quando um supremacista branco jogou o carro sobre manifestantes em Charlotesville, matando uma mulher. O que Jonathan constatou, na prática, e já sabia na teoria, é que as áreas mais afetadas pela desindustrialização foram abandonadas pelos dois partidos. E a aparente dormência do eleitorado, a indiferença política, só precisa de um empurrãozinho para vir à tona.
“É um processo pedagógico. Você tem que dar espaço às pessoas para elas tirarem as próprias conclusões. Não pode despejar o que você pensa sobre elas”, diz Jonathan e conta que tem um guia teórico para orientar esse trabalho: o educador brasileiro Paulo Freire. Para estabelecer uma conversa arejada, criar espaços seguros de pensamento e discussão, ele, antes de mais nada, elimina o jargão político. E viu pessoas que se aproximaram do grupo dizendo que não gostam de política, que não queriam ser ativistas, assumindo os trabalhos de organização da comunidade e da briga pelo voto.
O trabalho é de longo prazo e exige paciência. Jonathan não propôs ações políticas de imediato. Ele sabe que os eleitores têm, como ele diz, alergia tanto a republicanos como a democratas. A classe trabalhadora dos Estados Unidos está à deriva faz tempo. Os dois partidos fazem campanha e legislam para uma minoria que tem dinheiro para financiar as campanhas. O abandono é tão grande que o caminho estava escancarado para o crescimento do populismo.
Os republicanos saíram na frente. Enfrentaram uma rebelião interna que gerou o Tea Party, ala encabeçada por Sarah Palin. Um movimento tão forte que em 2007, John McCain, candidato a presidente, se viu obrigado a oferecer a Palin a vaga de candidata a vice. Eles perderam a eleição, mas a revolta seguiu firme. O partido continuou distante da população. Só que Donald Trump soube canalizar essa frustração e transformar a apatia em ação. Com um discurso antipolítica, crítico de republicanos e democratas ao mesmo tempo, ele se elegeu com a promessa de acabar com o pântano da corrupção em Washington.
Os democratas foram mais lentos. O movimento Occupy, que tomou praças e ruas do país em 2012, tinha um discurso forte, dos 99% preteridos pelos interesses de 1% da população. Mas eles tinham ojeriza aos partidos políticos e não foram absorvidos pelos democratas. Nem mesmo a ascensão de Trump foi suficiente para acordar o partido de Obama. A mudança veio de organizações como a PA Standup (Pensilvânia se levanta), grupo que Jonathan ajudou a fundar em Lancaster e deu filhotes em vários condados do estado. “No começo, tínhamos grupos de resistência nos 67 condados do estado, mas nem todos permaneceram ativos”.
Esses grupos foram de porta em porta, montaram listas, chamaram as pessoas para conversar e construíram as bases para a vitória apertada desse ano, que levou a Pensilvânia de volta para a coluna democrata. Não foi fácil e é um trabalho que ainda tem muito que andar. Especialmente agora que eles conseguiram eleger um presidente muito aquém dos desejos do movimento popular. Os democratas poderiam ter apresentado uma proposta populista progressista para fazer, no campo oposto, o mesmo que fez Trump. Canalizar a insatisfação popular com algumas bandeiras básicas, como saúde para todos, mudança climática e aumento do salário mínimo. Na hora H, fizeram mais do mesmo. Campanha para os conservadores. Agora, grupos organizados como o de Jonathan se preparam para uma briga vital: forçar Biden a adotar medidas mais progressistas, que apresentem algum resultado para os trabalhadores imediatamente. Se não for assim, o partido vai ver um novo populista de direita dar uma surra nas próximas eleições.
Grupos como o de Jonathan, espalhados pelo país, vão cobrar de Biden a vitória que deram a ele. Não foi à toa que os conservadores saíram atirando assim que as urnas fecharam. Culparam os progressistas pela perda de cadeiras na Câmara e a incapacidade de conquistar a maioria do Senado. Os números não corroboram a tese e a briga está apenas começando.
Jonathan está mais animado com as possiblidades futuras do que eu imaginaria. A indicação de Ron Klain para chefe de gabinete de Biden agradou. “Ele é competente”, disse Jonathan. Klain liderou, com Biden, o esforço de recuperação da economia depois da crise de 2008, que Barack Obama herdou de George Bush. “Os rumores em Washington dizem que Biden queria ver os grandes banqueiros algemados, mas Obama não deixou”. Jonathan acredita que Biden ainda tem alguma compreensão do que é a vida da classe trabalhadora, de onde veio. E por mais conservador que seja, tem ainda um pouco do pulso na base do partido.
Se estiver certo, Joe Biden pode ser uma surpresa maior no poder do que foi nas urnas.