- Líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) disse à CPI nesta semana que o movimento não existiria se tivesse acontecido uma Reforma Agrária no Brasil, assim como aconteceu na China.
- Ele tem razão: a Revolução Chinesa distribuiu terra para todos, mesmo em meio à guerra civil e à Guerra da Coreia.
O choque entre Ricardo Salles, o eterno ministro do Meio Ambiente de Jair Bolsonaro, e João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), já entrou para a história. Ocorrido na maliciosa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para emparedar o movimento, e na qual o agora deputado Salles é relator, o depoimento de Stédile foi, até aqui, o momento mais quente e durou longas cinco horas.
Mas o ponto alto mesmo foi quando Salles tirou da manga questionamentos sobre a China, no velho misto de sinofobia com anticomunismo, perguntando se havia um equivalente ao MST na China. Eis que Stédile respondeu que não há por conta da Reforma Agrária feita no país asiático ainda nos anos 1950, o que incluiu uma distribuição “drástica” de terras. Perdido, Salles recorreu a bordões, mas tampouco se mostrou muito disposto a convidar o embaixador da China como Stédile lhe sugeriu.
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Assim como muitos outros processos de reformas agrárias pelo mundo, pouco sabemos sobre o que se passou na China. Mas a provocação de Salles trouxe para o centro do debate sobre o Movimento de Reforma Agrária na China (Tudì Gaigé Yùndòng) — ou apenas Tugai, para os íntimos. Iniciado poucos meses após a proclamação da República Popular da China no verão de 1950, e cuja fase inicial durou até 1953, onde se produziu a maior transformação agrária na longa história daquele país.
A China, um titã agrário
Em sua história milenar, a China sempre foi um país agrário, assentado na propriedade comunal da terra. Os camponeses junto dos artesãos (ou “trabalhadores”), comerciantes e os oficiais eram as quatro classes que a organização confuciana descreveu situando abaixo da nobreza. Os camponeses eram, naturalmente, a classe mais numerosa, servindo por milênios como o pilar da sociedade chinesa.
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A organização agrária comunal nunca desapareceu por completo, porém os mais de dois mil anos do sistema imperial, invasões e dinastias estrangeiras abalaram e corromperam seu funcionamento. Particularmente, as décadas anteriores à ascensão dos comunistas foram das piores. Os camponeses estavam submetidos a um pesado aparato repressor e explorador, seja dos poderes oficiais ou das milícias, e acima deles a burguesia e o sistema imperialista.
A distribuição fundiária na China não era tão absurda quanto a do Brasil. As maiores propriedades eram quase sempre sítios ou chácaras grandes – e não fazendas -, mas a brutalidade política era assombrosa.
Pesados tributos, condições absurdas de financiamento, na forma de agiotagem, levavam a perda da terra por famílias inteiras, depois submetidas a trabalho escravo ou extremamente precário. No topo da economia agrária, estavam os senhores de terra (dìzhu) – literalmente, comandantes territoriais – que desde a Dinastia Ming (1368 – 1644) consistiam em uma classe privilegiada, quase sempre de origem burocrática, que não se envolvia no trabalho diretamente.
A distribuição fundiária na China não era tão absurda quanto a do Brasil. As maiores propriedades eram quase sempre sítios ou chácaras grandes — e não fazendas –, mas o exercício do poder, a brutalidade política e o nível da exploração eram assombrosos. Situações como a Grande Fome do Noroeste, ocorrida entre 1928-1930, na qual morreram em torno de 10 milhões de pessoas.
Isso ocorreu, como anota Edgar Snow em livro A estrela vermelha brilha sobre a China, “pois tendo as melhores terras direcionadas ao cultivo de papoula, durante períodos de seca, havia uma grave escassez de painço, trigo e milho, cereais básicos do Noroeste”. Snow foi profundamente impactado por suas reportagens e seu testemunho desse descalabro, o que certamente lhe empurrou para a radicalização política.
A lucrativa economia do ópio e a escassez nada natural de terras aráveis era bombástico. Essa escassez da terra era causada pela impossibilidade de pequenos agricultores sustentarem sua produção face a impostos e juros extorsivos. No mais, a corrupção das autoridades, a fragmentação da China e a rivalidade entre tiranetes locais dificultava, até mesmo, a chegada de ajuda internacional aos flagelados nessa e em tantas outras crises no campo.
Honrar a obra de Marx e Engels na China, portanto, exigia fugir de um determinismo que enxergava apenas nas fábricas e na zona urbana a única saída possível para um processo revolucionário local.
Um líder camponês e sua reforma agrária
Mao Zedong, como se sabe, veio do campo. Seu pai, um soldado que conseguiu pagar dívidas e recomprar as terras que haviam sido suas, prosperou nos anos seguintes. A família de Mao estava longe de ser rica, ele mesmo e seus irmãos tiveram de trabalhar durante a infância. Mas o fato de ter terra própria, e dela ser arável e gerar excedentes, já o punha em uma posição “privilegiada”, em um cenário no qual a fome era a regra.
Esse know how fez com que Mao tocasse tarefas relacionadas ao campo e à questão agrária nos seus primeiros anos no Partido Comunista, sob a dupla filiação no Partido Nacionalista, que era regra na época de aliança sob a liderança de Sun Yat-sen. A partir daí, Mao percebe que sem enfrentar e considerar o protagonismo da questão agrária, o desenvolvimento do socialismo na China seria uma grande ilusão.
O trabalho militante de Mao resultou, em 1927, no seu seminal Relatório sobre uma investigação feita em Hunan a respeito do movimento camponês. O que era para ser um mero relatório, se converteu em uma singular contribuição para o marxismo chinês, enfocando a peculiaridade da própria composição de classes do país. Honrar a obra de Marx e Engels na China, portanto, exigia fugir de um determinismo que enxergava apenas nas fábricas e na zona urbana a única saída possível para um processo revolucionário local.
É evidente que o futuro do socialismo chinês demandava, como em qualquer parte, urbanização e industrialização. Só que isso não poderia ser feito sem se efetivar justiça social para a imensa massa camponesa e, também, uma reorganização do campo para superar o flagelo da fome, provendo o alimento para as então centenas de milhões de bocas da China. Não à toa, a luta agrária na China pré-1949 era tocada por uma organização que existiu ainda por décadas: a Associação Nacional dos Camponeses Chineses (Zhonghuá Quánguó Nóngmín Xiéhuì).
E é isso que motivou os comunistas chineses em 1950, mesmo sem a Guerra Civil estar totalmente resolvida na China continental e a Guerra da Coreia estar começando. Era imperativo iniciar uma distribuição massiva de terras para centenas de milhões de camponeses — alterando a correlação de forças políticas no campo, antes estabelecida na propriedade dos senhores de terras e no mando dos senhores da guerra.
A resistência difusa dos senhores de terras foi rapidamente vencida, ainda mais com a direita batendo em retirada para Taiwan — e esse foi o momento mais violento do processo de instauração do socialismo na China.
O objetivo da Lei de Reforma de Agrária da China, de junho de 1950 era “libertar as forças produtivas rurais, desenvolver a produção agrícola e preparar o caminho para a industrialização da República Popular da China”. Nos seus 40 artigos, a Lei de Reforma Agrária excluiu apenas as regiões autônomas étnicas, onde a questão agrária das minorias nacionais deveria ser examinada caso a caso, assim como as terras em torno das grandes cidades.
Em fevereiro de 1953, o grande processo de distribuição de terras já havia terminado, estabelecendo-se, em seguida, grandes cooperativas sob coordenação estatal. A resistência difusa dos senhores de terras foi rapidamente vencida, ainda mais com a direita batendo em retirada para Taiwan — e esse talvez tenha sido o momento mais violento do processo de instauração do socialismo na China.
O sistema construído ali, incluía mecanismos de distribuição variando entre o plano estatal e formas de comércio não capitalistas. Ele durou até 1980, quando as reformas de mercado alteraram consideravelmente o sistema; mas não mudaram seu caráter público em um processo contínuo de modernização. É o maior processo de Reforma Agrária que se tem notícia e ele conseguiu superar desafios enormes, com tentativas e cometeu erros, mas o resultado final foi francamente positivo, distribuindo terra de forma justa e, ainda, produzindo alimentos para o povo.
Ao contrário de outras potências agrícolas, os chineses também ficam no topo da segurança alimentar, em 25º lugar, à frente de países como Itália e Coreia do Sul.
A China hoje e a falta que nos faz uma Reforma Agrária
Na última década, pela primeira vez em sua história, a China registrou mais habitantes na cidade do que no campo. A produção agrícola do país é a maior em termos gerais, e fica em 16º por habitante, segundo dados de 2021. Mas ao contrário de outras potências agrícolas, os chineses também ficam no topo da segurança alimentar, em 25º lugar, à frente de países como Itália e Coreia do Sul. Nesse último ranking, muitos líderes de produção aparecem embaixo, enquanto outros, com produção débil aparecem em cima, apresentando as distorções entre países pobres e ricos.
Os chineses ainda não têm nem perto da 25ª renda per capita do mundo, e registram uma renda apenas média, mas conseguem produzir e distribuir melhor sua produção agrícola do que países ricos, fugindo ainda à regra da penúria dos grandes produtores rurais. O Brasil, um exemplo inverso, é o maior produtor agrícola per capita do mundo, mas aparece em uma distante 51º posição no ranking mundial de segurança alimentar.
O nível de insegurança alimentar grave e moderada bateu algo em torno de 35% da população brasileira em 2022, sendo que esse número não chegava a 20% em 2016.
Os recordes brasileiros no agronegócio, como sabemos, não se traduziram em mais segurança alimentar, sobretudo na última década. O nível de insegurança alimentar grave e moderada bateu algo em torno de 35% da população brasileira em 2022, sendo que esse número não chegava a 20% em 2016. Junto ao nosso país, Paraguai e mesmo a Argentina são potências agrícolas e, ao mesmo tempo, países que vivem às voltas com o fantasma da fome.
Infelizmente, países que são grandes produtores agrícolas em quantidade (como os do Mercosul) ou em valor agregado (como a Ucrânia) raramente são campeões em segurança alimentar. A produção deles, destinada à exportação, serve para alimentar países ricos e enriquecer uma elite rural, não para alimentar o povo. O modelo agrário chinês, fruto do Tugai, é o inverso disso: ele é justo na distribuição da terra, eficiente na produção e assertivo na distribuição. Em termos agrários, a China é “primeiro mundo”.
A relação que Salles fez entre a distribuição fundiária chinesa e a ‘fome’ é uma cruel e falsa ironia, pois é o Brasil que, na verdade, voltou ao mapa da fome, não a China, que, ao contrário, saiu dele recentemente.
No fundo, para além da conjuntura, existe um problema grave no modelo de produção do Brasil, que possui enormes propriedades rurais, que se volta cada vez mais para a monocultura de exportação, regada a agrotóxicos e, por outro lado, produz menos alimentos, em prejuízo do povo e da agricultura familiar. No outro lado do mundo, o modelo chinês centrado na pequena propriedade, cada vez mais mecanizada e voltada para o abastecimento interno, tem produzido resultados semelhantes ao de um país já desenvolvido. No caso brasileiro, falta uma Reforma Agrária, enquanto no caso chinês, sobra. Nada disso é fruto de uma conjuntura ocasional, mas da natureza e dinâmica dos sistemas agrários de cada país.
Portanto, a relação que Ricardo Salles fez entre a distribuição fundiária chinesa e a “fome” é uma cruel e falsa ironia, pois é o Brasil que, na verdade, voltou ao mapa da fome, não a China, que, ao contrário, saiu dele recentemente como aponta a jornalista Iara Vidal. De que forma o Brasil conseguirá sair, politicamente, dessa situação? Isso ainda é um grande enigma estratégico, ainda mais com sua oligarquia rural dando cada vez mais mostras de que está pouco disposta a conciliar. O melhor projeto, seja como for, passa por mais socialismo e não menos e por isso o MST, para variar, tem razão!
* Hugo Albuquerque é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).
* Artigo originalmente publicado pela Jacobin Brasil
* Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum