O Salão Oval se transformou em uma arapuca. Após o confronto público com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, em fevereiro, o presidente dos EUA, Donald Trump, emboscou o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, ao repetir a controversa alegação de genocídio contra agricultores brancos na África do Sul, acusando o país de perseguição racial.
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Durante o encontro na Casa Branca, nesta quarta-feira (21), Trump exibiu vídeos e artigos para sustentar suas afirmações. Foi prontamente rebatido por Ramaphosa, que defendeu a democracia sul-africana e questionou a veracidade e a origem das imagens.
“Aquelas pessoas que, infelizmente, são assassinadas por causa da criminalidade não são apenas brancas. A maioria são negras”, afirmou Ramaphosa.
Confira o vídeo do encontro
Criminalidade na África do Sul
Segundo o Instituto de Estudos de Segurança (ISS), a África do Sul registrou 27.494 homicídios em 2022/2023, o que representa uma taxa de 45 mortes por 100 mil habitantes. Entre esses casos, apenas entre 60 e 70 envolveram agricultores brancos — cerca de 0,23% do total.
Desde 1994, a média anual de ataques a fazendas é de 214, resultando em aproximadamente 69 homicídios por ano. Especialistas afirmam que, embora crimes em áreas rurais preocupem, agricultores brancos não são mortos em taxas superiores às de outros grupos populacionais.
A África do Sul ocupa o quinto lugar no ranking global de criminalidade, segundo o World Population Review de 2025. O país enfrenta índices alarmantes de violência, impulsionados por pobreza, desigualdade social, desemprego e fragilidade institucional.
Crise de segurança pública tem raízes no apartheid
A crise de segurança pública sul-africana está profundamente enraizada no legado do apartheid — sistema de segregação racial institucionalizado entre 1948 e 1994. O regime consolidou desigualdades brutais e estruturou um aparato estatal voltado à repressão da maioria negra, sem garantir proteção universal à população.
Ao concentrar riqueza, direitos e recursos nas mãos da minoria branca, o apartheid empurrou a maioria negra para zonas marginalizadas, com acesso precário a serviços essenciais. Esses bolsões de pobreza e informalidade persistem e estão diretamente associados à violência estrutural.
A desconfiança na polícia, vista durante o regime como instrumento de opressão, permanece enraizada: muitos evitam denunciar crimes por medo de abusos ou ineficácia. O policiamento comunitário, essencial nas periferias, segue fragilizado.
A militarização do Estado durante o apartheid consolidou uma cultura de violência como forma de controle social. Após o fim do regime, a ausência de autoridade estatal eficaz em muitas áreas urbanas facilitou o surgimento de gangues e milícias, inclusive formadas por ex-combatentes.
Com a urbanização acelerada após 1994, milhões migraram para as cidades, mas o Estado falhou em oferecer moradia, infraestrutura e segurança adequadas. Isso levou à expansão de favelas, zonas vulneráveis à criminalidade.
A segurança privada, já comum em bairros brancos no apartheid, expandiu-se no pós-regime. Hoje, a África do Sul abriga uma das maiores indústrias de segurança privada do mundo, com mais de 2,7 milhões de agentes — o dobro do efetivo policial e militar combinado. Enquanto isso, as áreas pobres seguem expostas à violência cotidiana.
A extrema violência no país é resultado direto de décadas de racismo institucionalizado e desigualdade. A transição democrática de 1994 foi política, mas a prometida transformação socioeconômica segue incompleta — e essa lacuna histórica continua a cobrar vidas diariamente.
Afrikaners e o apartheid
Ao alegar um suposto genocídio branco, Trump ignora o papel histórico dos afrikaners na construção e manutenção do regime de apartheid, amplamente condenado pela comunidade internacional.
Essa narrativa inverte a lógica histórica ao apresentar os antigos opressores como vítimas. Os afrikaners, grupo étnico branco de origem majoritariamente holandesa, foram os principais arquitetos do apartheid. Entre 1948 e 1994, governaram por meio do Partido Nacional, implementando uma política de segregação racial que privilegiava os brancos — especialmente afrikaners — e excluía a maioria negra dos direitos civis, econômicos e políticos.
Eles controlavam o Estado, o Judiciário, a segurança pública e a economia, mantendo a minoria branca no topo da hierarquia social. Negros sul-africanos eram confinados a zonas específicas, proibidos de votar e reprimidos violentamente. A atual tentativa de reescrever essa história serve a interesses da extrema direita global.
Supremacismo branco dentro de casa
Enquanto cobra do presidente sul-africano providências diante de alegações infundadas de perseguição racial, Trump ignora o que o próprio FBI classifica como uma das maiores ameaças à segurança interna dos EUA: o supremacismo branco.
A invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, foi organizada e executada por grupos extremistas como Proud Boys, Oath Keepers e Three Percenters — todos propagadores de ideologias nacionalistas brancas, antidemocráticas e anti-governo.
No primeiro dia de seu novo mandato, em 20 de janeiro de 2025, Trump concedeu perdão total, completo e incondicional a cerca de 1.500 pessoas acusadas ou condenadas por participação no atentado ao Capitólio, incluindo indivíduos condenados por agressões violentas a policiais e conspiração sediciosa.
A medida beneficiou também membros dos principais grupos supremacistas envolvidos, consolidando a aliança entre a extrema direita política e o nacionalismo branco — dentro e fora da Casa Branca.