Nesta terça-feira (4), em discurso ao Congresso norte-americano, Donald Trump endereçou problemáticas de saúde que devem ser tratadas pela comissão "Make America Healthy Again" ("Faça a América saudável de novo", em tradução livre), liderada por Robert F. Kennedy Jr., o Secretário de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.
Na fala, repleta de colocações pouco factuais e dados fora de contexto, logo após mencionar o aumento nas taxas de câncer infantil — que subiram mais de 40% desde 1975 nos Estados Unidos —, Trump abordou as estatísticas de diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA). De acordo com ele, há algumas décadas, a incidência de autismo em crianças nos Estados Unidos era de "uma em cada 10 mil", e agora é de "uma em cada 36".
Te podría interesar
"Tem algo errado", conclui o presidente norte-americano. "Uma [criança] em cada 36. Pense nisso. Então, nós vamos descobrir o que é [que está acontecendo], e ninguém é melhor do que o Bobby e toda a equipe dele. Você tem os melhores para descobrir o que está acontecendo."
A fala repercutiu por setores mais e menos tradicionais da mídia norte-americana, sobretudo pela implicação de que "algo está acontecendo" para "estimular" uma maior incidência de autismo infantil.
Te podría interesar
A taxa de "uma em cada 36" crianças diagnosticadas com o transtorno do espectro autista vem dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA.
De acordo com o CDC, no entanto, há 25 anos, a taxa de incidência não era de "uma em cada dez mil", como afirmou Trump, mas de uma em cada 150.
Isso quer dizer que o aumento não foi assim tão abrupto nem tão drástico, nas últimas duas décadas, quanto sugeriu a fala do presidente.
Além disso, de acordo com o National Institute of Environmental Health Sciencies (NIEHS), instituto de pesquisa integrado ao Departamento de Saúde dos EUA, a melhora nos métodos de diagnóstico do transtorno do espectro autista (TEA) é um dos fatores a aumentar a incidência do diagnóstico no país.
"Mais crianças nascidas em 2016 (1.8%) receberam um diagnóstico de TEA em comparação a crianças nascidas 4 anos antes, em 2012 (1.1%), sugerindo um progresso na identificação de TEA ao longo do tempo", afirma o órgão.
Em 2020, a identificação do TEA entre crianças de 4 anos de idade aumentou 1.6 vezes devido à melhora expressiva avistada no diagnóstico.
Um outro impacto na incidência de TEA se deu durante os meses da crise da COVID-19, em que a avaliação decaiu significativamente em comparação a níveis pré-pandêmicos — e então voltou a crescer comparativamente mais.
Robert F. Kennedy Jr., o escolhido por Trump para compor o ministério da saúde norte-americano, é conhecido por suas alegações a respeito dos "perigos da vacinação", e por sugerir, em diversas ocasiões, assim como outros trumpistas, que alguns desses perigos incluem uma "incidência aumentada de autismo".
As causas para o TEA são derivadas de influências genéticas e biomarcadores diversos, que incluem genes hereditários, concepção em idade avançada, condições de saúde durante a gravidez (como a diabetes gestacional) e exposição a substâncias tóxicas, como as presentes no ar poluído e em agrotóxicos.
Evidências científicas
Pesquisas extensas já desmentiram a associação entre a ocorrência de TEA e a vacinação, causada por "mitos amplificados por cientistas equivocados, grupos de pais frustrados e políticos", nota estudo publicado na National Library of Medicine, intitulado "Vacinação como causa de autismo: mitos e controvérsias".
"O movimento antivacina parece ser parte de uma tendência maior de descontentamento e desconfiança na predominância de evidências científicas sobre impressões e opiniões", dizem os especialistas.
Dois dos estudos mais relevantes a ligar a vacinação à incidência de autismo demonstraram ter "falhas críticas", nota o Children's Hospital of Philadelphia.
Um deles, conduzido em 1998 por Andrew Wakefield, na Inglaterra, ligava a Vacina Tetra Viral (que protege contra sarampo, rubéola, caxumba e varíola) a eventos como inflamação intestinal e a entrada de proteínas prejudiciais ao cérebro na corrente sanguínea — esses fatores supostamente estimulariam o desenvolvimento do autismo.
No entanto, o estudo levava em conta apenas 12 crianças, das quais apenas 8 haviam desenvolvido autismo, sem compará-las a um campo amostral que não havia recebido a vacina (aplicada em até 90% da população infantil inglesa da época).
Além disso, os sintomas apresentados pelas crianças foram avistados depois — e não antes — de seu diagnóstico de autismo.
O estudo foi retratado como fraudulento no periódico em que foi aceito para publicação, o The Lancet.
Um segundo estudo, de 2002, também feito por Wakefield, examinava a relação entre o vírus da malária e o autismo.
74 de 91 crianças com autismo foram identificadas com o vírus da malária em biópsia, comparadas com apenas 5 de 70 pacientes sem autismo.
As falhas da pesquisa incluíram, nesse caso, a não consideração de que, ao receber a vacina contra a malária, o vírus (uma versão viva e atenuada) tendia a se replicar nos organismos das crianças por cerca de 15 a 20 vezes.
Para determinar se a vacina estaria associada ao autismo, ademais, as crianças com e sem autismo deveriam ser estudadas sem receber a imunização; e, em seguida, entre o recebimento da vacina e a coleta de amostras para a biópsia. Esses dados não estavam contidos no estudo.
Uma outra falha no método se relacionava ao contexto inglês da época, em que o vírus "comum" do sarampo ainda estava em circulação, além do vírus atenuado recebido em forma de imunização. Essa distinção não foi feita no estudo.