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"Se você diz que é alauita, leva um tiro na cabeça": banho de sangue e limpeza étnica na Síria

Refugiado sírio denuncia terror e massacre de civis promovido pelo regime de Ahmed al-Sharaa, que assumiu o poder após a queda de Bashar al-Assad e já matou mais de mil civis: "Precisamos de proteção internacional"

Membros das forças militares do novo regime sírio em ataque à cidade de Latakia, um dos prinicpais palcos do massacre de alauitas.Créditos: Reuters/Folhapress
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De BERLIM | A Síria mergulhou em uma nova fase de violência brutal desde a queda do regime de Bashar al-Assad, derrubado pelo grupo militante Hay'at Tahrir al-Sham (HTS), em dezembro do ano passado. O que, em tese, deveria ser um momento de transição se transformou em um massacre: forças do novo governo, liderado por Ahmed al-Sharaa - também chamado pelo seu "nome de guerra" Abu Mohammad al-Jolani –, lançaram uma campanha de extermínio contra a minoria alauita e estão promovendo um verdadeiro banho de sangue. 

Os alauítas são um grupo muçulmano de origem xiita que representa uma minoria na Síria e, historicamente, exerceu influência política no país, especialmente sob o governo de Bashar al-Assad, que pertence a essa comunidade. Apesar de a maioria da população síria ser sunita, uma vertente distinta do Islã, os alauítas mantiveram o controle do governo por décadas, o que aprofundou as tensões políticas e religiosas no país. Com a ascensão do novo regime sírio, liderado por sunitas radicais, os alauítas passaram a ser alvo de perseguição e retaliação brutal, acusados de serem aliados do regime deposto.

Nos últimos dias, organizações de direitos humanos relataram uma escalada brutal de violência contra civis. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (SOHR), mais de 1.400 pessoas foram mortas por forças do novo regime desde 6 de março, sendo que 973 eram civis, muitos deles mulheres e crianças. Imagens chocantes que circulam nas redes sociais mostram execuções sumárias e corpos espalhados pelas ruas de cidades como Jabla, Latakia, Tartus e Baniyas, redutos históricos dos alauítas. 

Sírio alauita inspeciona destruição de sua casa após ataque deflagrado pelas forças do novo regime sírio (Foto: Reuters/Folhapress)

Para os sobreviventes, a única saída tem sido o êxodo. Milhares de famílias estão fugindo para as montanhas, sem comida, água ou assistência médica, ou tentando se refugiar em outros países, como o Líbano.

A Organização das Nações Unidas (ONU) classificou os acontecimentos como "extremamente preocupantes" e alertou que execuções sumárias estão sendo cometidas com base sectária. Apesar dos apelos internacionais, a repressão continua.

Sob pressão, Jolani anunciou um comitê para investigar os massacres e punir os responsáveis. No entanto, organizações de direitos humanos duvidam da efetividade da medida, enquanto a violência segue em escalada, com novos relatos de execuções em massa e desaparecimentos forçados.

Para A*, um refugiado sírio de 25 anos que vive há 2 anos em Berlim, na Alemanha, e prefere não ser identificado por temer represálias, a realidade é clara. Ele já perdeu dois amigos assassinados pelas forças do novo governo – um deles tinha apenas 23 anos e estudava medicina – e teme pela vida de sua família, que vive em um das cidades mais atingidas pelos ataques do regime liderado por Jolani. 

 "Isso é uma limpeza étnica. Os alauitas são uma minoria, e eles querem nos apagar", disse o refugiado em entrevista à Fórum

"Se você responde que é alauita, leva um tiro na cabeça"

A* nasceu em Jabla, uma das cidades mais atingidas pelos massacres recentes. Sua família ainda está na região, em uma situação desesperadora e degradante. 

"Minha mãe e meus irmãos ficaram presos em casa. Hoje não têm pão para comer. O governo cortou a água e a eletricidade. Quem pode fazer isso? Apenas o governo".  

Alauitas fogem para as montanhas ou para outros países em meio ao massacre que vem sendo promovido pelo novo regime sírio (Foto: Reuters/Folhapress)

A violência começou depois que um grupo de apoiadores de Assad, que é alauita, atacou tropas do novo governo, liderado pelos sunitas, na vila de Dalia. "O exército foi prender alguém que postou algo contra Ahmed al-Sharaa [Jolani]. Mas os moradores disseram: 'Vocês não vão levar esse cara'. No caminho de volta, os soldados foram emboscados. A resposta foi brutal. Eles decidiram exterminar os alauítas". 

O refugiado relata que ninguém é poupado pelo novo regime. "Eles mataram mulheres, crianças e idosos. Crianças de apenas quatro ou cinco anos foram assassinadas simplesmente porque seus pais eram alauítas". 

O terror se espalhou rapidamente. Tropas do governo entraram nas cidades da costa mediterrânea e começaram a interrogar os moradores.

"Eles te perguntam diretamente: 'Você é alauíta ou sunita?' Se você responde 'alauíta', leva um tiro na cabeça". 

Para A*, a justificativa oficial de que a repressão se dá apenas contra apoiadores de Assad não passa de um pretexto. "Muitos médicos foram mortos, estudantes universitários, idosos e crianças. Como uma criança pode ser apoiadora de Bashar al-Assad?", questiona o refugiado que, apesar de ser alauita, nunca apoiou o governo de Assad – tal como milhares de civis que estão sendo massacrados. 

Tortura, execuções e sadismo

Os relatos das execuções evidenciam a brutalidade do novo governo. "Se você mora em uma dessas vilas, eles com certeza vão bater à sua porta", descreve A*, referindo-se às prisões arbitrárias e assassinatos dentro das próprias casas dos alauitas. 

Imagens que circulam nas redes sociais revelam um nível extremo de crueldade e sadismo. "Vi vídeos de pessoas sendo decapitadas. Outras foram baleadas dezenas de vezes enquanto os assassinos riam. Eles estavam brincando com as vítimas, chamando-as: 'Vem aqui, vem aqui', e depois atiravam nelas". 

Em um dos vídeos mais chocantes que A* assistiu, um homem aparece incitando a tortura contra os alauítas. "Era Ramadã, um período de jejum para os muçulmanos, e ele estava dizendo: 'Na hora de quebrar o jejum, você deve cortar a cabeça de um alauíta, depois abrir seu peito, arrancar seu coração…'"

Ataque de forças do novo regime sírio à cidade de Latakia, um reduto alauita (Foto: Reuters/Folhapress)

As mortes não são apenas execuções diretas. Segundo o entrevistado, muitos alauítas estão morrendo de fome ou em condições sub-humanas. 

"Meus amigos me mandaram fotos de suas famílias deixando suas casas. Estão vivendo como sem-teto nas montanhas, sem comida, sem água, sem nada". 

"O governo sírio é um grupo terrorista"

O governo de  Abu Mohammad al-Jolani, que depôs Assad, é formado por ex-membros da Al-Qaeda e da Frente al-Nusra, denunciados no passado por crimes de guerra.

"São terroristas. Alguns ministros eram da Al-Qaeda. Existem vídeos de um deles executando uma mulher por suposto adultério. Agora ele é ministro. Como o mundo pode aceitar isso?", afirma o sírio que conversou com a Fórum.

O presidente interino sírio Ahmed al-Sharaa - também chamado pelo seu "nome de guerra" Abu Mohammad al-Jolani (Foto: Reuters/Folhapress)

Cabe lembrar que a derrubada de Assad, bem como a ascensão do novo governo sírio, foi apoiada por países como Estados Unidos e Israel. 

O regime se autodenomina "um governo islâmico legítimo", mas, para A*, essa é apenas uma desculpa para exterminar qualquer um que não siga sua ideologia extremista.

"Quando você é um islamista radical, acredita que só você está certo. Qualquer um que discorde deve morrer. Não há diálogo. É uma mentalidade de destruição". 

Apelo por proteção internacional

A* vê a situação da Síria como resultado de um fracasso da comunidade internacional. Para ele, a queda de Assad deveria ter levado a uma reconstrução democrática, não a um novo regime autoritário. "Os EUA e a Europa deveriam nos ajudar a encontrar um líder de verdade. Não apenas substituir Assad por outro ditador."

Agora, seu maior pedido é por segurança. Segundo o refugiado, a maioria do povo alauita clama por proteção de organismos internacionais. Para ele, não se trata da solução ideal, mas a que é possível neste momento.

"Precisamos de proteção internacional. Uma proteção internacional na costa síria, onde os alauitas estejam seguros. Não podemos aceitar este governo", afirma. 

Sírios protestam na capital Damasco contra o massacre de alauitas que vem sendo promovido pelo novo regime (Foto: Reuters/Folhapress)

A guerra civil na Síria se tornou um dos conflitos mais brutais do século XXI. Com os alauítas sendo dizimados e a repressão se intensificando, A* assiste de longe, sentindo-se impotente, à destruição de sua terra natal.

"Sou forte, mas não como direito há dias. Choro toda vez que olho para o celular. Não consigo imaginar como aqueles que perderam entes queridos estão lidando com isso". 

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