Na última disputa presidencial dos Estados Unidos, a retomada do conceito de "cultura woke" ou “wokeísmo” foi uma estratégia eleitoral amplamente disseminada entre republicanos e Donald Trump contra Kamala Harris, sob o falso argumento de que a esquerda é “extremista” e que coloca em risco a “liberdade de expressão” e o “estilo de vida tradicional americano”.
A tônica da generalização funcionou de tal forma que Trump venceu o pleito, segue influente e se reafirmou como o principal porta-voz da extrema direita no mundo.
A filósofa americana Susan Neiman, em entrevista à BBC News na última semana, explicou que a busca por somente poder e não por justiça, não é característica da esquerda, e que essa confusão criada pela direita em torno do identitarismo é perigosa.
“A ideia de que não há nada além de poder, que as reivindicações de justiça não passam de exageros, é amada por ditadores de direita e ditadores que se dizem de esquerda, mas também está muito presente nas tradições woke: você não pode esperar justiça, deve apenas trabalhar pelo poder para sua tribo. Essa é uma maneira completamente diferente de estar no mundo como um verdadeiro esquerdista”, afirmou.
Confusão de conceitos
A pesquisadora americana mostra que o pensamento woke compartilha com a esquerda sentimentos como empatia pelos oprimidos, revolta contra as injustiças e o desejo de corrigir erros. No entanto, ela aponta que o movimento abandona princípios fundamentais da esquerda, como a defesa do universalismo e a busca pela justiça.
A expressão “woke” é originária do verbo "wake" (acordar, em inglês), e foi usada pela primeira vez pela comunidade afro-americana para se referir ao estado de ciência das injustiças sociais em 1930, e por muito tempo vem sendo utilizada para justificar violências. Especialistas observam que há muitas confusões em torno do conceito e que os “wokes” são aqueles simplificam as relações sociais, apostam no ressentimento, buscam vingança e acreditam em superioridade moral de inferiorizados.
É como funcionam os chamados “tribunais de cancelamento” da internet, uma forma de “tribalismo” e não “universalismo”, como diferencia Neiman. Segundo ela, a direita se alça ao poder mais facilmente com uma agenda anti-woke, e ninguém percebe que, na verdade, direita é mais woke que a esquerda.
“O wokeism entra em conflito com as ideias que guiaram a esquerda por mais de 200 anos: um compromisso com o universalismo, uma distinção firme entre justiça e poder e uma crença na possibilidade de progresso. Sem essas ideias, o woke continuará a minar seus próprios objetivos e a se desviar, inexorável e involuntariamente, para a direita”, diz a sinopse do livro de Neiman, “A Esquerda Não é Woke”.
A invasão ao Capitólio em 2020, os atos antidemocráticos do 8 de janeiro no Brasil, o culto às armas, a defesa de gestos supremacistas, a soltura de golpistas e a justificação do uso da força contra grupos humanos, o jogo sujo da propagação de desinformação nas redes sociais para angariar apoio político, situações amplamente defendidas pela direita, torna a ideologia neoliberal e fascista mais próxima do woke. É a dominação pela dominação.
Susan menciona que a inclusão é necessária e a diversidade é um bem, "mas não o bem supremo e é um insulto às mulheres contratá-las só porque são mulheres, assim como é um insulto às pessoas não brancas presumir que, só porque não são brancas, elas têm uma espécie de autoridade. Ser uma vítima não é, por si só, uma fonte de autoridade. E nós tendemos a pensar que é", reflete.
Outro ponto que diferencia a esquerda dos woke é que a esquerda acredita que o progresso é possível. "Acreditam que não é inevitável. Sim, está nas mãos dos seres humanos, que são tão capazes de fazer tanto retrocessos quanto progressos, mas é possível, e há exemplos de que isso aconteceu no passado. Isso é algo importante que, muitas vezes, é negado pelo woke, mas não é verdade", pontua a filósofa.
Direito não é privilégio
Um exemplo mais recente de associação distorcida do woke à esquerda foi o fato de Donald Trump ter repetido inúmeras vezes que a bispa Mariann Budde, que pediu misericórdia para os imigrantes e LGBT nos Estados Unidos na sua frente na Catedral de Washington, seria por isso “woke", quando só estava pedindo por justiça e direitos humanos.
Dias depois Budde reafirmou sua posição mesmo após Trump exigir desculpas da religiosa por uma narrativa da direita que não é real. "Não vou me desculpar por pedir misericórdia para os outros [...] Eu estava falando para o presidente [Donald Trump] porque senti que ele está nesse momento agora em que se sente no comando e empoderado para fazer o que julga como necessário. E eu quis dizer que há espaço para misericórdia, há espaço para uma ampla compaixão", disse.
“Conversei com amigos em vários países, e todos eles me diziam algo como: 'Receio não ser mais de esquerda'… E mencionavam alguma declaração ou evento woke com o qual não se identificavam. Era algo que sempre se repetia, e achei importante me aprofundar em por que muitos de nós temos essa impressão de que há algo errado com a esquerda. O objetivo do livro é justamente analisar o que está enfraquecendo (a esquerda), por que as pessoas estão confusas”, acrescentou Neiman à BBC.
"Para a esquerda os direitos sociais são direitos genuínos, tão importantes quanto os direitos políticos"