SOBREVIVENTE, DE VIRADA

Netanyahu acua o Irã e acerta os ponteiros com hegemonia dos EUA

Ao atacar o Hezbollah, tem apoio suprapartidário onde conta

Maldição.Na ONU, Bibi definiu Síria, Iraque e Irã como a maldição do Oriente Médio, em linha com a política externa dos EUA.Créditos: Reprodução
Escrito en GLOBAL el

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, caiu o Muro de Berlim. Só que, desta vez, o Muro do Ocidente.

Apesar de impor sanções como nunca se viu antes, os Estados Unidos, à testa da OTAN, arreganharam os dentes mas não morderam.

Míopes ao novo mundo que já se arquitetava, acreditaram que o bloqueio econômico seria suficiente para fazer desabar os planos de Vladimir Putin.

Aos líderes de Israel não escapou o gambito de Putin, nem a compreensão do que estava acontecendo: num mundo a caminho de um desenho multipolar, era cada um por si. A disparada global dos gastos militares, aliás, reflete isso.

O soft power, orgulho do Itamaraty, entrava em decadência.

Atacada em 7 de outubro pelo Hamas, Israel retomou a cartilha de todos os conflitos militares que já enfrentou: extrair ganhos territoriais, sob quaisquer circunstâncias.

Só estranha os ataques de Israel à Cisjordânia, que não é governada pelo Hamas, quem desconsidera este fato: dada a oportunidade, Tel Aviv opta pelo caminho de ocupar novos territórios.

Desta vez, enterrou o sonho que já era distante de um estado palestino, reforçou seu controle sobre Jerusalém e ampliou os assentamentos de colonos.

Comentaristas, especialmente os ligados à esquerda, acertadamente disseram que os ganhos táticos de Israel não compensavam o isolamento estratégico.

Benjamin Netanyahu, no entanto, compreendeu perfeitamente que a arquitetura imposta pelos EUA ao Oriente Médio estava desabando junto com a completa hegemonia de Washington, como demonstrado na reação dura, porém contida, contra Putin.

Esta arquitetura começou a ser construída em 14 de fevereiro de 1945, a bordo do USS Quincy, quando o então presidente Roosevelt, dos Estados Unidos, recebeu o rei Ibn Saud, da Arábia Saudita, para selar um acordo que, apesar dos pesares, ainda vige: os EUA dariam proteção aos sauditas desde que eles garantissem um preço internacional do petróleo condizente com os interesses de Washington.

Kazan, outubro de 2024

Assim como o lado ocidental do Muro de Berlim desabou em 2022, nos dias 22, 23 e 24 de outubro próximos Vladimir Putin receberá os líderes do BRICs ampliado pela primeira vez, em Kazan, na Rússia.

Será uma data fundacional do mundo multipolar: lá estarão, além de Xi Jinping, Lula e Narendra Modi, os dirigentes da África do Sul, Irã, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Etiópia.

Dias antes, em 7 de Outubro, os ataques do Hamas a Israel terão completado um ano sem uma vitória definitiva de Tel Aviv em Gaza.

Isso tem levado analistas a dizer que Israel venceu, mas perdendo.

Porém, com a experiência de um político acostumado a lidar com os Estados Unidos, Benjamin Netanyahu sabe que Israel é um aliado mais importante para Washington do que o próprio Hezbollah para o Irã.

A metáfora de que o rabo abana o cachorro, na relação entre Tel Aviv e Washington, é tentadora -- mas falsa.

Independentemente do governo de turno, o establishment estadunidense tem em Israel um aliado crucial para sustentar a hegemonia construída por Washington desde aquele encontro de Roosevelt com o rei saudita.

Não são apenas interesses econômicos em comum ou a forte relação entre o complexo industrial militar dos dois países.

Washington depende tanto de Israel para confrontar o Irã quanto da Ucrânia para enfrentar a Rússia.

Irã e Rússia, afinal, são parceiros num movimento contra-hegemônico que os Estados Unidos combatem a todo custo.

A virada de Netanyahu

Ao atacar o Líbano, Benjamin Netanyahu colocou os palestinos em segundo plano e trouxe para a frente do cenário um país que suscita concordância quase completa entre republicanos e democratas: o Irã, principal aliado do Hezbollah.

Com isso, acertou os ponteiros com Washington e virou o jogo.

Tirou proveito da campanha eleitoral dos Estados Unidos, quando qualquer movimento de rejeição a Israel pode custar dinheiro e votos.

Vença Donald Trump ou vença Kamala Harris, o Irã é o fantasma que traz à memória o aiatolá Khomeini, a tomada de reféns na embaixada dos Estados Unidos em Teerã e a humilhação do fracassado resgate que levou à derrota eleitoral de Jimmy Carter.

Netanyahu pegou o Irã de mãos amarradas: apesar de toda a retórica belicista, Teerã tem hoje compromissos internacionais de tal grandeza que um confronto total com Israel está praticamente fora de cogitação -- ao menos se depender dos persas.

Como os chineses, eles jogam o jogo de longa duração.

O objetivo de curto prazo de Israel parece ser garantir a volta de milhares de pessoas que tiveram de deixar cidades e assentamentos do norte do país, perto da fronteira com o Líbano, sob constante ameaça do Hezbollah.

É território em jogo. Depois de controlar Gaza, avançar sobre a Cisjordânia, reforçar sua presença nas colinas de Golã -- que pertencem à Síria -- Tel Aviv agora busca alguma medida de controle sobre o sul do Líbano.

É a Grande Israel do colonialismo de ocupação.

Na guerra, no entanto, existe o capricho de uma lei incontrolável: a das consequências indesejadas.