Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, caiu o Muro de Berlim. Só que, desta vez, o Muro do Ocidente.
Apesar de impor sanções como nunca se viu antes, os Estados Unidos, à testa da OTAN, arreganharam os dentes mas não morderam.
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Míopes ao novo mundo que já se arquitetava, acreditaram que o bloqueio econômico seria suficiente para fazer desabar os planos de Vladimir Putin.
Aos líderes de Israel não escapou o gambito de Putin, nem a compreensão do que estava acontecendo: num mundo a caminho de um desenho multipolar, era cada um por si. A disparada global dos gastos militares, aliás, reflete isso.
O soft power, orgulho do Itamaraty, entrava em decadência.
Atacada em 7 de outubro pelo Hamas, Israel retomou a cartilha de todos os conflitos militares que já enfrentou: extrair ganhos territoriais, sob quaisquer circunstâncias.
Só estranha os ataques de Israel à Cisjordânia, que não é governada pelo Hamas, quem desconsidera este fato: dada a oportunidade, Tel Aviv opta pelo caminho de ocupar novos territórios.
Desta vez, enterrou o sonho que já era distante de um estado palestino, reforçou seu controle sobre Jerusalém e ampliou os assentamentos de colonos.
Comentaristas, especialmente os ligados à esquerda, acertadamente disseram que os ganhos táticos de Israel não compensavam o isolamento estratégico.
Benjamin Netanyahu, no entanto, compreendeu perfeitamente que a arquitetura imposta pelos EUA ao Oriente Médio estava desabando junto com a completa hegemonia de Washington, como demonstrado na reação dura, porém contida, contra Putin.
Esta arquitetura começou a ser construída em 14 de fevereiro de 1945, a bordo do USS Quincy, quando o então presidente Roosevelt, dos Estados Unidos, recebeu o rei Ibn Saud, da Arábia Saudita, para selar um acordo que, apesar dos pesares, ainda vige: os EUA dariam proteção aos sauditas desde que eles garantissem um preço internacional do petróleo condizente com os interesses de Washington.
Kazan, outubro de 2024
Assim como o lado ocidental do Muro de Berlim desabou em 2022, nos dias 22, 23 e 24 de outubro próximos Vladimir Putin receberá os líderes do BRICs ampliado pela primeira vez, em Kazan, na Rússia.
Será uma data fundacional do mundo multipolar: lá estarão, além de Xi Jinping, Lula e Narendra Modi, os dirigentes da África do Sul, Irã, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Etiópia.
Dias antes, em 7 de Outubro, os ataques do Hamas a Israel terão completado um ano sem uma vitória definitiva de Tel Aviv em Gaza.
Isso tem levado analistas a dizer que Israel venceu, mas perdendo.
Porém, com a experiência de um político acostumado a lidar com os Estados Unidos, Benjamin Netanyahu sabe que Israel é um aliado mais importante para Washington do que o próprio Hezbollah para o Irã.
A metáfora de que o rabo abana o cachorro, na relação entre Tel Aviv e Washington, é tentadora -- mas falsa.
Independentemente do governo de turno, o establishment estadunidense tem em Israel um aliado crucial para sustentar a hegemonia construída por Washington desde aquele encontro de Roosevelt com o rei saudita.
Não são apenas interesses econômicos em comum ou a forte relação entre o complexo industrial militar dos dois países.
Washington depende tanto de Israel para confrontar o Irã quanto da Ucrânia para enfrentar a Rússia.
Irã e Rússia, afinal, são parceiros num movimento contra-hegemônico que os Estados Unidos combatem a todo custo.
A virada de Netanyahu
Ao atacar o Líbano, Benjamin Netanyahu colocou os palestinos em segundo plano e trouxe para a frente do cenário um país que suscita concordância quase completa entre republicanos e democratas: o Irã, principal aliado do Hezbollah.
Com isso, acertou os ponteiros com Washington e virou o jogo.
Tirou proveito da campanha eleitoral dos Estados Unidos, quando qualquer movimento de rejeição a Israel pode custar dinheiro e votos.
Vença Donald Trump ou vença Kamala Harris, o Irã é o fantasma que traz à memória o aiatolá Khomeini, a tomada de reféns na embaixada dos Estados Unidos em Teerã e a humilhação do fracassado resgate que levou à derrota eleitoral de Jimmy Carter.
Netanyahu pegou o Irã de mãos amarradas: apesar de toda a retórica belicista, Teerã tem hoje compromissos internacionais de tal grandeza que um confronto total com Israel está praticamente fora de cogitação -- ao menos se depender dos persas.
Como os chineses, eles jogam o jogo de longa duração.
O objetivo de curto prazo de Israel parece ser garantir a volta de milhares de pessoas que tiveram de deixar cidades e assentamentos do norte do país, perto da fronteira com o Líbano, sob constante ameaça do Hezbollah.
É território em jogo. Depois de controlar Gaza, avançar sobre a Cisjordânia, reforçar sua presença nas colinas de Golã -- que pertencem à Síria -- Tel Aviv agora busca alguma medida de controle sobre o sul do Líbano.
É a Grande Israel do colonialismo de ocupação.
Na guerra, no entanto, existe o capricho de uma lei incontrolável: a das consequências indesejadas.