O líder do partido conservador da França, de direita tradicional, o Republicanos, o mesmo grupo político de Charles de Gaulle, escandalizou a sociedade francesa ao defender uma aliança com a extrema direita nas próximas eleições antecipadas. O dirigente Éric Ciotti enfureceu seus colegas de legenda ao quebrar um tabu de longa data e jogar seu partido em profunda turbulência.
Enquanto isso, os choques da decisão do presidente Emmanuel Macron de dissolver a câmara baixa do Parlamento percorrem o país. Ele anunciou em cadeia de rádio e televisão, na noite de domingo (9), que dissolveu a Assembleia Nacional, para convocação de novas eleições, após a vitória massacrante da extrema direita de seu país no pleito para o Parlamento Europeu.
A agência de classificação Moody’s emitiu um alerta de que a eleição antecipada “aumenta os riscos para a consolidação financeira” para uma França fortemente endividada.
O partido fascista “Rassemblement National”, ou Reunião Nacional, em tradução para o português, conhecido pela liderança de Marine Le Pen por anos, e agora sob a batuta do jovem extremista Jordan Bardella, teve aproximadamente 32% dos votos na disputa, segundo sondagens de boca de urna realizadas pelos institutos Ifop e Ipsos.
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Nenhum líder de um partido político tradicional francês jamais havia abraçado uma possível aliança com o Reunião Nacional ou seu predecessor, a Frente Nacional. Mas, por toda a Europa, as barreiras para o que era amplamente considerado a extrema direita nacionalista vêm caindo, à medida que esses partidos ajustam suas posições e um consenso mais amplo se forma sobre a necessidade de conter a imigração ilegal em larga escala através de uma fronteira porosa da União Europeia.
Reações enfurecidas
O anúncio de Ciotti, foi uma ruptura histórica com a linha de longa data do partido e seus laços com o ex-presidente de Gaulle. O apelo dele foi imediatamente recebido com um coro de desaprovação raivosa dentro de suas próprias fileiras.
Os Republicanos têm uma longa história de se oporem a alianças com a extrema direita, remontando à época de Charles de Gaulle, que lutou contra o governo de Vichy durante a Segunda Guerra Mundial. A aliança proposta por Ciotti representa uma ruptura significativa com essa tradição histórica.
O ex-ministro e prefeito de Meaux Jean-François Copé declarou que Ciotti "fala apenas por si mesmo" e que "ele deve renunciar imediatamente à presidência dos Republicanos". Afirmou que o elogio do dirigente do Republicanos à extrema direita é inaceitável e contrário a todos os valores que o partido defende.
O presidente do Senado francês e influente líder republicano Gérard Larcher afirmou que Ciotti "não pode mais liderar nosso movimento". Essa declaração sugere uma forte oposição interna à aliança proposta.
Valérie Pécresse, chefe da região de Île-de-France, que inclui Paris, acusou Ciotti de ter "vendido sua alma", indicando uma profunda decepção e oposição à decisão de Ciotti dentro do partido.
O ministro do Interior, que deixou os Republicanos em 2017 para unir forças com Emmanuel Macron, Gérald Darmanin, comparou a decisão de Ciotti aos acordos de Munique de 1938, afirmando que Ciotti "levou a família gaullista ao desonra". Darmanin chamou a decisão de vergonhosa e exortou os franceses a "acordarem".
A vice-presidente dos Republicanos, Florence Mosalini-Portelli, foi direta ao dizer na rádio Franceinfo que a próxima etapa seria "demitir" Ciotti. Isso demonstra uma clara divisão interna e uma forte oposição à aliança com o Reunião Nacional.
Resistência contra a extrema direita
A incerteza paira sobre a França a apenas semanas dos Jogos Olímpicos que sediará de 26 de julho a 11 de agosto de 2024. Este evento será a terceira vez que Paris sediará a competição, que já ocorreu na Cidade Luz em 1900 e 1924.
Manifestações dispersas contra a extrema direita eclodiram em Paris e em outros lugares. Os partidos políticos se apressavam para entender a decisão de Macron e se organizar com apenas 19 dias restantes antes do primeiro turno da eleição, a campanha mais curta da história da Quinta República.
Espírito do tempo?
Mas em grandes partes da França, cresceu a sensação, como aconteceu nos Estados Unidos antes da eleição de 2016, de que o país já tentou de tudo e precisa tentar algo novo, por mais perigoso que seja.
Os argumentos do que são vistos como formados homogêneos de elite que dirigem o país, e o fazem desde tempos imemoriais, não convencem mais as pessoas que lutam para sobreviver em bairros que sentem ter sido transformados pela imigração descontrolada.
Em uma entrevista à televisão TF1, Ciotti pareceu reconhecer que os métodos antigos não funcionariam. Ele disse que seu partido se tornou "fraco demais" para se manter sozinho e precisava fazer um acordo com o Reunião Nacional para manter um grupo considerável de legisladores na câmara baixa.
Os Republicanos, um partido que foi uma força dominante na política francesa durante as presidências de Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac, tem apenas 61 legisladores na Assembleia Nacional de 577 assentos e pode ver esses números diminuírem ainda mais.
Se tal acordo fosse formalizado — com o Reunião Nacional concordando em não lançar candidatos contra os Republicanos em certos distritos — seria a primeira vez que os conservadores de centro-direita da França trabalhariam em conjunto com a extrema direita. Isso, por sua vez, tornaria mais difícil para Macron formar qualquer tipo de coalizão após a eleição que mantivesse o partido de Le Pen longe do poder.
“Precisamos de uma aliança, mantendo nossa identidade”, comentou Ciotti. Mais tarde, questionado por repórteres na sede do partido sobre o que havia acontecido com a barreira que os partidos tradicionais na França costumavam erguer em torno da extrema direita, ele desconversou, dizendo que a pergunta estava “totalmente fora de sintonia com a situação na França”.
“Os franceses não veem o cordão sanitário,” disse ele, referindo-se ao que às vezes era chamado de “represa” contra a extrema direita. “Eles veem o poder de compra diminuído, veem a insegurança, veem o fluxo de migrantes e querem respostas.”
Jovens lideranças
Bardella, de 28 anos, que se tornou o novo e amplamente popular rosto da política francesa durante a campanha para as eleições do Parlamento Europeu, acolheu o anúncio de Ciotti e descreveu como “colocar os interesses do povo francês antes dos nossos partidos”.
O partido centrista Renascimento de Macron, lançado no caos pela decisão abrupta do presidente e sem aliados óbvios à esquerda ou à direita para manter a extrema direita longe do poder, lutou para apresentar uma frente coerente.
Gabriel Attal, de 35 anos, nomeado primeiro-ministro no início do ano em uma tentativa de reviver a sorte de Macron, desapareceu da vista por 24 horas após o anúncio de Macron. Antes um favorito do presidente, ele parece não ter feito parte do círculo interno que planejou a eleição surpresa.
Ele ressurgiu nesta terça-feira (11) para dizer que faria “tudo para evitar o pior”, descrevendo a extrema direita como “às portas do poder” na França e a extrema esquerda como apresentando “um espetáculo revoltante”.
Attal disse que a eleição era uma escolha entre "rejeição do outro e respeito às pessoas". Elevando as apostas, ele declarou que “de um lado você tem um desastre financeiro e social, do outro estabilidade e construção”. Para todos os problemas econômicos da França, incluindo mais de US$ 3 trilhões em dívidas, a resposta do Reunião Nacional, com pouca reserva, parece consistir em gastar, gastar, gastar.
Movimento para a direita
A linha partidária dos Republicanos tem se deslocado cada vez mais para a direita, especialmente em questões de crime e imigração, nos últimos anos. O partido está dividido entre aqueles que favorecem uma aliança com os centristas de Macron e aqueles que querem se inclinar mais para a direita.
Ciotti é um legislador que representa Nice, onde a extrema direita teve um desempenho excepcionalmente bom. O Reunião Nacional saiu vitorioso lá na semana passada com mais de 30% dos votos nas eleições europeias, enquanto os Republicanos ficaram em sexto lugar.
Em uma enxurrada de mensagens nas redes sociais, os colegas de partido de Ciotti rapidamente tentaram caracterizar seu anúncio como uma posição pessoal, não a linha oficial do partido.
Isso pode parecer simples, mas a decisão doe Ciotti de abrir as portas para a extrema direita não foi um ato de puro capricho pessoal. Reflete uma corrente significativa dentro do seu partido, bem como a aceitação cada vez maior da noção de que o Reunião Nacional pode um dia governar legitimamente a França.