Nos últimos dias, a mídia ocidental deu uma verdadeira aula sobre como transformar um sujeito que os Estados Unidos consideram "terrorista" em um "herói" da libertação da Síria.
Casos parecidos já aconteceram no passado, mas nunca de maneira tão radical, repentina e descarada.
Te podría interesar
Identificado pelo Departamento de Estado como Muhammad al-Jawlani, o homem que hoje lidera a maior parte da Síria foi descrito oficialmente como "terrorista", com recompensa de até U$ 10 milhões por sua captura.
Embora haja grandes dúvidas sobre seu verdadeiro nome e origem, levando a todo tipo de teoria de conspiração, é certo que ele serviu à Al Qaeda e ao Estado Islâmico, antes de se instalar na província síria de Idlib e eventualmente fundar o grupo que hoje lidera, a Organização para a Libertação do Levante (HTS).
O comando para a mídia partiu claramente de Washington.
Elizabeth Richard, que dirige o Escritório de Contraterrorismo do Departamento de Estado, disse cinicamente que "não podemos esperar que todos sejam a Madre Teresa [de Calcutá] antes de conversar com eles".
Mais adiante, afirmou:
Nos dias de hoje precisamos trabalhar na zona cinza.
Milhares de mortos e feridos depois...
Seria risível, considerando os ataques da Al Qaeda e suas filiais que mataram ou feriram milhares de estadunidenses, antes mesmo da demolição das Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2002.
Os "terroristas" e "jihadistas" do passado se transformaram em um piscar de olhos em "rebeldes", apesar de vídeos que circulam nas redes sociais em que atrocidades são cometidas contra soldados sírios e as bandeiras negras do Estado Islâmico são desfraldadas.
Além de se livrar do turbante típico de um fundamentalista islâmico, Jawlani -- mantendo aqui o nome dado a ele pelo Departamento de Estado -- foi repaginado com roupas que cairiam muito bem em um Fidel Castro.
No passado, o grupo liderado por Jawlani ficou conhecido por aprimorar o uso de homens-bomba em atentados e, numa entrevista ao programa Frontline, da rede pública PBS, em 2021, ele confessou:
Todos os que viviam no mundo árabe ou islâmico [quando aconteceram os ataques às Torres Gêmeas] que disserem que não ficaram felizes [com os atentados] estariam mentindo.
Hoje, Jawlani fala em proteger os cristãos na Síria -- lembrando que o governo de Bashar al-Assad era de fato laico e tinha muitas mulheres em sua hierarquia de poder.
A "repaginação" daqueles que os EUA, a Turquia, o Irã e a Rússia definiram oficialmente como "terroristas" não vem de hoje.
Começou logo depois que Washington escolheu aliados para derrubar Assad.
Em 2016, famosamente, a repórter Clarrisa Ward, da CNN, depôs diante do Conselho de Segurança da ONU se referindo aos fundamentalistas como "heróis" por terem "preenchido o vácuo" na guerra civil contra Assad.
No passado, os "terroristas" hoje descritos como rebeldes já queimaram igrejas e mesquitas na Síria -- as provas são abundantes.
Espaço garantido
A CNN segue oferecendo espaço para Jawlani se "reinventar": ele deu uma entrevista à emissora em sua nova "personalidade" depois de derrubar Assad.
Mas, não é a única.
A prestigiosa revista New Yorker manchetou: "Como a oposição síria chocou o regime de Assad".
A PBS estadunidense anunciou: "Rebeldes chegam aos portões da capital da Síria, ameaçando derrubar décadas de governo de Assad".
"Fundamentalismo islâmico" ou "terrorismo" praticamente sumiram da cobertura ocidental, com exceções.
ONU dá freio de arrumação
Hoje, as Nações Unidas deram um freio de arrumação, lembrando em uma publicação oficial:
A Resolução 2254, que foi adotada por unanimidade pelo Conselho de Segurança em 2015, apela aos Estados-Membros para “prevenirem e reprimirem atos terroristas cometidos especificamente” pelo antecessor do HTS, a Frente Al-Nusra [filiada à Al Qaeda].
Kiho Cha, do Departmento de Assuntos de Construção de Paz da ONU, lembrou que em julho deste ano "a equipe de monitoramento deste comitê escreveu um relatório no qual afirmava que o HTS é o grupo terrorista predominante no noroeste da Síria. O seu suposto líder, Mohammad Al-Jolani, também foi listado, o que remonta a 2013".
A resolução do Conselho de Segurança significou congelamento de bens, banimento de viagens e embargo de armas.
Para tirar Jawlani/Jolani e o HTS da lista seria necessário o pedido formal de um ou mais países.
O comitê competente do Conselho de Segurança, formado por representantes dos 15 países integrantes, teria então de tomar a decisão por unanimidade.
Ou seja, tanto a Rússia quanto a China teriam de aprovar a transformação de Jawlani/Jolani na "Madre Teresa de Calcutá" agora vendida pela mídia ocidental.
Pode ser a arma usada por Moscou para tentar manter controle sobre o porto de Tartus, no mar Mediterrâneo, de onde retirou sua frota ao menos por enquanto.
Acusados de estar por trás da derrubada de Assad pelo Irã, os Estados Unidos dificilmente concordarão.