"Os discursos de Trump, cada vez mais raivosos e desconexos, reacendem a questão da idade", destacou recentemente o New York Times, em referência ao fato de que o republicano tem 78 anos de idade -- contra 60 da democrata Kamala Harris.
O tema foi repetido pela TV pública dos Estados Unidos, a PBS: "Os discursos incoerentes de Trump provocam perguntas sobre deterioração mental".
De fato, os discursos de campanha do republicano revelam incoerência interna.
De um lado, Trump promete que os EUA terão sob seu governo "o ar e a água mais limpas" que já tiveram, ao mesmo tempo em que promete explorar gás e petróleo sem qualquer limite, inclusive adotando a técnica do fracking, que notoriamente coloca em risco os lençóis freáticos.
Fake News de alto impacto
Além disso, Trump mente à vontade e espalha fake news grosseiras, como a de que o governo Biden/Harris é responsável pelo sumiço de mais de 300 mil crianças, filhos de imigrantes que entraram ilegalmente nos EUA.
Esta teoria da conspiração foi gerada por uma apresentadora da Fox News. Ela mencionou o número de 80 mil crianças sumidas numa pergunta que fez a Trump. A partir daí, o republicano passou a turbinar o número à vontade, sem nenhuma base factual.
O fato de que filhos de imigrantes muitas vezes entram nos Estados Unidos ilegalmente, através de coiotes e desacompanhados dos pais ou parentes não significa necessariamente que sumiram ou são vítimas de tráfico sexual, como sustenta a teoria de conspiração.
O que os críticos dos discursos de Donald Trump não dizem é que quase nada é espontâneo na campanha dos Estados Unidos.
Muitas vezes o republicano lê suas falas diretamente de um teleprompter.
Em resumo, quase todos os temas nos quais ele toca provavelmente foram testados previamente nos chamados grupos focais, do mesmo gênero daqueles que são utilizados por agências de publicidade.
Nestes grupos, consumidores são convocados para criticar comerciais de produtos.
Improviso fake
A campanha republicana vende como "improvisado" um produto, Trump, embalado de forma sofisticada.
O republicano dança, faz piada, arranja apelidos para os adversários e até declama poesias.
Parece que nada é ensaiado, como deveria ser no caso de um candidato que se apresenta como adversário do "sistema".
Trump, em suas longas falas, no entanto, aperta todos os botões que tocam em questões emocionais do eleitorado.
Ele ganha muitos aplausos, especialmente quando diz que não quer ver homens competindo em esportes femininos, como se esta fosse uma causa defendida por Kamala Harris.
Também sugere que, a depender da democrata, dinheiro público pagaria por cirurgias de troca de sexo de imigrantes ilegais presos.
Trump bate seguidamente na tecla de que a vice presidente não deve ser chamada pelo sobrenome, Harris, mas sim como "Kamala", um nome que soa não americano.
Não é novidade: Trump sempre chamou Barack de "Hussein Obama".
Cultura woke e identitarismo
Por debaixo da suposta crueza das palavras e da aparente falta de lógica dos discursos de Trump, está uma sofisticada operação para definir os democratas e Kamala Harris como antiamericanos, alheios à realidade do eleitor que vai decidir o pleito, que mora no interior dos Estados Unidos -- não em Nova York ou na Califórnia.
Trump bate na chamada "cultura woke" sem chamá-la pelo nome. Bate no identitarismo, mas sem explicitar isso -- afinal, ele busca votos de eleitores negros e hispânicos que podem negar a vitória aos democratas.
Kamala Harris, assim, é a mulher incompetente que deixou imigrantes ilegais do Congo ou do Haiti -- não por acaso, países de maioria negra, associados a desgraças nos noticiários --, recém-saídos da cadeia, entrarem nos Estados Unidos para comer bichos de estimação, assaltar e estuprar.
Dizendo isso, sem necessariamente perder votos das mulheres e dos negros, Trump apela à misoginia e ao racismo que pode render a ele votos de homens brancos de classe média baixa -- fatia do eleitorado que pode decidir a eleição em estados-chave como Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.
O bilionário "do povo"
O republicano conseguiu transformar o que seria um ativo de campanha numa pecha: o plano de Joe Biden de taxar bilionários, do qual Kamala Harris se afastou.
Como a idéia é cobrar imposto sobre ganhos em papéis que ainda não foram vendidos, ou seja, lucros ainda não realizados, com um mero jogo de palavras Trump conseguiu fazer da ideia uma maldição, acusando Kamala de pretender taxar algo que nem existe.
Por outro lado, o republicano diz que vai eliminar impostos das gorjetas, das horas extras e das aposentadorias.
Omite que pretende reduzir impostos das grandes corporações, medida da qual seria beneficiário direto.
Assim, por incrível que pareça, o bilionário Trump consegue se apresentar como um campeão dos mais humildes.
Ao mesmo tempo, apresenta Kamala Harris, os carros elétricos que ela defende e as mudanças climáticas que ela denuncia como alheios à cultura do interior -- dos carrões que bebem gasolina, da torta de maça e do futebol americano.
Trump, o ricaço de Nova York que provavelmente nunca trocou uma fralda -- como denunciou Barack Obama -- se apresenta como o campeão dos "pescoço vermelho", queimados de sol, dos Apalache, a cordilheira cujo nome está associado à beleza e à pobreza nos Estados Unidos.
A própria crítica da mídia aos discursos de Trump expõe o fosso que existe entre os intelectuais de Nova York e da California, que produzem e lêem jornais, e os eleitores do interior, cuja revolta Trump está instrumentalizando para tentar voltar à Casa Branca.