MEIO SÉCULO DO HORROR

50 anos do golpe no Chile: “Carrego a dor de ser apátrida, as marcas nunca se apagam”

Marta Muñoz Contreras vive no Brasil há 46 anos. Testemunha viva do inferno, era uma jovem universitária quando Pinochet esfacelou a democracia chilena. Leia o relato

O presidente chileno Salvador Allende, dias antes do golpe de Estado.Créditos: BBC/Reprodução
Escrito en GLOBAL el

Marta Muñoz Contreras era uma jovem de 19 anos quando entrou para a Universidad de Concepción, no Chile, em 1973. Integrante do Núcleo Universitário Socialista, a estudante viveria em pouco tempo a maior tragédia humana e política da história de seu país: o golpe militar encabeçado pelo general Augusto Pinochet que levou à morte o presidente constitucional Salvador Allende e esfacelou a democracia chilena, que nesta segunda, 11 de setembro, completa 50 anos.

Falando com exclusividade à Fórum, Marta, que é natural de Talcahuano, embora estudasse no campus da Universidad de Concepción instalado na cidade de Coronel, preferiu narrar de forma contínua sua experiência vivida há meio século, já que o assunto ainda a emociona e desperta sensações indescritíveis, segundo ela. Testemunha viva do inferno instalado pelo déspota que mandaria com mãos de ferro no Chile por 17 anos, e que morreu sem acertar contas com a Justiça, ela vive no Brasil há 46 anos e fala como a brutalidade do tirano alterou objetivamente sua vida para sempre, ainda que não tenha sofrido ações e violências físicas diretas.

“Minha lembrança daquele dia começa ainda na noite do dia anterior, que estava reunida no quarto da pensão, com vários companheiros, ouvindo, como quase toda noite, a rádio Moscou, com transmissão da Argentina. No dia seguinte, já em meio à tensão, passam a dar a notícia de última hora que acabaram de assassinar ao presidente de Chile, Salvador Allende. Nós chorávamos sem entender claramente nada.”

“No dia seguinte, já no dia 11, era anunciado o golpe militar e um toque recolher absoluto. Ou seja, ninguém podia sair de casa a não ser com uma bandeira branca e em caso de suma urgência. Eu estava longe de minha casa e sem sequer imaginar o que significava isso na prática. Passei alguns dias aterrorizada, pois só se ouviam carros dos milicos e tiros por toda parte. Na TV só havia um canal, também sob controle deles, alertando para o que podia ou não fazer.”

“Quando levantaram o toque de recolher total, passou então a ser possível sair de casa das 14h até 20h. Tínhamos somente seis horas para poder sair e fazer tudo. Nesse meio tempo minha mãe chegou para me buscar, porque diziam que essa cidade onde eu estava, Coronel, tinha sido bombardeada. Não sei se saíram com essa história porque era uma cidade claramente de esquerda, por ser paupérrima e de minadores do carvão, que mais pareciam escravos... Eu estudava naquela sede da Universidade de Concepción. Já voltando para casa, e nós tínhamos que pegar 2 ônibus, era uma corrida contra o tempo, pois tinha pouquíssima condução em serviço. Nós chegamos a Concepción e ainda faltava mais um ônibus e pouco tempo para o toque de recolher voltar a vigorar. No ponto havia um bar e aí chegou um caminhão dos militares com uma verdadeira “bíblia” de nomes procurados e começaram a pôr pessoas que estavam no bar dentro do caminhão, como animais. Eles jogavam um em cima do outro igual a bicho morto... E eu parada lá à espera do dito ônibus, e nada. Vem, então, um soldado pra cima de mim e eu fiquei parada na minha ingênua juventude. Minha mãe me deu um puxão e me livrou de levar uma coronhada de fuzil na cabeça. Lembro de minha mãe gritando “perdão, senhor, ela não sabe de nada”. Graças a Deus conseguimos pegar o último ônibus do dia minutos depois e sair de lá... Logo que chegamos em casa recordo-me de sermos alertadas de não dormir perto de janelas.”

“Os dias de terror foram passando e com eles aquela sinfonia diuturna de tiros. Víamos uniformes de todos os tipos desfilando a toda hora pelas ruas, difundindo terror e morte. Perdi tudo, minha própria identidade, a faculdade, muitos amigos, professores e até hoje carrego a dor de ser uma apátrida. As marcas não acabam nunca... E não poderia ser diferente, né? Vou por toda vida repetir: “Ni perdón, ni olvido! (Nem perdão, nem esquecimento!).”

“Eu desejo ao Chile que volte à consciência política e social que um dia destruiu esse câncer fascista, que jamais se esqueçam de tanta dor que persegue por toda a existência os mártires vítimas do ódio... Quantos desaparecidos ainda... Embora impossível, gostaria que os chilenos voltassem a ser um povo que luta por seu próprio povo e que desapareça essa enorme diferença de classes sociais que ainda persiste até hoje, porque ao fim somos todos irmãos e iguais perante Deus (ou aos deuses).”