O jornalista sudanês Mohamed Saad vive com a família em Cartum, capital do Sudão e epicentro do conflito armado que eclodiu no último dia 14 e já fez centenas de mortos e quase dois mil feridos.
Saad relata à Revista Fórum a dificuldade de se comunicar com colegas jornalistas do exterior para atualizá-los sobre a grave situação do seu país.
Te podría interesar
"Enviar mensagens é difícil com o medo e o cheiro de cadáveres em decomposição que enchem as estradas de Cartum", explica.
O jornalista é editor-chefe do site Brown Land News, que tem feito a cobertura do conflito, desabafa sobre o dia a dia de viver em uma área em conflito.
"Enquanto minto para meus filhos que os sons dos canhões são fogos de artifício porque o Eid [feriado celebrado no Islã que marca o fim do Ramadã] está se aproximando, apesar das condições miseráveis e da tristeza que enche o céu", relata.
Saad conta que a situação está muito ruim no Sudão. "Respiramos terror e dormimos com medo e ansiedade, e nossos corações quase pulam de pânico excessivo sempre que ouvimos o som de balas."
"Enquanto dormimos debaixo das camas porque temos medo até de ouvir os sons do ar, e as batidas nas portas, pensamos que são o som de balas", descreve.
"O que se passa agora no Sudão resume-se na mensagem de um soldado do Exército Nacional ao seu irmão que trabalha nas Forças de Apoio Rápido, informando-o que a sua mulher deu à luz um filho homem, e ele não sabe porque é no meio das batalhas, como se quisesse lhe contar as boas novas antes de enfrentá-lo na batalha enquanto eram dois adversários", escreve Saad.
"Pela primeira vez, espero que o governo corte o serviço de internet porque não há nada além de notícias negativas", desabafa o jornalista.
Ele comenta ainda que a falta de água, eletricidade e remédios, e, principalmente, o bombardeio de hospitais, o deixou deprimido.
Brasileiros tentam sair do país
Um grupo de nove brasileiros, entre atletas e comissão técnica, que atua no clube de futebol Al-Merreikh, tenta sair da capital Cartum e pede ajuda do governo brasileiro para fugir da guerra. Eles se trancaram no prédio onde moram e vivenciam uma rotina de medo e destacam que a comida já começa a faltar. Entre eles está o jogador de futebol Paulo Sérgio, que já atuou no Flamengo.
“A gente não sabe o que vem pela frente, qual é o desenrolar disso. A gente acorda, faz as refeições e passa o dia conversando. A comida começa a acabar. Estamos fracionando. A luz e a internet estão caindo. A gente tenta poupar os dados, mas o nosso medo é ficar incomunicável. A gente não sabe o que vai acontecer”, contou o atleta ao g1.
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou nota no dia 15 em que informa que o governo brasileiro acompanha com preocupação a situação no Sudão.
"Ao reiterar seu apoio às negociações políticas entre as lideranças sudanesas, com o objetivo de restabelecer governo civil de transição, o governo brasileiro exorta as partes à contenção e à cessação imediata dos combates. Reiteramos apoio aos esforços do Conselho de Segurança das Nações Unidas nesse sentido", diz a nota.
A comunidade brasileira no Sudão, informa o Itamaraty, é composta por cerca de 15 pessoas com as quais a Embaixada do Brasil em Cartum vem mantendo contato. O número de telefone/whatsapp do plantão consular para cidadãos que necessitem de apoio naquele país é o +55 61 98260-0610.
Tentativas de cessar-fogo
Nesta terça-feira (18), os comandantes das forças rivais concordaram com um cessar-fogo de 24 horas a partir daquela noite, disse o Exército, após ligações do secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, para cada lado.
No entanto, as facções rivais ignoraram o acordo e a escalada de violência persiste.
O conflito já deixou ao menos 185 mortos e mais de 1,8 mil feridos, de acordo com informações divulgadas nesta segunda-feira (17) pelo chefe da missão da Organização das Nações Unidas (ONU) no país, Volker Perthes.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu o fim imediato das hostilidades e alertou que a escalada da violência "poderá ser devastadora para o país e para a região".
O Egito e os Emirados Árabes Unidos também vêm tentando, sem sucesso, convencer os dois grupos a aceitarem um cessar-fogo. O conflito ameaça dividir o país entre as duas facções, que chegaram a compartilhar o poder durante um turbulento processo de transição política.
Ataques a estrangeiros
No domingo (16), a missão da ONU no Sudão informou que três funcionários do Programa Mundial de Alimentos (PAM) foram mortos durante confrontos no norte de Darfur, região a oeste do país.
O embaixador da União Europeia (UE) no país foi alvo de um ataque em sua residência em Cartum nesta segunda-feira (17), informou o chefe da diplomacia do bloco, Josep Borrell.
Situação caótica
Em Cartum, escolas, hospitais, escritórios e postos de combustíveis permaneceram fechados nesta segunda-feira, com os serviços de saúde enfrentando graves problemas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que vários hospitais da capital que atendem a população civil "estão sem sangue, equipamentos de transfusão, fluidos intravenosos e outros itens essenciais".
As pontes que ligam a capital às cidades de Omdurman e Bahri, na margem oposta do rio Nilo, estão bloqueadas por veículos blindados, e algumas das principais vias de acesso a Cartum estão intransitáveis.
A população enfrenta cortes no fornecimento de água e eletricidade, o que faz com que muitas pessoas saiam às ruas em busca de alimentos, apesar dos riscos.
Entenda o conflito
O conflito no Sudão envolve o comandante do Exército, general Abdel Fatah al Burhan, líder de fato do país, e seu número dois, o general Mohamed Hamdan Daglo, conhecido como "Hemedti", comandante das Forças de Apoio Rápido (FAR).
Burhan chefiou uma junta que governou o país após a queda do presidente Omar al-Bashir, em 2019, e se manteve no poder com um golpe de Estado em 2021.
Antigo aliado de Bashir e comandante de campanhas no conflito de Darfur (2003-2008), Burhan presidiu o Conselho Militar de Transição, órgão criado para supervisionar a transição do Sudão para o regime democrático, e se tornou presidente interino do país.
No entanto, em outubro de 2021, com a aproximação do fim do prazo para entregar o poder a governantes civis, Burhan deu um golpe e derrubou do poder o primeiro-ministro civil Abdalla Hamdok e eliminou a possibilidade de uma transição democrática.
Desde então, o general reforçou seu controle sobre o país, apesar de constantes protestos e de um acordo de dezembro de 2022 para abrir caminho para um governo de transição civil. O conflito iniciado na semana passada, no entanto, praticamente anulou esse o processo.
Sob o acordo de 2022, as FAR, grupo paramilitar liderado por "Hemedti", deveria ser incorporado ao Exército sudanês. Nesta segunda-feira, no entanto, Burhan declarou que os combatentes são um grupo rebelde e ordenou sua dissolução.
Os combates em Darfur geraram temores de uma nova instabilidade na região, após o conflito de 2003 que resultou nas mortes de cerca de 300 mil pessoas e deixou 2,7 milhões de refugiados.
Internautas reagem ao conflito
Pelas redes sociais, em especial o Twitter, usuários têm postado registros do conflito no Sudão.
O jornalista freelancer Kevin Muruta que atua no continente africano publicou uma sequência de vídeos e fotos da situação preocupante.
"Em El Fasher, a capital do estado de Darfur do Norte, está sob fogo. Um morteiro acabou de cair no campo Al Basouk IDP. Vítimas não relatadas até o momento", postou nesta quarta-feira (19).
No sábado (15), Muruta registrou o início do conflito na capital sudanesa. "Os combates eclodiram entre as Forças Armadas do Sudão e as Forças de Apoio Rápido em Cartum, capital do país", postou.
Uma usuária do Qatar lamenta a violência no país mulçumano. "Honestamente, comovente ver o conflito irromper, mais uma vez em um país #muçulmano. Rejeitamos a violência em todos os lugares desta terra e esperamos que a paz prevaleça em todos os países.
Ya Allah, ajude os inocentes, castigue os ímpios", escreveu.