POSICIONAMENTO

O Brasil deve romper relações com Israel? Vai endurecer o discurso?

Movimento de países que romperam ou vêm ameaçando romper com Israel diante do massacre de palestinos cresce; no caso do Brasil, retenção de brasileiros em Gaza, epicentro dos bombardeios, torna situação ainda mais delicada

Lula e Benjamin Netanyahu.Créditos: Fotos: Ricardo Stuckert/Governo de Israel/Divulgação
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No último sábado (4), organizações de todo o mundo promoveram um Dia Internacional de Solidariedade à Palestina e manifestações massivas para condenar o massacre que o Estado de Israel vem promovendo na Faixa de Gaza foram realizadas em inúmeras capitais ao redor do globo. 

Em São Paulo (SP), o ato reuniu cerca de 12 mil pessoas que, com faixas, cartazes e palavras de ordem, condenaram a morte de cerca de 10 mil pessoas na Palestina diante das investidas israelenses desde o ataque do Hamas, em 7 de outubro. Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, já são 4.104 crianças assassinadas

Uma das reivindicações mais repetidas durante a manifestação na capital paulista, que contou com a presença de lideranças de partidos políticos, movimentos sociais e organizações árabes e palestinas, foi um pedido para que o governo brasileiro, liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, rompa relações diplomáticas com Israel

O argumento é de que um Estado, especialmente o brasileiro, que foi fundamental para a criação de Israel em 1948, não poderia manter relações com uma nação que vem promovendo o que classificam como uma limpeza étnica contra outro povo - no caso os palestinos -, violando inúmeros tratados internacionais. 

Manifestantes condenam assassinato de crianças no ato pró-Palestina em São Paulo (Foto: Ivan Longo)

A carnificina que vem sendo deflagrada pelas forças militares israelenses na Faixa de Gaza, somada às violações de direitos humanos com ataques a hospitais, campos de refugiados, corte de água e energia elétrica, vem motivando o crescimento de um movimento de países que estão mudando o discurso, ameaçando romper ou até mesmo rompendo relações com o Estado israelense

Na América Latina este movimento é evidente. A Bolívia, por exemplo, anunciou rompimento de relações diplomáticas com Israel em repúdio à “agressiva e desproporcional ofensiva militar que o país realiza na Faixa de Gaza e que ameaça a paz e a segurança internacionais”.

“A Bolívia exige o fim dos ataques na Faixa de Gaza, que até agora causaram milhares de mortes de civis e o deslocamento forçado de palestinos; bem como a cessação do bloqueio que impede a entrada de alimentos, água e outros elementos essenciais à vida, violando o direito internacional e o direito internacional humanitário no tratamento da população civil em conflitos armados”, disse a ministra boliviana María Nela Prada.

Já o Chile e a Colômbia decidiram convocar seus embaixadores em Tel Aviv para retornarem aos seus países com o objetivo de reavaliar e discutir as relações com Israel. O mesmo foi feito, recentemente, pela Jordânia e pela África do Sul - o gesto representa, no mundo diplomático, uma reprimenda e possível prévia de rompimento de relações. 

Há, ainda, países que começaram a endurecer o discurso contra Israel. A ministra de Direitos Sociais da Espanha, Ione Belarra, por exemplo, vem tecendo duras críticas ao governo de Benjamin Netanyahu e tem trabalhado para que seu país rompa relações com o Estado israelense.

“Por que alguns países que levantam a bandeira dos direitos humanos em outros conflitos não fazem o mesmo neste caso, em vez de assistirem horrorizados ao que está acontecendo? Precisamos condenar também a morte de milhares de crianças palestinas, as cenas de mães gritando desesperadamente com seus filhos mortos em seus braços. E precisamos punir quem é responsável por isso”, disse a ministra em entrevista nesta quarta-feira (8). 

No dia 28 de outubro, Ione Belarra já havia divulgado um vídeo, em suas redes sociais, usando a expressão “genocídio planejado” para se referir aos bombardeios de Israel em Gaza e apelado para que líderes mundiais, incluindo o premiê espanhol, Pedro Sánchez, rompessem relações com Israel.

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, por sua vez, condenou nesta segunda-feira (6) as ações de Israel e disse que a Faixa de Gaza está se tornando um “cemitério de crianças”, destacando que o Estado israelense vem incorrendo em violações à lei humanitária internacional. 

E o Brasil? 

Desde o ataque do Hamas em 7 de outubro e o revide totalmente desproporcional de Israel contra civis palestinos, que já dura mais de um mês, o governo brasileiro, por meio do ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e do presidente Lula, vem condenando tanto as ações do grupo armado islâmico baseado em Gaza quanto as das forças militares israelenses. 

Em sua presidência no Conselho de Segurança da ONU, durante o mês de outubro, o Brasil chegou a apresentar uma resolução por um cessar-fogo no conflito que foi apoiada pela maior parte dos membros do colegiado, mas foi vetada a partir do voto contrário dos Estados Unidos

O governo Lula vem agindo com cautela em seus posicionamentos e declarações, já que precisa manter diálogo com Israel para conseguir repatriar o grupo de 34 brasileiros que estão presos na Faixa de Gaza, epicentro dos bombardeios israelenses. 

A situação vem ficando cada dia mais tensa e delicada, visto que o governo de Israel descumpre reiteradamente acordos e mantém os brasileiros presos em Gaza, sob o risco de serem assassinados, há mais de 30 dias. O grupo não foi incluído, até o momento, em nenhuma das listas de estrangeiros autorizadas pelo governo israelense a deixar a região. 

Grupo de brasileiros que estão em Gaza (Foto: Embaixada do Brasil na Palestina)

Para Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o fato de Israel reter os brasileiros em Gaza representa uma “humilhação” ao Brasil e o massacre contra palestinos é razão suficiente para que o governo Lula rompa relações diplomáticas com a administração de Netanyahu.

Ao repercutir uma fala de Lula se dizendo “triste” pelas mortes de mais de 3 mil crianças em Gaza, nas redes sociais, Nasser escreveu: 

“Corretíssimo, mas por que não dizer quem está fazendo isso? Dá para ter relações econômicas e políticas com quem mata coletivamente crianças? Se não romper com Israel, somos obrigados a deduzir que o Brasil é cúmplice de genocídio”. 

“Lula disse que: há genocídio em Gaza; que Netanyahu é insano; que é inconcebível tantas crianças mortas. Mas mantém relações diplomáticas com quem pratica genocídio, com quem é insano e que mata crianças. Pelo rompimento de relações com Israel já!”, defendeu ainda o professor. 

Em entrevista à Fórum, o advogado, diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD), publisher da Jacobin Brasil e analista internacional, Hugo Albuquerque, avaliou como positivo o movimento dos países que estão rompendo ou ameaçando romper com Israel, disse que esses atos contribuem para isolar o governo Netanyahu e sugeriu que o Brasil deva, se não fazer o mesmo, ao menos endurecer o discurso - principalmente diante da retenção dos brasileiros em Gaza. 

“Eu acho que esses países estão certos (...) Se a ONU é quem fundou Israel, como é que Israel pode, basicamente, ser o Estado mais fora da lei, de acordo com todo o arranjo das Nações Unidas? Nenhuma outra nação do planeta é tão fora do direito internacional quanto Israel, em matéria de violar resoluções, violar entendimentos e contrapor a ordem internacional, tal como foi fundada no pós-guerra”, analisa Albuquerque. 

“Então, eu acho que todos os países do mundo deveriam romper relações com Israel, porque aquilo que assenta a legitimidade de Israel, que foi uma decisão das Nações Unidas, boa ou ruim, foi uma decisão, uma ordem que fundou Israel, por ele é negada. Na verdade, o que esses países estão fazendo é por essa contradição antagônica de Israel e a gravidade do que está acontecendo agora contra si mesmo, porque não apenas Israel está descumprindo e segue descumprindo os acordos de Oslo, como ele partiu para uma política objetivamente genocida. Isso é um genocídio de livro, como a gente fala no Direito, um caso de livro, um caso clássico de genocídio”, prossegue o advogado. 

Bombardeio israelense na Faixa de Gaza (Foto: Wafa)

Se seguir sua tradição diplomática, o Brasil não deve, de fato, romper relações com Israel, mas a retenção dos brasileiros em Gaza pode, ao menos, fazer com que o governo brasileiro endureça o discurso contra o Estado israelense. Segundo o colunista Tales Faria, do portal UOL, auxiliares diretos de Lula têm relatado que o presidente está extremamente irritado com a situação e que, se algo acontecer ao grupo de brasileiros no epicentro do conflito, o mandatário deve tomar atitudes mais duras. O chefe do Executivo já teria decidido, inclusive, ao fim da guerra, se posicionar frontalmente contrário à ocupação israelense na Faixa de Gaza em fóruns internacionais. 

A jornalista Daniela Lima, da GloboNews, por sua vez, foi na mesma direção e apurou que o governo brasileiro vem afirmando, junto aos seus diplomatas em Israel, que, se algo acontecer aos brasileiros que estão presos em Gaza, as relações com o Estado israelense ficarão “insustentáveis” - citando o exemplo de países da América Latina que convocaram de volta seus embaixadores em Tel Aviv. 

O advogado Hugo Albuquerque endossa esse movimento, afirmando que, se no passado o Brasil não romperia com Israel, neste momento, dadas as atuais circunstâncias, é possível que o país adote uma postura mais incisiva. 

“A tradição diplomática brasileira indicaria que não haveria rompimento, por uma postura conciliatória do Brasil, mas eu acho que a situação mudou. Eu acho que isso põe uma questão importante para a tradição diplomática brasileira e põe uma questão importante para a maneira da diplomacia brasileira agir conforme foi no período do Lula e que estaria sendo reativada agora. A chamada diplomacia ativa e altiva do Celso Amorim [ex-chanceler, atual assessor especial para assuntos internacionais da presidência], que era a diplomacia de conciliação, de defesa do multilateralismo, da multipolaridade, mas num cenário como o de 15 anos atrás que era bem mais ameno. Você há de convir comigo, as coisas estavam bem tranquilas no mundo apesar da guerra do Iraque, apesar da guerra do Afeganistão”, avalia. 

“O cenário atual, inclusive por conta da crise de hegemonia americana, é muito mais turbulento, muito mesmo. Isso põe uma questão importante para o Brasil e tem esses brasileiros que estão aí inexplicavelmente presos em Gaza. Há algumas semanas parecia que era um exagero o Brasil falar grosso, todo mundo falou ‘não, a gente tem de conversar aqui com o Israel para que esses brasileiros não sejam de forma alguma punidos ou morram ali para a gente conseguir’. E todo mundo achou que esses brasileiros iam ser rapidamente resgatados ali pelo Egito e voltariam sãos e salvos aqui para o Brasil.. Isso não aconteceu. Então, hoje, a força normativa dos fatos, como a gente fala no Direito, a lei diz uma coisa, mas os fatos contradizem, quebraram essa narrativa no meio, o que obriga o governo a repensar uma estratégia de política de relações exteriores para um cenário de conflagração”, emenda o advogado. 

Para o analista, neste momento, o governo brasileiro “tende a ameaçar” um rompimento de relações com Israel com o objetivo de exigir a libertação dos brasileiros que estão em Gaza. 

“O governo brasileiro tem que tomar atitudes muito duras e tem que exigir um posicionamento de Israel. Israel tem relações com o Brasil? Tem. O Brasil teve um papel fundamental na construção do Estado de Israel lá atrás, nos anos 40. Se Israel acha que o Brasil é um anão diplomático ou alguma coisa do tipo, tem que sofrer as consequências (...)  É preciso falar muito sério e tem de comunicar isso para os Estados Unidos, que é uma ruptura de um país grande e que isso vai ter um impacto tremendo. E esses brasileiros presos em Gaza são o objeto da conversa. Tem de respeitar o Brasil. E o Brasil não está sendo respeitado. Agora, se o Brasil adotar uma atitude subserviente, eu acho que a política externa para os próximos anos está completamente comprometida”, finaliza Hugo Albuquerque.