De LISBOA | Os estudos antropológicos e históricos mais robustos mostram que, como povo, nós, os brasileiros, “aprendemos” muitas coisas com os portugueses, aqueles que nos colonizaram por mais de três séculos e que deixaram indiscutíveis e indissolúveis traços como civilização, sejam eles bons ou ruins. Pois agora, já caminhando para o meio do século XXI, parece que nós, os brasileiros, é que temos transmitido alguns “valores” aos habitantes da estreita franja ocidental da Península Ibérica.
Era manhã em território luso, dia 7 deste mês, quando a programação de todas as emissoras foi interrompida para mostrar uma ação policial que tinha como alvo inúmeros integrantes do governo do primeiro-ministro socialista António Costa, entre eles seu chefe de gabinete, Vítor Escária, e o ministro das Infraestruturas, João Galamba. Numa gaveta do gabinete de Escária, dentro do Palacete de São Bento, chefia do governo português, os agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) encontraram 75 mil euros.
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A ação era fruto de um procedimento aberto pelo Ministério Público de Portugal, que àquela altura investigava suspeitas de ilegalidades e crimes, incluindo aí o recebimento de propina, em processos envolvendo a concessão de áreas para exploração de hidrogênio verde e lítio à iniciativa privada em duas regiões do país. No total, o MP determinou busca e apreensão em 42 locais, sendo 17 propriedades privadas, cinco escritórios de advogados e outros 20 espaços de instituições públicas. Cinco pessoas foram imediatamente presas, entre elas Vítor Escária, o chefe de gabinete do primeiro-ministro português.
Passadas poucas horas, veio então a bomba: António Costa, chefe do governo de Portugal, era alvo de uma investigação formal aberta pela Procuradoria-Geral da República, realizada em separado por determinação do Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que o premiê tem essa prerrogativa de foro. Sobre a acusação, absolutamente nada, nem uma só palavra. Mas a investigação estava aberta, garantia o comunicado da PGR.
Em pouco tempo Costa estava no púlpito do Palacete de São Bento, tenso, e anunciando sua demissão. Acabava ali o 23° Governo Constitucional de Portugal, que no próximo ano completa 50 anos de sua redemocratização, um orgulho para os portugueses, que em 25 de abril de 1974 deixaram para trás a mais longeva ditadura do ocidente no século XX, sob a égide do tirano António de Oliveira Salazar.
“O prestígio das instituições democráticas, que me cabe acima de tudo preservar, torna incompatível que se mantenha em funções quem, através de um gabinete de imprensa da Procuradoria-Geral da República, toma conhecimento que já foi, ou vai ser aberto um processo-crime contra mim”, começou dizendo o premiê do PS, o Partido Socialista, uma potência político-eleitoral de centro-esquerda, como o PT no Brasil. Ele ainda acrescentou que “é fundamental que os portugueses tenham total confiança em quem exerce as funções de primeiro-ministro”.
“Quero dizer, olhos nos olhos aos portugueses, que não me pesa na consciência a prática de qualquer ato ilícito, ou sequer de qualquer ato censurável”, seguiu Costa, reiterando que “respeito a independência da Justiça, respeitei relativamente aos outros, respeito relativamente a mim, e agradeço que todos a respeitem e, portanto, deixemos a Justiça funcionar normalmente, e é pela minha parte o que eu farei, e a Justiça há de concluir esse processo”.
Não é preciso dizer que seus opositores festejaram vivamente. O PSD (Partido Social Democrata), principal agremiação da direita tradicional portuguesa, como o PSDB já foi um dia no Brasil, emitiu nota e se assanhou para que uma rápida dissolução do parlamento fosse anunciada pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Assim foi também com outros partidos e grupos políticos, até mesmo na esquerda mais radical, como no Bloco de Esquerda (BE) e na coalizão CDU (formanda pelo Partido Comunista Português e pelo Partido Ecologista "Os Verdes").
Com o anúncio da demissão, no entanto, houve um grupo que festejou de forma ainda mais descarada. O Chega, partido de extrema direita controlado pelo descontrolado André Ventura, que cresce acentuadamente aos olhos de todos ano a ano, entrou em êxtase. Nas primeiras sondagens, percentualmente falando, o tal “Bolsonaro português” foi o que mais capitalizou com o “escândalo de corrupção”.
Mas voltemos à investigação contra António Costa, aberta pelo Ministério Público. Dias depois de entregar o cargo, é finalmente divulgado o que pesou contra o primeiro-ministro. Numa escuta telefônica feita pelos investigadores, com autorização da Justiça, o consultor e advogado Diogo Lacerda Machado, chegado dos intestinos do poder, diz ao administrador de startups Afonso Salema, alguém supostamente interessado num trambique com o governo no caso das concessões suspeitas:
“Tá bem. Eu vou decifrar essa, se é Economia ou Finanças. Vou começar por aí e depois logo lembro como tomamos a iniciativa de suscitar e sugerir. Se for Finanças, eu falo logo com o Medina ou com o António Mendes, que é o secretário de Estado. Se for Economia, arranjo maneira depois de chegar ao António Costa.”
Há um problema aí. O ministro da Economia chama-se António Costa Silva.
Não teria cabimento dizer que resolveria algo com o primeiro-ministro caso a questão fosse parar no Ministério da Economia. Como chefe máximo do governo, o premiê António Costa, em tese, conseguiria interferir em qualquer pasta, em qualquer situação. Outra coisa: ao se referirem ao primeiro-ministro, todos os funcionários do governo, mesmo que informalmente, o chamam pelo cargo, não pelo nome de batismo.
Só que não foi isso que o MP “entendeu”. A partir daí, considerou o primeiro-ministro António Costa suspeito e abriu uma investigação, com autorização do Supremo Tribunal de Justiça, o que o fez se demitir. Um golpe claro, evidente e cristalino, assumido indiretamente poucos dias depois da renúncia do chefe de governo, após o advogado de Diogo Lacerda Machado denunciar que a fala de seu cliente nunca se referiu ao chefe de governo luso, mas sim ao então ministro da Economia.
“Estou cá para colaborar totalmente com a justiça, para apurar toda a verdade e tudo aquilo que a justiça entender dever apurar sobre matéria que, aliás, desconheço o que seja. O comunicado é omisso no que me é imputável”, falou António Costa (primeiro-ministro)], ainda em seu comunicado de demissão, no dia 7. Por certo, o comunicado não era “omisso”. Era malandro, para dizer o mínimo, e criminoso, para dizer o máximo.
O presidente da República, após consultar todos os partidos com representação na Assembleia da República e de realizar uma reunião com o Conselho de Estado, três dias após o “escândalo” explodir, anunciou sua decisão, que seria natural naquelas circunstâncias. Em pronunciamento à nação, confirmou a dissolução do parlamento e marcou eleições gerais antecipadas para 10 de março de 2024, mantendo Costa como “primeiro-ministro em funções” até lá. O "esclarecimento" sobre a "confusão de nomes" só seria levado a público uma semana depois.
Em poucas palavras, o leite já estava derramado e, numa primeira análise legal e constitucional, não haveria o que fazer agora, mesmo tendo sido Costa vítima evidente de um "erro".
A história rocambolesca e bizarra lembra as mais malucas peripécias do período da força-tarefa da operação Lava Jato, que em conluio com um consórcio de veículos de imprensa liberais alardeava as mais grotescas acusações, sem qualquer prova ou conexão, contra o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT) e seus aliados. Era refinaria de Pasadena pra cá, triplex no Guarujá pra lá, vazamento de escuta ilegal feita no Planalto para o Jornal Nacional, em que absolutamente nada era relevante, acolá. Enfim, um pandemônio generalizado que em seu estágio final pariu (ou defecou) Jair Bolsonaro, o bufão aloprado risível que tirou a sorte grande.
Para Lenio Streck, um dos mais respeitados juristas brasileiros, que atuou no Ministério Público do Rio Grande do Sul por 28 anos e que acompanhou face a face os absurdos da Lava Jato, o famigerado lawfare virou prática corrente no cenário político, envolvendo as instâncias de Estado, o que não deveria ocorrer.
“Num Estado Democrático de Direito jamais se pode pensar que uma investigação policial ou investigação por parte do Ministério Público possa alterar os rumos da política. É a negação total do direito. O direito jamais pode ser utilizado como instrumento ou arma política. Isso se chama lawfare. No Brasil, o MP atuou com lawfare, mas se descobriu depois apenas. E ainda estão investigando”, começou dizendo Lenio à Fórum.
“Nas circunstâncias atuais, acontecesse no Brasil um caso igual ao de Portugal, o Procurador-geral seria processado e sofreria inexoravelmente um impeachment. De todo modo, o ocorrido em Portugal acende uma luz amarela no limite do vermelho. O poder de qualquer instituição deve ter limites. A democracia está sustentada no direito. Não pode ser prejudicada pelo direito. Na verdade, é possível dizer que o MP golpeou o mandato do primeiro-ministro... Claro, considerando ser verdadeiro o que está sendo mostrado agora nos meios de comunicação. Isto é, que o Ministério Público cometeu esse erro crasso”, completou o jurista.
A “malandragem” de “passar o rapa” no mandato de um governo não muito simpático ao discurso neoliberal, sem utilizar os expedientes mais conhecidos do passado, como golpes com tanques e tropas nas ruas, ou com ações de terror para desestabilizar a ordem pública, ao que consta, virou febre e não foi só no Brasil.
Quem falou também com a Fórum foi o advogado, historiador formando na Universidade Estadual Paulista (UNESP) e professor há mais de 20 anos em cursos preparatórios pré-vestibulares Marcelo Cardoso da Silva. Ele lembra que essa prática, que começou a ficar famosa mundo afora após o golpe contra o PT e a ex-presidente Dilma Rousseff, vem ganhando terreno.
“As democracias no mundo, por muitos anos, sofreram com derrubadas de poder por meios violentos, geralmente com a participação de militares ou grupos armados comandados por caudilhos, que pressionavam ou escancaravam a suas ameaças. Atualmente, estamos notando um tipo diferente de tomada de poder. As estruturas de governo têm sido por várias vezes ameaçadas por uma forma diferente de golpe, um golpe que acontece dentro de escritórios políticos, com o apoio de lobistas e de setores da imprensa que criam fatos ou narrativas em relação a determinados governantes, que aí não conseguem mais apoio político de partidos que temem estar ligados a essas narrativas, perdendo assim a capacidade de governar. Acabam sendo derrubados de forma “limpa e pacífica”, dando a impressão de legalidade e normalidade democrática”, explicou o historiador.
O professor lista alguns casos ocorridos de pouco mais de uma década para cá e diz ter ficado surpreendido com o fato dessa prática ter chegado até a uma democracia europeia vista como sólida.
“Muitos têm sido os exemplos nestes últimos anos na América Latina, como o de Fernando Lugo, no Paraguai, a presidenta Dilma Rousseff, no Brasil, e o que quase aconteceu com Cristina Kirchner, na Argentina. Inicialmente, dava a impressão de que esse tipo de procedimento seria uma artimanha apenas na América Latina, ou em considerados “não desenvolvidos”, mas pudemos observar o que ocorreu agora em Portugal, como o primeiro-ministro socialista António Costa e essa “trapalhada” do Ministério Público. Um país com uma história recente de democracia sólida, mas que ao que tudo indica experimentou essa nova forma de golpe. Eu costumo dizer que é um golpe ainda mais covarde, e cínico, se comparado com aquilo que acontecia na América Latina durante a Guerra Fria, por exemplo”, concluiu Cardoso.