PERSEGUIÇÃO JUDICIAL

Lawfare contra Cristina Kirchner tem versão argentina de Sergio Moro, Vaza Jato e Globo

Para Cristina Kirchner, que será julgada por corrupção, casos como o que ocorreu na Argentina e no Brasil mostram que "o 'Partido Judicial' substituiu o 'Partido Militar' nos golpes na América Latina

Lula e Janja com Cristina Kirchner na Argentina.Créditos: Ricardo Stuckert
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Vítima de um processo de lawfare que a colocará no banco dos réus por um suposto esquema de corrupção nesta terça-feira (6), Cristina Kirchner classificou a perseguição como "Partido Judicial" e comparou ao que ocorreu com Lula (PT) no Brasil e Rafael Correa no Equador em entrevista a Monica Bergamo, na edição desta segunda-feira (5) da Folha de S.Paulo.

"Com Lula, a mesma coisa. A diferença é que as mesmas pessoas que o meteram preso depois foram buscá-lo e reverteram o que tinham feito. E por quê? Porque chegou Bolsonaro, um personagem que fez muito mal ao país e a muitos atores da vida brasileira", afirmou.

E, realmente, a narrativa de corrupção criada em torno de uma associação supostamente ilícita que destinava verbas para 51 obras na província de Santa Cruz, da qual o ex-presidente Néstor Kirchner, seu marido, morto em 2010, foi governador, tem trama e personagens semelhantes ao que ocorreu no Brasil - e também no Equador.

No dia 17 de outubro, o site Página 12 revelou uma espécie de Vaza Jato argentina divulgando conversas de um grupo de Telegram por Pablo Casey, diretor de Assuntos Jurídicos e Institucionais do Grupo Clarín, empresa de comunicação que domina a mídia liberal aos moldes de como atua a Globo no Brasil.

O grupo foi formado para encobrir uma viagem voo fretado de empresários, ex-agentes de inteligência e juízes ligados à investigação contra Cristina que viajaram para uma fazenda de 12 mil hectares, em Bariloche, que pertence ao bilionário inglês Joe Lewis, amigo íntimo de Marcelo Macri, ex-presidente neoliberal da Argentina.

Entre os presentes estava o juiz Julián Ercolini, uma espécie de Sergio Moro, que liderou a ofensiva judicial contra Cristina, que na entrevista à Folha, revelou o papel do magistrado no processo de lawfare.

"A sentença foi escrita em 2 de dezembro de 2019, na primeira vez em que testemunhei neste julgamento. Por razões muito simples. Primeiro: todas as minhas garantias constitucionais foram violadas. Segundo: tudo o que foi dito é mentira. Terceiro: o juiz que investigou este caso [em primeira instância, e decidiu enviá-lo a julgamento] é o mesmo [Julián Ercolini] que há sete ou oito anos, diante das mesmas denúncias feitas pela oposição, disse que não era competente [para investigar] e enviou o processo para [a Justiça do] sul do país. A Justiça de Santa Cruz investigou e houve o sobreseimiento [quando um processo é finalizado por falta de causa]. Aquele processo envolveu o mesmo empresário e exatamente as mesmas 51 obras que agora voltaram a ser investigadas. Quando todas as garantias são violadas, quando o juiz falava uma coisa e hoje fala outra com base em uma denúncia feita pelo governo [de seu principal opositor, o ex-presidente Mauricio] Macri, obviamente haverá uma condenação", afirmou Cristina.

Além de Ercolini, estavam na viagem Carlos Mahiques — juiz de Cassação alinhado com o macrismo —, seu filho Juan Bautista Mahiques — chefe dos promotores e operador judicial do macrismo —, Pablo Cayssials — juiz de contencioso administrativo, Pablo Yadarola —juiz criminal econômico, candidato da ultradireita extremista à Câmara Federal —, e o empresário especializado em campanhas digitais Tomás Reinke, entre outros.

Conversas

A estratégia do grupo era dar um ar de legalidade à viagem, como se todos tivessem pagos pelas passagens - no avião particular - e pela hospedagem. 

Nas conversas, os juÍzes falam da preocupação com o vazamento da viagem e desenvolvem estratégias com o grupo Clarin para abagar o caso no noticiário.

"Difícil explicar que todos nós fomos juntos para outro lugar sem deixar pontas soltas", escreveu Ercolini, o Moro argentino, no grupo.

Yadarola aponta o diretor da polícia aeroportuária, José Glinski, como responsável pelo vazamento de informações sobre a viagem. “Dá-me o prazer de ir procurá-lo com uma das nossas viaturas e vou fazê-lo cagar”, diz um dos diálogos publicados pelo Página 12 que, em parte, foram divulgados pela deputada Victoria Montenegro, presidenta da Comissão de Direitos Humanos na casa legislativa.

"Você viu que às vezes é difícil explicar o lawfare? Bom, nesse grupo do Telegram isso se explica. Cumplicidade judicial, política e empresarial", escreveu no Twitter.

Para o atual ministro da Justiça, Martín Soria, as conversas "constituem a radiografia precisa da podridão do lawfare na Argentina".

"A primeira reação desses juízes e camareiras foi plantar provas falsas e esconder a verdade. O juiz Ercolini incentivou seus pares a procurar notas falsas e inventar álibis que justificam o conclave secreto", afirmou Soria. "O que se observa é que é um comportamento totalmente criminoso".

Para Cristina, casos como o que ocorreu na Argentina, no Brasil e no Equador mostram que "o 'Partido Judicial' substituiu o 'Partido Militar' nos golpes na América Latina "para disciplinar os líderes políticos que defendem mudanças".

"Denunciamos que esse juiz [Ercolini] se declarou incompetente [para julgar a causa contra Cristina, há oito anos] e depois se declarou competente. Tudo cai em 'saco roto' [em saco rasgado, ou em ouvidos surdos]. Ricardo Lorenzetti, que era presidente do Tribunal [a Corte Suprema de Justiça, equivalente ao STF brasileiro], na época, tirou foto com [o ex-juiz] Sergio Moro de um lado e com Bonadio, o juiz que perseguia a mim e à minha família, do outro. Aqui o lawfare [perseguição de adversários por meios judiciais] foi enfrentado desde a cúspide do poder. Foi um fenômeno de toda a região", disse a vice-presidenta argentina à Folha.