Na segunda parte da entrevista exclusiva à Fórum (leia a primeira parte aqui), Manuel Loff, atualmente o nome mais destacado entre os historiadores de Portugal, falou sobre a visão que o restante do mundo ocidental tem do Brasil após a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Para ele, mesmo a extrema direita radical europeia, que viu com bons olhos o êxito na vitória do líder ultrarreacionário em 2018, agora deixa transparecer um mal-estar com sua figura incivilizada, sobretudo pela má condução das políticas públicas durante a pandemia, que já deixou mais de 570 mil mortos no país.
Loff falou também da destruição da democracia no Brasil, mas ressaltou que os parâmetros democráticos vêm sendo aviltados não só por aqui, mas em todo o Ocidente, de modo geral. Para ele, a destituição de Dilma Rousseff, a ida de Michel Temer para a Presidência e as sucessivas iniciativas autoritárias que desde então são aplicadas no Brasil foram o pontapé inicial que empurrou ladeira abaixo os dispositivos democráticos do Estado brasileiro. Bolsonaro apenas deu sequência e intensificou esses ataques.
Leia a segunda parte da entrevista a seguir:
Fórum – O bolsonarismo apela para o mesmo culturalismo dos movimentos radicais de extrema direita espalhados pelo mundo, justificando seu isolamento com a tal “incompatibilidade cultural”?
Manuel Loff – “Nós já sabemos, como acontece em todas as Américas e também na Europa: a diferenciação do tipo étnico, do tipo racial, tem uma dimensão óbvia de classe, e na maioria dos casos as forças conservadoras em geral, as direitas globais, do ponto de vista genérico, e em especial as direitas radicais, tendem a negar a natureza nomeadamente racista, isso desde 1945. Eles tendem a dizer que não são mais racistas biológicos e tendem a insistir, a sublinhar, isso em todo o Ocidente, a dimensão cultural do que eles entender ser uma “incompatibilidade” entre as diferentes culturas. Se analisar o discurso da extrema direita francesa, a antiga Frente Nacional Francesa, salvo o que ainda resta de um discurso antissemita, que, contudo, é mais ou menos subterrâneo hoje, ela nega ser racista. Mas ela é evidentemente islamofóbica, porque, que se faça aqui uns parênteses, a islamofobia substituiu o antissemitismo em toda a Europa, e além, nos EUA também, e em toda América do Norte, e isso se deu com o 11 de Setembro, ou talvez há uns 30 anos pelo menos. O grande pai da direita radical culturalista, que pretende não ser racista, é Samuel Huntington, com seu discurso do choque de civilizações. O papel de Huntington e dos reacionários norte-americanos, que não eram tomados como reacionários, eram tomados como grandes politólogos, grandes nomes das relações internacionais, dessa direita super conservadora dos anos 90, para o nascimento cultural das direitas radicais do século XXI, teve a mesma importância que Oswald Spengler teve no início dos anos 20, para a formação da mentalidade dos alemães e do nazismo, logo após a 1ª Guerra Mundial, com sua tese sobre a decadência do Ocidente. E é interessante que, em grande medida, os dois (Huntington e Spengler), tem um discurso absolutamente racista, impossível de se dissociar do racismo contemporâneo, e se disfarçavam, seja nos anos 90 ou em 1922, de discurso culturalista. Para esses atores, problema não está na diferenciação étnica, na diferenciação biológica, mas a incompatibilidade estaria na cultura. No caso brasileiro, assim como no caso português, como é absolutamente essencial o fato de existir racismo contra os negros, os afro-brasileiros, os afro-portugueses, o que se diz é que há uma cultura parasitária dos pobres, uma criminalização da pobreza, que se assume como um discurso do senso comum, e isso vai apontar para as minorias étnicas, que no caso do Brasil nem minoria é, até porque os afro-brasileiros são maioria por aí.”
Fórum – A extrema direita europeia segue saudando Jair Bolsonaro?
Manuel Loff – Jair Bolsonaro, como todos sabemos, foi aplaudido por toda a extrema direita europeia no momento de sua eleição, mas a administração, o governo Bolsonaro em si, ao longo de 2019, com as questões da Amazônia, e depois, em 2020, com a catástrofe que foi a gestão do governo federal brasileiro em relação ao problema da Covid, da pandemia, tem inviabilizado Bolsonaro para extrema direita europeia. Isso tem feito com que eles evitem fazer referências, ou se aproximem de Jair Bolsonaro. Eu distingo sempre o discurso por iniciativa própria de um ator político daquilo que ele diz quando perguntado por um jornalista sobre algo. Se alguém perguntar a Santiago Abascal, a Marine Le Pen, a Matteo Salvini, a Viktor Orbán, ou Andrzej Duda (presidente da Polônia) se eles querem aparecer associados a Jair Bolsonaro, é óbvio que eles dirão que não. Para a extrema direita europeia, Jair Bolsonaro se tornou uma figura incômoda. Ele é um comensal à mesa da ultradireita com quem ninguém quer conversar ou se associar. O fato de Trump ou de Bolsonaro terem se tornado figuras incômodas à extrema direita europeia, no sentido de que não pretendem se associar a eles, não significa que não se alinhem com outros do tipo. Tome como exemplo Silvio Berlusconi, uma figura que não nasce na extrema direita, mas que sempre governou com a extrema direita. Berlusconi era suficientemente estridente, patético, muito criticado, um alvo fácil na imprensa, um alvo de piadas, de chacota da imprensa e da comunidade internacional, mas isso não o impediu de ter sido o mais bem sucedido líder político italiano dos últimos 25 anos. Berlusconi ganhou 13 eleições com absoluta maioria parlamentar, coisa muito rara na vida política italiana. Berlusconi mantinha um discurso muito semelhante ao de Trump e Bolsonaro, ainda que diferente em algumas coisas, mas mantinha também esse anticomunismo, muito embora nem existisse mais partido comunista na Itália, e governando com extrema direita, com a Liga Norte, hoje chamada simplesmente de Liga, e com os pós-fascistas da Aliança Nacional.
Fórum – O anticomunismo ainda tem um forte apelo nos dias de hoje?
Manuel Loff – “O segredo da eleição de Bolsonaro, ou o fator decisivo para essa vitória, foi o radical e vivíssimo anticomunismo, sob a forma de um antipetismo, promovendo aquela ligação petismo-comunismo-Lula. Nós vimos uma reação negativa em relação a isso, muito mais do que propriamente uma reação positiva a Bolsonaro. O que é decisivo nesse processo é que, se diminuir significativamente, reduzir esse sentimento negativo muito forte anti-PT e anti-Lula, aí sim as eleições podem ter resultados negativos para Bolsonaro e as chances de isso ocorrer aumentam muito. Se essa apreciação do próprio Lula e do PT for dominante entre as classes médias, como aconteceu em favor de Bolsonaro em 2018, então será possível sim a sua derrota.”
Fórum – Qual a imagem de Bolsonaro em Portugal, entre os cidadãos “comuns”, fora dos círculos políticos?
Manuel Loff – “Há dois registros que refletem em grande medida o que acontece na sociedade brasileira. Para a maior parte da mídia tradicional portuguesa, dos jornais e das redes de televisão que são parte daquilo que designamos como centro direita, do ponto de vista econômico neoliberais, e no campo político aquilo chamado no Brasil de centrão, em geral, Jair Bolsonaro nunca teve boa imprensa em Portugal, o noticiário nunca lhe foi favorável. Agora, outra coisa é o papel que comunidade brasileira em Portugal teve reproduzindo nas redes sociais, no Facebook, no Instagram, e também em grupos de WhatsApp. No primeiro ano antes da pandemia, em 2019, ele era retratado nessas redes majoritariamente como um homem de coragem, e que vinha pôr em causa o status quo, denunciar a corrupção e etc. E evidentemente era ignorada a informação histórica de que Bolsonaro esteve mais de 20 anos no Congresso Nacional e que esteve na base de sustentação de todos os governos, inclusive dos governos do PT. Parece que esta parte tinha menos peso. E vale lembrar que por aqui também circulavam nas redes sociais aquelas conhecidas teorias da conspiração, como as teorias de que todo tipo de acusação ao clã Bolsonaro partia de falsificações, de fake news. O discurso radicalizado e polarizado da política no Brasil moldou-se, na pequena escala portuguesa, por influência dos bolsonaristas brasileiros e por aquilo que diziam os bolsonaristas em Portugal. Um dado significativamente objetivo disso é que, nas eleições presidenciais brasileiras de 2018, quer na primeira ou na segunda voltas (turnos), mais de 60% dos brasileiros registrados em Portugal votaram em Bolsonaro. Para ser preciso, na primeira volta (turno) votaram mais de 60% e na segunda volta (turno) mais de 70%. E é lógico que este é um percentual muito acima da própria média brasileira. Sou testemunha de um embate que sempre vi aqui, seja na sociedade ou nas redes sociais, entre brasileiros anti-Bolsonaro e pró-Bolsonaro, em torno de como é fácil votar em Bolsonaro, mas vir viver e usar do Estado de Bem-Estar Social, de saúde pública, enfim. Votam nele mas gozam destas coisas aqui.”
Fórum – Professor Loff, a última pergunta é: a democracia brasileira está em processo de erosão?
Manuel Loff – “Depende muito do nosso conceito de democracia. Eu acho que a democracia no Brasil está em fase de erosão, mas veja só: acho também que ela está em fase de erosão em todo o Ocidente. Vou citar um país europeu onde ela está a erodir desde 1995 sem parar, e olha que a França sempre parece um caso exemplar de democracia. O governo Macron tem substancialmente agravado essa erosão, tendo usado como pretexto o terrorismo, primeiramente, e eu diria, agora, a pretexto da pandemia (que isso não soe mal e controverso para o Brasil). Nós entramos numa fase muito clara de liberalismo autoritário, do reforço da capacidade de hipervigilância por parte do Estado e de seus instrumentos coercivos. No caso brasileiro, mais especificamente, deve-se salientar que democracia não é só votar a cada quatro anos. Cada uma das dimensões do conceito de democracia, desde o 11 de Setembro e também desde meados da década de 90, a erosão deles, vem ocorrendo, assim como a erosão das garantias aos direitos humanos. E além: a erosão dos direitos sociais, com a absurda financeirização da economia. No caso do Brasil é muito notório que o impeachment de Dilma, a ascensão de Temer ao poder, momento no qual se coloca o Rio de Janeiro sob intervenção federal por parte das Forças Armadas, com carta branca para agirem como quisessem, particularmente nas favelas, avançando em seguida para a eleição de Bolsonaro, ocorrida com a prisão de um candidato presidencial que era o favorito e era um ex-presidente da República, sem falar nessa presença maciça de militares no governo, enfim... Tudo se encaminha, confirma, que há um processo de erosão da democracia no Brasil.”