Por Ana Livia Esteves, para Sputnik
A inauguração presidencial norte-americana ocorre a cada quatro anos, no dia 20 de janeiro. Esse é o mesmo dia no qual o Irã celebra o fim da tomada da Embaixada dos EUA em Teerã.
A sincronia das datas não é mera coincidência: poucos minutos após o discurso de posse de Ronald Reagan, em 20 de janeiro de 1981, estudantes de grupo revolucionário ligado ao aiatolá Khomeini libertaram 52 reféns norte-americanos mantidos em cativeiro na Embaixada do país em Teerã por 444 dias.
A grave crise diplomática com o Irã desgastou o governo do democrata Jimmy Carter, que, considerado fraco pela opinião pública, não conseguiu se reeleger.
O que foi a crise dos reféns norte-americanos em Teerã? Como revolucionários iranianos definiram uma campanha presidencial nos EUA?
Para responder a essas perguntas e levantar muitas outras, a Sputnik Brasil conversou com o professor livre-docente de Relações Internacionais da PUC-SP, Reginaldo Nasser.
A tomada da Embaixada
Primeiro, os fatos: entre os anos de 1978 e 1979, vários grupos políticos iranianos se uniram para derrubar o regime autocrático do xá Reza Pahlevi, em evento que ficou conhecido como a Revolução Iraniana.
“Os acontecimentos no Irã em 1979 cumprem todos os requisitos de uma revolução: mobilização popular, pluralidade, mudança de elite governante”, disse Nasser à Sputnik Brasil.
Em janeiro daquele ano, o xá Pahlevi, que contava com apoio norte-americano e britânico, foi forçado a deixar o país.
Quando o então presidente dos EUA, Jimmy Carter, autorizou a entrada do xá em Nova York para tratamento médico, grupos revolucionários iranianos suspeitaram de uma conspiração para reestabelecer o poder do autocrata e frustrar a Revolução.
Indignados, no dia 4 de novembro de 1979, um grupo de estudantes invadiu a Embaixada dos EUA em Teerã, fazendo mais de 60 cidadãos norte-americanos reféns.
“Existe um antiamericanismo muito forte no Irã, que tem uma base concreta em um fato histórico: o golpe de 1953”, explicou Nasser. “Em alguns países, os acontecimentos históricos são algo muito forte que permanecem no imaginário popular”.
Em 1953, operação coordenada pela agência de inteligência dos EUA, a CIA, destituiu o primeiro-ministro iraniano Mohammed Mossadegh do poder.
Mossadegh defendia a nacionalização das reservas de petróleo e gás do Irã, política considerada inaceitável não só pelos EUA, mas também pelo seu aliado Reino Unido.
O golpe de estado instituiu o governo do xá, que imediatamente garantiu acesso de empresas norte-americanas e britânicas aos recursos naturais iranianos.
“Na época do xá, o Irã era o aliado mais próximo dos EUA no Oriente Médio, mais próximo até do que Israel”, disse Nasser. “Os EUA compreendiam que o Irã era um país grande, desenvolvido tecnicamente e com reservas de petróleo, por isso investiram nesse governo para garantir a estabilidade na região”.
Além das relações próximas com o xá, os “milhares de empresários e militares norte-americanos locados no Irã tinham uma legislação especial: se um militar dos EUA cometesse crime no Irã, ele não era julgado pela lei local [...] o que era visto com muitos maus olhos pela população”.
O regime autocrático do xá foi notório pela aplicação de medidas econômicas impopulares e pela atuação de sua brutal polícia secreta, chamada Savak.
Ao invadir a embaixada dos EUA, os estudantes acreditavam estar vingando o golpe dado contra a soberania iraniana em 1953 e enterrado a influência de Washington nos assuntos internos do país.
“Havia o peso simbólico de resgatar documentos sobre o golpe de 1953 que estariam na Embaixada dos EUA [...] afinal, foi lá que o golpe foi planejado”.
Além do valor simbólico, “a invasão da Embaixada foi um divisor de águas nas relações entre EUA e Irã”.
Luta política interna
Apesar do seu aspecto internacional, Nasser aponta que a tomada da Embaixada foi motivada sobretudo por interesses domésticos iranianos.
Após a derrocada do xá, havia “forte disputa pelo poder entre diferentes grupos políticos” no Irã: nacionalistas, liberais, islamistas - liderados pelo aitatolá Khomeini - e grupos de esquerda que lutavam entre si para liderar os rumos do país.
Um dos principais grupos na luta pela hegemonia eram os comunistas locais, influenciados pela União Soviética, que enfrentavam séria oposição dos EUA, no contexto da Guerra Fria.
“Dentro do círculo dos islâmicos já havia o debate de que era necessário sair a frente dos comunistas, uma vez que a Revolução ainda estava equilibrada e não havia grupo hegemônico”, explicou Nasser.
“Ao invadir a Embaixada, o grupo de Khomeini consolida a sua liderança no processo revolucionário iraniano”, explicou o livre-docente.
Para consolidar o seu poder, o grupo “estimulou aquilo que já existia: o antiamericanismo”:
“Cada grupo queria ser mais antiamericano do que o outro. Mas a invasão da Embaixada definitivamente subiu o tom”, explicou Nasser.
Para a surpresa dos líderes internacionais, “Khomeini expressou seu apoio à tomada da Embaixada e fez discursos inflamados tanto contra os EUA, quanto contra a URSS”.
“Khomeini dá declarações fortíssimas contra o comunismo, buscando um nicho ideológico próprio”, relatou Nasser.
“O antagonismo público internacional contra os EUA e a URSS foi determinado pela luta política interna de luta pelo poder na esteira da Revolução Iraniana”, afirmou Nasser.
Nascedouro da Guarda Revolucionária
De acordo com Nasser, a tomada da Embaixada foi fundamental para a emergência de forças paralelas de poder no Irã, como o Corpo de Guardiões da Revolução Islâmica (IRGC, na sigla em inglês).
A tomada da Embaixada marca a “ascensão da chamada Juventude Islâmica e da convicção de Khomeini de que era fundamental reforçar o poder da Guarda Revolucionária”, explica Nasser.
O Corpo de Guardiões “é uma guarda paralela, muito bem armada, uma elite política, que não faz parte do Exército [...] e fica na mão do aiatolá”, explicou Nasser.
Com apoio dessas estruturas paralelas, “o Irã passa a operar dois níveis diferentes de internacionalismo: de um lado, política externa oficial pragmática, e, de outro, uma política transnacional revolucionária, que não é conduzida pelo governo, mas conta com o seu apoio”.
Um exemplo dessa política transnacional seria o apoio iraniano ao grupo Hezbollah no Líbano.
Os EUA são frequentemente criticados por não conseguirem conter a expansão dessa política transnacional iraniana no Oriente Médio, o que por vezes gera atritos com aliados de peso, como Israel e Arábia Saudita.
Consequência para os EUA
Durante os 444 dias de manutenção dos norte-americanos em regime de cativeiro, o então presidente dos EUA, Jimmy Carter, foi duramente criticado por não conseguir libertar os reféns.
Uma operação militar de resgate chamada Garra de Águia, conduzida por forças especiais norte-americanas em abril de 1980, falhou miseravelmente, deixando oito norte-americanos mortos e enterrando o futuro político de Carter, que perdeu as eleições presidenciais daquele ano para seu rival, o republicano Ronald Reagan.
Na sua posse como presidente dos EUA hoje (20), Joe Biden deve lidar com pressões de ambos os lados do espectro político para lidar com o programa nuclear iraniano.
Passados 40 anos, Biden deve evitar que os iranianos consigam, novamente, definir o destino político de um presidente democrata.