CARACAS - O calor estridente não abala a disciplina dos 200 internos que executam a marcha sincronizada militar no pátio do presídio. A combinação de movimentos é tão precisa que poderiam ser confundidos com um batalhão do exército, não fosse o uniforme de presidiário. A Revista Fórum entrou no Complexo Penitenciário de Yare, para saber como são as instalações, já que a Venezuela é criticada pelos Estados Unidos e acusada de violação de direitos humanos.
Esse centro penitenciário é conhecido por ter sido um dos mais perigosos do país, com um histórico de motins, decapitações e constante presença de armas de fogo. Mas também porque esse foi o lugar onde ficou preso o ex-presidente Hugo Chávez, depois do fracassado levante militar de 1992, quando tentou tomar o poder pela via armada. “Esse sempre foi um cárcere de presos comuns, mandaram Chávez para esse lugar justamente por ser perigoso. Queriam que ele morresse em um motim”, diz a titular do Ministério do Poder Popular para o Serviço Penitenciário da Venezuela, Iris Varela.
A cela do célebre preso político ainda está intacta, como Chávez a deixou quando saiu em 1994 e começou a campanha que o levaria à vitória eleitoral de 1998. Os internos preservam o local como se fosse um pequeno museu, com fotos, desenhos feitos por Chávez e livros de sua época. Atualmente, ninguém fica preso nessa cela, que foi destinada à preservação da memória histórica.
O complexo está dividido em dois presídios: Yare I, com 700 internos, e Yare II, com 500. E está localizado em uma área verde do município de Yare, na região do Vale do Tuy, estado de Miranda, a uma hora da capital venezuelana.
O presídio Yare I opera com o chamado “regime penitenciário aberto” e mantém internos de baixa e média periculosidade. Diferente do regime aberto do Brasil, os internos não podem sair para trabalhar durante o dia. Mas as regras são mais flexíveis. Eles não usam uniformes, as atividades e os horários são organizados pelos próprios presos, todos podem sair de celas quando querem e permanecerem na área aberta do edifício.
[caption id="attachment_264814" align="aligncenter" width="800"]![](https://cdn.revistaforum.com.br/wp-content/uploads/2020/08/presos-do-regime-aberto-nao-podem-sair-das-intalacoes-do-presidio-mas-sao-menos-controlados.jpg)
Já no Yare II o modelo administrativo é de “regime fechado”, com regras estritas e horários determinados. Acordam todos os dias às 5h e têm o dia cheio de atividades como cursos, cultivos de alimentos, fabricação de roupa, artesanato, carpintaria, atividade física, oficinas de instrumento musical e formação política, entre outras. Além disso, o uso de uniformes é obrigatório: amarelo, para os internos condenados, e azul, para aqueles que ainda não foram julgados.
As celas são simples, mas todos têm camas individuais, estilo beliche duplo, de cimento e com um padrão de oito camas por cela. Dentro de cada pavilhão as mais de 10 celas ficam abertas, mas a grade de cada pavilhão se mantém fechada. No total o edifício de Yare II comporta mais de 10 pavilhões, mas apenas seis são compostos por celas. Os demais abrigam a área de visita, quadra coberta para esporte, enfermaria, cozinha e banheiros. A equipe de equipe de reportagem pode entrar em todos os pavilhões e visitar várias celas enquanto os detentos estavam do lado de fora, na área recreativa. Além disso, as entrevistas com os presos não tiveram supervisão de funcionários do presídio, nem restrição de tema. O único pedido foi para não mencionar os crimes cometidos pelos presos entrevistados, pois a restauração da imagem pública faz parte do processo de recuperação.
José Gabriel Naterra, de 27 anos, está há 9 anos preso e diz que os últimos quatro meses de pandemia foram os mais difíceis, pois as visitas de familiares foram proibidas para evitar o contágio. Para fazer o tempo passar mais rápido tenta se dedicar o máximo que pode às atividades produtivas. “Estar preso nunca é bom, mas aqui pelo menos a gente tem muitas atividades, aprendi a fazer artesanato, coisas de marcenaria e a plantar.”
Mas nesse dia Naterra recebeu liberdade condicional e disse que não via a hora de encontrar sua família. “Tenho dois filhos pequenos, a primeira coisa que quero fazer é abraçar meus meninos e pedir desculpas pelos erros que cometi. Pedir desculpas pelos aniversários que não estive presente, que não pude dar os parabéns, nem ver como eles cresciam”, diz o interno de Yare I.
[caption id="attachment_264816" align="aligncenter" width="696"] No regime aberto internos não precisam usar uniformes e as regras internas são flexíveis (Foto: Fania Rodrigues)[/caption]
No conjunto Yare II o acesso da reportagem às instalações foi mais limitado, já o que o controle de segurança interno é menos rigoroso, pois os presos ficam literalmente soltos dentro das quatro paredes (muros).
Um grupo de cinco internos que aceitou falar com a reportagem, mas sem mencionar seus nomes. Sobre a diferença entre os dois modelos do regime penitenciário disseram que estar no aberto é considerado um privilégio. “Aqui podemos vestir nossas próprias roupas, comer coisas que nossas famílias trazem de fora, ter nossos horários menos controlados”, relatou um deles. Coisas simples que fazem a diferença depois de anos de reclusão.
Os crimes mais frequentes entre os presos são roubos e assassinatos. “Aqui os crimes relacionados às drogas não sãos comuns. O mais praticado é realmente roubo de rua”, explica a ministra Iris Varela. Diferente do Brasil que é porte e tráfico de drogas.
Condições internas
Os presídios da Venezuela estão longe de ser uma maravilha, possuem problemas como falta de melhores estruturas e de uma alimentação mais diversificada. No entanto, apesar da simplicidade das instalações a maioria dos presídios está melhor agora que nos anos que antecederam a Revolução Boliviana. Ademais, a Venezuela é o único país da América Latina que cumpriu com as metas do milênio da Organização das Nações Unidas (ONU), ao incluir no orçamento do Estado os recursos para ampliar e melhorar as estruturas do sistema penitenciário.
O país possui 76 centros de reclusão para adultos e 32 casas de recuperação para menores. A população carcerária é de 37 mil internos, segundo dados oficiais. Sendo a Venezuela um país de 30 milhões de habitantes.
Se comparada aos países latinos, a Venezuela apresenta melhores condições que a maioria de seus vizinhos, com uma população carcerária menor e com mais vagas disponíveis.
O Peru, por exemplo, um país com 31 milhões de habitantes tem 96 mil presos e 68 centros de reclusão, de acordo com o Instituto Nacional Penitenciário (Inpe). Mais que o dobro de presos da Venezuela, mas com um número de habitantes parecido ao venezuelano.
Já a Colômbia tem 49 milhões de habitantes e uma população carcerária de 121 mil pessoas presas em 138 penitenciárias. A população colombiana é 39% maior que a venezuelana, mas a população carcerária é cinco vezes maior.
Entre 2011 e 2016 a Venezuela mudou completamente seu sistema penitenciário. Passou do regime aberto, onde os presos estavam fechados entre quatro paredes, mas o Estado não tinha o controle interno já que na prática eram dominados pelo crime organizado, para o atual modelo, chamado de regime fechado, onde o Estado controla absolutamente tudo e tem horário para tudo.
Dos 76 presídios venezuelanos 71 são administrados sob o regime fechado e cinco ainda estão no antigo regime aberto, segundo a ministra Iris Varela. Além disso, os 32 centros de recuperação de menores estão também no regime fechado.
Entre os cinco presídios de regime aberto, pelo menos dois enfrentam graves problemas de violência, pois esse modelo delega a organização interna da penitenciária aos próprios presos, o que leva ao controle de máfias e do crime organizado. Esse é o caso do Centro Penitenciário do estado Aragua, o Tocorón, e o Centro Penitenciário da Região Centro Oriental El Dorado.
[caption id="attachment_264818" align="aligncenter" width="696"] Plantar alimentos para o consumo dos presos é uma das atividades produtivas (Fania Rodrigues)[/caption]
Iris: a mulher que controlou as prisões
Considerada a “mulher de ferro” das cadeias venezuelanas, Iris Varela é ministra há nove anos e foi a única a conseguir controlar alguns dos presídios mais violentos da América Latina. Varela conta qual foi o cenário que encontrou quando assumiu o ministério.
“Os privados de liberdade controlavam todos os espaços internos. As autoridades não podiam entrar nas celas, porque não deixavam. Quando começamos a percorrer os presídios em 2011 a coisa era tão grave que tinha preso vivendo até na sala do diretor do presídio, mas também na cozinha, nos corredores, nos banheiros e até construíam pequenos barracos nas áreas externas, dentro do perímetro do centro penitenciário.”
Ao longo desses nove anos o poder do crime organizado dentro dos presídios diminuiu bastante e a ministra admite que para isso teve que negociar e relata uma reunião onde estavam presentes os chefes das maiores organizações criminosas do país.
“Eu reuni todos os PRANs (sigla usada para “preso, réu, assassino, nato”, como são conhecidos os chefes do crime na Venezuela), na cidade Maracaíbo. Era a primeira vez que uma autoridade se encontrava cara a cara com eles. Nesse momento eram 37 presídios, então levei para Maracaíbo os líderes de cada uma deles”, conta a ministra.
[caption id="attachment_264821" align="aligncenter" width="696"] Entre os animais criados no complexo penitenciário estão leitões, galinhas e patos (Foto: Fania Rodrigues)[/caption]
A principal reivindicação dos PRANs era a realização de competições esportivas entre os centros penitenciários, como uma forma de encontrar com outros internos. “Então disse: vocês querem os jogos e eu quero o controle de todos os presídios, então vamos conversar. Fizemos um acordo de paz. Disse que iria fazer os jogos esportivos, mas que não queria ver mais nenhum motim. Eles me deram sua palavra. E essa foi a verdadeira razão pela qual eu controlei os presídios.”
Mas não foi tão simples assim. Esses chefes do crime foram vistos por seus comparsas como traidores, por negociarem com autoridades. A maioria foi morta, dentro dos presídios, pelos próprios companheiros nas semanas que seguiram. Três anos depois todos estavam mortos. “A um deles meteram uma bala na cabeça e me mandaram a foto. Depois disso fui tomando os presídios violentos, um por um, usando a força militar para controlar e desalojar”, conta Varela.
Em nove anos, a ministra mudou o sistema penitenciário venezuelano: desativou alguns presídios e construiu outros, com estrutura e engenharia mais adequadas para garantir a segurança e o controle do Estado. Como todos operavam com o regime aberto não tinham celas individuais, nem grades, áreas de recreação e espaços para produzir, como hoje é possível ver na maioria dos presídios venezuelanos.
Batalhão de presos no front da guerra
A população carcerária não está alheia aos acontecimentos do país. Recebem palestras e informes sobre a atualidade. Por isso também se preparam para um possível cenário de invasão militar de forças estrangeiras em território venezuelano, como já ameaçou algumas vezes os Estados Unidos.
O próprio ex-assessor de segurança do governo dos EUA, John Bolton, afirmou em seu livro que “Trump insistiu que queria opções militares para a Venezuela”. Assim como o líder opositor venezuelano, Juan Guaidó, que disse em repetidas ocasiões que “todas as opções estão sobre a mesa” para derrubar o governo Maduro.
A ministra do Serviço Penitenciário da Venezuela diz que está pronta para ir ao combate no front da guerra, caso isso um dia venha acontecer. Afirma ainda que estará acompanhada de robusto batalhão. “A defesa do país é uma responsabilidade compartilhada entre cidadãos e a Força Armada. No mínimo uns 40 mil privados de liberdade estariam dispostos a alistarem-se para uma batalha desse porte.”
Nesse caso, a decisão é do preso. “Claro que todos têm o direito de escolher se querem ou não colocar-se a serviço do país. Isso é algo optativo. Mas o que é preciso deixar claro que estar privado de liberdade não é estar privado dos direitos inalienáveis”, defende Varela.
Entre os presos de Yare o sentimento é similar. Rarrison Ortega, de 29 anos, está preso há um ano e diz que seria o primeiro a alistar-se numa batalha assim. “Estamos dispostos a dar a vida pela nossa pátria. Não importa se estamos presos, o país está acima de tudo. Isso é algo que falamos muito entre nós aqui. Estamos prontos para quando nos chamarem, frente a qualquer situação, inclusive em uma guerra”, diz o jovem.
Com a boa receptividade dos internos, Varela decidiu lançar um movimento político que abarca os ex-presidiários cujas penas eram leves e moderadas e que durante o período de reclusão tiveram bom comportamento. A iniciativa foi batizada de Movimento 28 de Julho, em homenagem ao ex-presidente Hugo Chávez, que nasceu nesse dia.
Funcionará assim: depois de cumprir toda a sentença, os ex-detentos poderão pedir para ingressar no movimento. Por meio dessa organização poderão alistar-se na Milícia Nacional Bolivariana, composta por cidadãos comuns com treinamento militar. Essa é uma das cinco forças militares oficiais que compõem a Força Armada Nacional Bolivariana.
Se o ex-detento tiver mais de 10 anos como brigadista da Milícia Bolivariana e a depender de uma série de requisitos, como comportamento exemplar, poderá ter seus antecedentes penais eliminados pela Justiça.
Willian Ramon Soares, de 45 anos, acaba de sair da prisão e comemorou a iniciativa. Ele esteve cinco anos preso e considera que o crime que cometeu foi um erro em sua vida e quer repará-lo. Afirma querer ingressar nesse movimento para provar à família que se tornou uma pessoa diferente.
“Isso é algo extraordinário porque teremos uma nova oportunidade. Independentemente do erro que cometemos na rua, somos seres humanos e temos o direito de reparar nosso erro. Essa é uma mostra de amor e solidariedade. Por isso estou pronto para o que a Revolução Bolivariana me necessite”, ressalta.
A iniciativa é polêmica e já gera crítica entre a oposição ao governo. Sobretudo porque os presos também recebem formação política, chamada pelos opositores de “doutrinamento”. O fato é que a oportunidade de poder defender a nação e ter seus “pecados perdoados” pelo Estado agrada boa parte da população carcerária, que nesse caso é quem tem a palavra final.
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