Biden terá que governar para o cidadão médio, com trumpismo vivo e à espreita, por Heloisa Villela

A festa que levou milhares de norte-americanos às ruas, celebrando a derrota de Trump, foi bonita, mas os desafios de Biden começam já, antes mesmo de assumir. Será preciso convergir com setores mais progressistas, fundamentais em sua vitória, e monitorar de perto as ações do trumpismo, que não morreu.

Foto: Newsweek (Reprodução).
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Demorou, mas o resultado saiu. E o povo foi às ruas para comemorar. Donald Trump não deve ter gostado do que viu. Na porta de sua casa (que ele só vai ocupar por pouco mais de 70 dias), as ruas estavam lotadas. Havia mais gente comemorando a derrota do presidente do que houve ali nos protestos pela morte de George Floyd. Trump é isso. Amor e ódio. Sim, não se pode esquecer o amor dos mais de 70 milhões de eleitores que foram às urnas dizer que queriam outros quatro anos dessa administração. E Joe Biden? Levou pouco mais de 75 milhões de votos. Ou seja, perto demais para se sentir à vontade. O que se viu no resultado não foi a derrota do trumpismo, como muitos esperavam. Foi apenas um afastamento, por enquanto.

A tarefa de Joe Biden e Kamala Harris, agora, é fazer mudanças concretas, daquelas que o americano médio sinta no bolso, o quanto antes. Se não for assim, em quatro anos volta o candidato que Trump escolher. Isso mesmo. Não será o Partido Republicano a escolher, será o próprio Trump. Ele é a maior força e o maior risco dos conservadores. Pode levá-los de volta ao poder em quatro anos, mas também pode, com seu jeitinho delicado de elefante em loja de cristais, provocar um racha inconciliável no partido.

Do lado democrata, os discursos de vitória deixaram claro o caminho para o futuro. “As mulheres negras são a espinha dorsal do partido democrata”, disse Kamala Harris, mulher negra e filha de imigrantes que o partido escolheu para o cargo de vice, já pensando nas próximas décadas. Com o deslocamento cada vez maior do centro para a direita, os democratas vêm perdendo apoio da coalizão tradicional que sempre foi a base do partido. Agora, vão correr atrás do prejuízo. Biden esbanjou energia no discurso da vitória. Uma força e uma disposição que pouco se viu durante a campanha. Chegou a socar o púlpito à sua frente, em meio ao discurso, enquanto falava do apoio que recebeu dos negros: “quando essa campanha estava por baixo, a comunidade afro-americana se levantou novamente por mim. Eles sempre me apoiaram e eu sempre os apoiarei”.

Isso foi nas primárias. Quando Biden ficou ameaçado de perder a corrida para Bernie Sanders, os negros da Carolina do Norte votaram em peso e deram vitória a ele, enterrando as chances do progressista de Vermont. Só que no quadro nacional a história é um pouco diferente. Deu muito trabalho conquistar de volta os votos negros que debandaram para o lado de Donald Trump na última eleição e que ficaram com ele durante os três primeiros anos de mandato, com a queda no índice de desemprego. Trump surfou as consequências do governo Obama, que fez a virada da crise de 2008/2009 para a lenta recuperação que se seguiu. O eleitor não pensa em nada disso. Só no aqui e agora. Por isso, Biden e Kamala terão que arrancar à força do Senado um pacote de ajuda emergencial aos milhares de desempregados e ameaçados de despejo.

É importante destacar o espaço que Biden já abriu para Kamala na noite do discurso da vitória. Não é comum o vice discursar. Mas ele deu a ela todos os holofotes antes de entrar em cena. Ela representa o futuro possível do partido democrata. Uma negra e asiática (mãe da Índia e pai da Jamaica), milionária, com currículo impecável. Defende as mulheres, o direito ao aborto, a descriminalização da maconha, ainda que, quando no poder como procuradora-geral na Califórnia, tenha sido durona. Botou muita gente na cadeia. Até pais cujos filhos tinham uma média alta de faltas na escola. Kamala retrocedeu, não falou muito desse passado sombrio durante a campanha, e adotou um discurso mais liberal.

Nesta segunda-feira, ela e Biden já se reúnem com cientistas e infectologistas para traçar um plano de contenção da pandemia. Pelo que sempre diz o maior especialista do país, Anthony Fauci, parece que conter a pandemia não é mais uma possibilidade. O país caminha a passos largos para ter dois mil novos casos diarimente. Já bateu a marca dos mil e segue firme adiante. Não serão quatro anos fáceis. Há muito trabalho pela frente e Biden poderá delegar uma fatia robusta da agenda à sua vice. Ela tem competência e vontade de mostrar serviço para garantir a permanência do partido na Casa Branca em 2024. E talvez assuma outra tarefa, um bocado espinhosa: manter dentro da organização a turma progressista liderada por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio Cortez.

A deputada de Nova York, reeleita com facilidade, mandou todos os recados pelas mídias sociais. Lembrou que a colega do esquadrão democrata, Ilham Omar, garantiu a vitória de Biden no estado que representa, enquanto John Kasich, ex-governador republicano, que fez campanha para Biden, não foi capaz de entregar Ohio para os democratas. Ainda assim, ele já é cotadíssimo para fazer parte da administração Biden. Alexandria foi mais longe e alfinetou. Disse que nos últimos dois anos os democratas progressistas derrotaram vários representantes da velha guarda do partido e se elegeram deputados, mas até agora “ninguém veio me perguntar qual é a fraqueza deles que permitiu essas vitórias. Se vierem falar comigo eu explico”.

Assim que a vitória de Biden foi anunciada, Bernie Sanders também foi às mídias sociais. Não deu os parabéns a Biden, mas sim aos milhares de voluntários que se organizaram para derrotar Trump. O recado do pelotão progressista é claro: não se atrevam agora a abandonar quem trabalhou e garantiu essa vitória. Esta será uma das grandes batalhas políticas dos quatro anos que começam. E pode definir um novo perfil do Partido Democrata nas próximas décadas. Ou fortalecer a terceira via.