Nicarágua: A sombra de um novo golpe

A Nicarágua talvez esteja vivendo a “tempestade perfeita” para uma crise cujo final se assemelha com episódios recentes na América Latina

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Por Marco Piva* O número 19 parece marcar a história da Nicarágua, no passado e no presente. Desde 19 de abril, o país vive uma crise política que não deixa de lembrar a queda do ditador Anastácio Somoza, em 19 de julho de 1979. As manifestações diárias contra o governo sandinista já custaram a vida de 56 pessoas e prejuízos na ordem de US$ 233 milhões, segundo entidades empresariais. A agência de avaliação de riscos Fitch prevê um desaquecimento econômico em função da crise, embora a Nicarágua esteja com liquidez suficiente, inflação em níveis aceitáveis e uma previsão semelhante de crescimento para este ano de 5%, quase a mesma taxa do ano passado, que foi de 4,9%. O PIB em 2017 alcançou US$ 13,8 bilhões, o que no contexto centro-americano é razoável em comparação a uma população de 6,2 milhões de pessoas. Então, qual é o problema? Algumas perguntas são necessárias para entender o que está acontecendo atualmente na Nicarágua. A primeira delas é buscar identificar o que deu início a essa crise, ou seja, qual foi o contexto? A segunda: quem são seus protagonistas? E a terceira, inevitável: existem apoios externos? Não resta dúvida que qualquer governo de longa permanência sofre desgastes com o tempo e a Nicarágua talvez esteja vivendo a “tempestade perfeita” para uma crise cujo final se assemelha com episódios recentes na América Latina. Eleito pela terceira vez seguida em 2016, depois de uma manobra constitucional que lhe garantiu esse direito, o presidente Daniel Ortega vive o desafio de ter ficado quase isolado num continente que teve na primeira década do século XXI vários governos progressistas e de quem podia esperar apoio, o Brasil entre eles. A Venezuela era o principal deles, especialmente para garantir o suprimento de petróleo. Esse abastecimento está comprometido, o que tem causado aumento no preço dos combustíveis. A forma como Daniel Ortega governa já provocou no passado um racha na própria Frente Sandinista de Libertação Nacional. O partido tem um histórico de três correntes internas que viveram em relativa calma depois da vitória armada contra Somoza e isso seguiu até 1990, quando Ortega foi derrotado nas urnas por Violeta Chamorro. A partir disso, o clima foi ficando tenso no sandinismo porque alguns achavam um absurdo ter havido um obituário de 50 mil mortos na guerra civil para depois se entregar o poder a um governo claramente favorável aos Estados Unidos. Outros achavam que a derrota estava na forma centralizada de Ortega conduzir o país e o partido. Por fim, prevaleceu a posição orteguista que validou o processo eleitoral proposto pela própria FSLN e, assim, passou o bastão para a oposição. Em 1996, teve início a cisão com a criação do Movimento Revolucionário Sandinista, que reivindicava maior participação da base e decisões colegiadas. Reunia comandantes da revolução e personalidades importantes como o escritor Sergio Ramirez Mercado, que atuara como vice-presidente de Ortega. Com o tempo, outros comandantes foram se afastando de Ortega e até mesmo da política, carregando uma certa frustração pelos rumos do país. Nesse quadro de divisão, a direita conquistou sucessivos governos até 2006, quando a Frente Sandinista, aproveitando a onda vermelha no continente latino-americano, voltou ao poder, onde está desde então. Acusado de centralização excessiva, Ortega em sua última vitória eleitoral colocou no cargo de vice-presidenta a sua esposa, a poetisa Rosário Murillo, uma mulher de personalidade forte que exibe um misticismo que trafega entre o catolicismo tradicional e as práticas indígenas. É forte a sensação no país de que Ortega vocaliza o que diz Rosário. Então, temos uma primeira aproximação do contexto: há um desgaste de liderança e a FSLN já não é um partido que conta com o apoio de massas que teve no passado. Mais ainda, seus quadros estão envolvidos, em sua grande maioria, em tarefas de governo, nas estruturas do Estado, o que significa, na prática, uma burocratização política. Por outro lado, a insatisfação foi alcançando setores que antes mostravam um certo conformismo com a liderança sandinista. É o caso do setor privado, que nada tem a reclamar em relação aos resultados econômicos do país, mas que agora está sendo um dos protagonistas da crise e, ao mesmo tempo, um dos que estão perdendo com ela. Em qual país do mundo a classe empresarial é contra a reforma da previdência? Na Nicarágua isso está sendo possível. Talvez menos por quê a classe empresarial defenda os trabalhadores e mais por quê já flerta com a possibilidade de derrubar o presidente Daniel Ortega, cujo governo, de orientação esquerdista, propôs a reforma que, supostamente, foi o estopim da crise. A tradicionalíssima Igreja Católica mantinha uma interlocução com o casal Ortega através do arcebispo aposentado Miguel Obando y Bravo, que foi um dos críticos mais ferozes do sandinismo no passado, mas que nos últimos tempos se mostrava bem aberto depois da conversão católica que obteve do presidente e sua esposa. A imprensa nunca deu folga ao governo sandinista que, por sua vez, também nunca conseguiu estabelecer uma política clara para os meios de comunicação, alternando momentos de censura com uso abusivo dos veículos estatais e, ao mesmo tempo, garantindo total liberdade de expressão. Os canais de televisão privados transmitem ao vivo as manifestações de rua e convocam a população a participar delas. [caption id="attachment_133639" align="alignnone" width="640"] Os conflitos na Nicarágua envolvem os partidários de Daniel Ortega e os oposicionistas, que querem a saída do presidente, com mandato até 2021 – Foto: Reprodução[/caption] A juventude ganha um capítulo especial na atual crise porque foi na Universidade Politécnica, que é particular, onde tudo começou. Agora, jovens encapuçados carregam a bandeira da Nicarágua na linha de frente das manifestações gritando palavras de ordem bem conhecidas: “Nossa bandeira não é vermelha”, “Nicarágua é nossa”, “Fora Ortega” e por aí vai. A classe média, que não é tão numerosa no país, embarcou na onda anti-sandinista e está ativa nas ruas. As estradas sofrem “tranques” (bloqueios) diários e o transporte de carga e alimentos começa a entrar em colapso, causando desabastecimento. A Polícia e o Exército são peças fundamentais na história recente do país porque foram formadas sob uma nova concepção de Estado e democracia a partir da Revolução Sandinista. São acusados de praticar a violência contra os manifestantes. As manchetes dos dois únicos jornais diários falam da ação de grupos paramilitares sandinistas que atacam as manifestações e atiram contra prédios ocupados pelos manifestantes e até mesmo contra igrejas. Não é difícil prever que a “tempestade perfeita” está se formando na Nicarágua e apesar da lealdade explícita das forças militares, Ortega e Murillo vão ter que se esforçar bastante para retomar o controle político do país. O Diálogo Nacional proposto por Ortega vai nesta direção. Tem a participação de todas as forças sociais e políticas que a ele se opõem, sob supervisão da Conferência Episcopal. As expectativas não são promissoras, a julgar pela posição de quem está sentado à mesa. Na primeira reunião, em 18 de maio, o principal líder estudantil exigiu aos gritos a renúncia de Daniel Ortega, acusando-o de “assassino”. Já Maurício Herdocia, assessor dos bispos católicos, mediadores do encontro, foi explícito: “O diálogo deve ser um instrumento que permita ao povo da Nicarágua encontrar um modelo democrático com eleições livres”. Detalhe: Ortega foi eleito com 70% dos votos e seu mandato vai até 2021. Por outro lado, a palavra da agência Fitch mostra um outro lado da moeda ainda não muito comentado: “Apesar da queda de confiança na administração, o que limita sua capacidade de implementar reformas, a débil organização e financiamento dos partidos de oposição criam incertezas para a continuidade de políticas de um eventual novo governo”. Ou seja, a oposição tampouco merece, nesse momento, o crédito do mercado. A preocupação é que o Congresso dos Estados Unidos ative a Nica Act, que é uma lei aprovada em 2017 e promove o embargo da concessão de novos empréstimos e financiamentos à Nicarágua enquanto Ortega estiver no governo. A tendência de crescer a pressão internacional contra os sandinistas é grande, com a possibilidade de uma “venezuelização” da Nicarágua. A visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujo secretário-executivo é o brasileiro Paulo Abrão, deverá revelar um pouco mais a verdadeira autoria da atual onda de violência. Armas foram encontradas entre os estudantes entrincheirados nas universidades e vários incêndios foram provocados em prédios estatais. De onde vieram essas armas? Quem está provocando esses ataques que semeiam ainda mais o caos e jogam suspeitas sobre grupos paramilitares sandinistas? Quem está atirando contra as pessoas, já que Ortega ordenou que a Polícia não o faça? São perguntas que vão ficando pelo caminho enquanto a Nicarágua vive a sombra de um novo golpe na América Latina. *Marco Piva é jornalista e autor de “Nicarágua: um povo e sua história” (Edições Paulinas) e “Fazendo amor na Nicarágua” (Editora Vozes). É mestre em Política de Integração na América Latina pela USP