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Por Leonardo Aragão
Todos aqueles que em algum momento da vida participaram da organização de um agrupamento político já se depararam com uma situação em que pensaram muitas vezes antes de anunciar uma decisão que poderia causar alvoroço negativo na opinião pública. Recentemente, a bancada do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados sentiu na pele a reação acalorada da militância quando sinalizou apoio à candidatura de Rodrigo Maia à presidência da Câmara, o mesmo que apoiou o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Seja por vergonha ou por uma leitura mais acurada da conjuntura, os parlamentares petistas recuaram da decisão.
No entanto, episódios recentes mostram que a direita que ascende ao poder hoje não tem o menor pudor em se apropriar do Estado para atendimento de interesses particulares, ou apostar em histórias mentirosas e enganar a população, sem temor algum de tornar públicas as suas práticas.
Na semana passada, o presidente da Argentina, Mauricio Macri, assinou o perdão de uma dívida de 70 bilhões de pesos, o equivalente a 14 bilhões de reais, que a empresa Correo Argentino tinha com o próprio Estado. A empresa, adquirida pelo Grupo Socma no período de privatizações do governo Carlos Menem, tem como acionistas o pai do atual presidente, seus dois irmãos e o próprio Mauricio Macri.
A desfaçatez da medida é tamanha que o governo aponta a presidenta anterior, Cristina Kirchner, como culpada pelo acordo. Um porta-voz do governo argentino insinuou que “é importante investigar por que não se fez um acordo durante o kirchnerismo”. Ou seja, além de perdoar as dívidas da família do presidente, o governo ousou criticar sua antecessora por não aceitar abrir mão de recursos devidos ao erário público para beneficiar um conglomerado privado.
Quando a cúpula de Macri ataca Cristina desviando o foco do perdão das dívidas da família do presidente, sabe que a rede de apoiadores que atacam a ex-presidenta criará argumentos falaciosos que levantarão outros problemas relacionados aos Kirchner que nada têm a ver com a corrupção escancarada de Macri, sempre com os préstimos da grande imprensa argentina, que está tentando abafar o caso. A propósito, qualquer semelhança ao que ocorre no Brasil em relação a isso não é mera coincidência. A cara-de-pau aliada à mentira oportunista e à hipocrisia vem contribuindo para refrear a irrupção das ruas contra os governos brasileiro e argentino.
[caption id="attachment_98273" align="alignleft" width="418"] Manifestação em Nova Iorque anti-Trump nesta segunda-feira (20), feriado do Dia dos Presidentes (Foto: Nei Valente/Mídia NINJA)[/caption]
Quem segue a mesma cartilha, talvez até com maior avidez, é o novo presidente dos EUA, Donald Trump. Um mês após sua posse, o arsenal de mentiras disseminado por Trump e seus assessores tem causado revolta internacional, como no último sábado, quando o presidente-empresário inventou um incidente de segurança na Suécia para justificar o veto imposto a imigrantes de sete países muçulmanos de entrar nos Estados Unidos. A embaixada sueca em Washington solicitou esclarecimentos à Secretaria de Estado a respeito das declarações, uma semana depois de uma das principais assessoras de Trump, Kellyanne Conway, ter inventado outra mentira, um massacre em território estadunidense que nunca existiu. A prática tornou-se tão generalizada que ganhou uma alcunha, “pós-verdade”, eleita a palavra do ano pela Universidade de Oxford.
Não é novidade a criação de redes de disseminação de boatos em larga escala durante eleições e processos políticos importantes. Hannah Arendt, em sua obra “Entre o Passado e o Futuro”, de 1961, afirma que “sempre se consideram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político como do demagogo”.
O fato surpreendente e que deve ser alvo de reflexão é a coordenação de esforços por parte das estruturas oficiais governamentais de utilizar recursos e meios públicos para espalhar mentiras, inventar histórias e promover discursos de validação de teses que beneficiam apenas aos detentores do poder político e sua entourage, aproveitando a conjuntura mundialmente radicalizada e com sentido de inflexão à direita. Uma política de Estado que visa confundir a opinião pública, e que no caso dos EUA já mostrou o quanto pode ser nefasta, levando o país à guerra no Iraque.
Em longo prazo, esta teia de mentiras e oportunismo será catastrófica para a política mundial. Nesta competição de redes de desinformação, as condições mínimas de transparência, confiança e senso da realidade comum que devem reger as relações globais estarão prejudicadas, afinal de contas, quem confiará plenamente em acordos baseados em dados econômicos de um governo que não faz questão de esconder que mente?
A descrença das massas na política, expressa nos resultados eleitorais em vários cantos do globo, elegendo figuras que vivem da política, mas que a negam (a mentira fundamental que trouxe a vitória para Trump e o atual prefeito de São Paulo, por exemplo), somada à desfaçatez e a ficção como cerne da informação oficial, tem tudo para nos jogar no colo de soluções cada vez mais extremadas, capitaneadas por discursos como o de Marine Le Pen, na França, e Jair Bolsonaro, no Brasil.