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Para além dos acertos, dos erros e das limitações que os governos tido como progressistas da América Latina têm ou tiveram nestes últimos anos, têm sido claros os sinais do esforço de reorganização da direita, dentro e fora destes países, com o objetivo de restaurar suas posições de poder em cada uma destas sociedades. A restauração neoliberal em curso talvez se apresente mais dura do que em sua primeira versão, vinte ou trinta anos atrás. A resistência a ela, provavelmente também
Por Wagner Iglecias*
A eventual confirmação pelo Senado brasileiro, até o final deste mês, do impeachment de Dilma Rousseff, deverá simbolizar um novo período na política latino-americana e nas relações da América Latina com o mundo. A onda que levou variadas forças de esquerda ao poder a partir da virada do século parece por enquanto estancada. Para além dos acertos, dos erros e das limitações que os governos de Argentina, Bolívia, Brasil, El Salvador, Equador, Nicarágua, Uruguai e Venezuela têm ou tiveram nestes últimos anos, têm sido claros os sinais do esforço de reorganização da direita, dentro e fora destes países, com o objetivo de restaurar suas posições de poder em cada uma destas sociedades e reposicionar o continente em direção aos interesses de Washington. Some-se a isso o longo predomínio de setores conservadores no comando de nações como Colômbia, Peru e México, as dificuldades do governo moderadamente progressista do Chile em fazer avançar uma pauta progressista e a reaproximação (subordinada?) de Cuba com os EUA e calcule-se o rearranjo da correlação de forças que está ocorrendo no continente, configurando um cenário bastante diferente daquele de uma década atrás no qual as esquerdas avançavam a passos largos.
Os dados, no entanto, seguem sendo jogados, e por mais bem articulada que esteja a contra-ofensiva conservadora na região, diversos obstáculos complexos precisarão ser transpostos para se inundar novamente a América Latina inteira nas práticas neoliberais tal como ocorreu nas décadas de 1980 e 1990. O primeiro deles é político: vários governos progressistas, em graus variados, contribuíram no exercício do poder para a maior organização dos movimentos populares, ainda que em meio a processos plenos de contradições. Muitas vezes foram eles próprios, os governos progressistas, a serem questionados por esses movimentos – e se com mandatários de esquerda as relações foram muitas vezes controversas, não há porque acreditar que com eventuais governos de direita o cenário seria mais harmônico. A eventual implantação de uma agenda que signifique retirada de direitos e imposição de perdas econômicas aos setores populares deverá encontrar resistências como há décadas não se vê na região (ainda que deva-se levar em conta o grau de organização e capacidade de resistência das esquerdas em cada cenário nacional).
O segundo obstáculo é econômico: ainda que continue muito restrita a seu histórico perfil de produtor e exportador de bens primários, a América Latina diversificou nos últimos anos suas parcerias comerciais, investiu na integração regional, apostou nas relações Sul-Sul e, principalmente, aprofundou sua dependência em relação à China, responsável pelo aumento dos fluxos de comércio da região, bem como por importantes investimentos em infra-estrutura e pela concessão de empréstimos a vários dos nossos países. Desmontar essa arquitetura financeiro-comercial para em seu lugar trazer de volta a velha condição latino-americana de periferia dos EUA e das potências europeias não será tarefa simples. Não é possível pensar a América Latina na atualidade sem levar em conta que ela hoje se situa numa esquina geopolítica na qual em algum momento irão se encontrar os interesses de um Império ainda extremamente poderoso e de uma nação em franca ascensão que poderá vir a ocupar o seu lugar no século XXII.
O terceiro obstáculo para a contra-ofensiva conservadora é social: apesar de todo o avanço em termos de políticas de combate à pobreza e à desigualdade ocorrido na última década e meia, principalmente nos países governados pelas esquerdas (mas também em algumas nações comandadas pela direita), a América Latina segue como a região mais desigual do mundo e ainda amarga uma enorme dívida social para com centenas de milhões de indivíduos pobres. Se políticas públicas bem desenhadas e bem implementadas alcançaram resultados importantes mas ainda assim estiveram longe de resolver o problema, o que se poderá dizer de concepções que advogam o minimalismo estatal e a focalização, quando muito, de investimentos apenas na pobreza extrema? Com o recente acúmulo de problemas econômicos observado em vários países da região a tendência é que as tensões sociais venham a se agravar nos próximos anos, e a descontinuidade de políticas públicas voltadas a mitigar a pobreza só irá piorar o cenário, conduzindo eventualmente nossas sociedades a conjunturas explosivas.
O quarto obstáculo, finalmente, é cultural: apesar da vitória ideológica do neoliberalismo, com a prevalência em toda a região da cultura do consumo e do descarte, do individualismo e da privatização da vida e da natureza, há importantes focos de resistência em várias das nossas sociedades, como nos casos dos movimentos de Buen Vivir na região andina ou das manifestações culturais existentes entre a juventude pobre e periférica das metrópoles latino-americanas. Some-se a isso o advento dos meios informacionais e sua contraposição permanente aos oligopólios midiáticos privados e imagine-se que é bem mais difícil hoje construir o discurso hegemônico do que foi durante a onda neoliberal que atingiu o continente nos anos 1980 e 1990. As novas gerações latino-americanas, ainda que muitas vezes imersas numa luta política caleidoscópica marcada pelas mais variadas demandas e interesses, poderão saber construir uma resistência comum à contra-ofensiva conservadora que se insinua no horizonte em países como a Argentina e o Brasil.
Se todas essas premissas estiverem corretas, ou ao menos parcialmente corretas, pode-se imaginar que nuvens se avolumam nos céus da América Latina para os próximos tempos. O eventual impeachment de Dilma, simbolizando o encerramento de um dos ciclos da esquerda na região (um dos mais moderados, aliás), poderá ser o marco histórico desses outros tempos. A restauração neoliberal em curso talvez se apresente mais dura do que em sua primeira versão, vinte ou trinta anos atrás. A resistência a ela, provavelmente também.
*Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP (PROLAM-USP) e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. (EACH-USP)