Nos últimos meses, investimento brasileiro de quase R$ 1 bi na instalação cubana se justificou com reaproximação entre governo cubano e Estados Unidos
Por Patrícia Dichtchekenian, do Opera Mundi
Em um ensolarado dia 27 de janeiro de 2014, a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, e seu homólogo cubano, Raúl Castro, cortaram juntos e com a mesma tesoura a fita de inauguração do Porto de Mariel. O ato simbólico foi celebrado por uns, mas visto por outros como uma decisão adotada por questões ideológicas pelo governo brasileiro. Meses se passaram e a aposta estratégica passou a ser encarada com outros olhos após a reaproximação entre Washington e Havana.
Situado a menos de 200 quilômetros da Flórida, Mariel é atualmente o porto mais próximo do território norte-americano. Embora o local só tenha aparecido nos holofotes da imprensa internacional nos últimos anos, a cidade cubana desempenhou papel central na história moderna da ilha caribenha. Durante a crise dos mísseis de 1962, por exemplo, Mariel foi o estacionamento escolhido pelos russos para descarga de ogivas nucleares. Anos depois, em 1980, a região do porto foi foco de um êxodo de 120 mil cubanos que fugiram de balsa para os EUA, uma das principais ondas migratórias entre os dois países.
Motivos não faltam para o interesse brasileiro no local. Em primeiro lugar, Cuba é um país de 11 milhões de habitantes que importa mais de 80% dos alimentos que consome. Estimativas do Conselho Comercial Econômico Cuba-Estados Unidos também apontam que as importações de alimentos custem cerca de US$ 2 bilhões por ano ao governo de Raúl Castro.
Vale ressaltar, ainda, que as exportações brasileiras para a ilha quadruplicaram a US$ 450 milhões na última década, elevando o Brasil ao terceiro lugar na lista de parceiros da ilha, atrás apenas de Venezuela e China. Ou seja, um mercado interessante para sua vizinhança latino-americana, um potencial para exploração de empresas brasileiras que não têm – por enquanto – um rival do peso como os norte-americanos, por conta do embargo econômico imposto há mais de 50 anos por Washington.
No entanto, para Arturo López Levy, professor do Centro de Estudos Globais da Universidade de Nova York (NYU), mesmo com a expectativa de que o embargo caia nos próximos anos, isso não implicaria uma perda de influência brasileira. “Mais do que China e Rússia, o Brasil é a potência emergente que Cuba mais tem confiança”, define Levy, em entrevista a Opera Mundi por telefone.
Para o especialista, que nasceu na cidade cubana de Santa Clara, mas trabalha na academia norte-americana desde 2001, o porto de Mariel é a aposta estratégica mais importante do hemisfério neste momento. “O Brasil quer acompanhar a transição da economia de mercado cubana e o investimento em Mariel presume também a modernização do canal do Panamá e uma possível construção de um canal na Nicarágua, já que implica o aumento do fluxo de mercados no Caribe. É um local muito estratégico”, explica.
Vanguarda brasileira
Durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), o governo brasileiro desenvolveu uma série de estratégias na América Central para se aproveitar do momento em que a ilha caribenha abrisse a sua economia, contou a Opera Mundi Welber Barral, secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento entre 2007 e 2011, em 17 de dezembro de 2014, dia em que foi anunciada a reaproximação entre os governos norte-americano e cubano.
“O Brasil queria estar na frente e ter importante posição de vanguarda na hora que começasse uma abertura maior da economia cubana. A reaproximação dos EUA é mais um passo nesse sentido, mas deve se dar de forma paulatina”, declarou à época Barral, que também é conselheiro da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e professor no Instituto Rio Branco.
“Por volta de 2008 foram feitas várias avaliações, inclusive pelo Itamaraty, sobre uma paulatina abertura cubana”, recorda Barral. “A adesão norte-americana não esperávamos tão cedo, mas havia, sim, uma expectativa do Brasil de participar da economia cubana naquele momento”, acrescenta.
Socialismo encontra capitalismo
Desde 2006, quando Raúl Castro assumiu a Presidência cubana de forma interina, a ilha passou a empreender uma série de reformas para flexibilizar e modernizar a economia local, chegando ao seu clímax com a inauguração de Mariel.
O porto cubano ainda apresenta outros benefícios próprios: além de ter grande profundidade e ser capaz de recepcionar navios maiores que a maioria das instalações portuárias do Caribe, Mariel foi formulado como uma zona econômica especial a apenas 45 quilômetros da capital, Havana.
Isso significa que o local tem uma legislação e regulamentação própria do investimento estrangeiro, fora da rigidez do sistema socialista cubano. “O objetivo da zona especial é o uso dessa área para desenvolver novas práticas econômicas. Servirá como um motor para dinamizar reformas econômicas cubanas”, sintetiza o professor da NYU.
Grosso modo, a zona especial cubana é uma área de livre comércio que tem como objetivo atrair o investimento estrangeiro para a ilha, com instalações modernas e incentivos fiscais favoráveis ao mercado. Em comparação com o resto da ilha, as empresas terão de enfrentar menos restrições à contratação, além de encargos fiscais mais baixos.
Para o governo cubano, é uma saída também para expandir a infraestrutura da ilha, aumentar as exportações e desenvolver projetos de alta tecnologia que vão criar empregos. "A zona é destinada a criar um clima especial, onde o capital estrangeiro vai ter melhores condições do que no resto do país", explicou o ministro do Comércio e do Investimento Estrangeiro de Cuba, Rodrigo Malmierca, durante uma visita em setembro passado, a Pequim.
A posição logística privilegiada não foi alvo apenas de investimentos brasileiros (o BNDES destinou uma verba de mais de US$ 800 milhões para financiamento), mas também de chineses e de outros países asiáticos. Embora a Odebrecht seja a responsável pela construção, o porto é operado pela empresa PSA International, de Cingapura.
Este projeto foi inspirado nos moldes chineses e vietnamitas implementados décadas atrás, embora ainda não se saiba ainda quais serão as consequências a longo prazo da abertura econômica cubana, com a reaproximação diplomática norte-americana. Se Cuba tomar a mesma direção que outros “Tigres Asiáticos” tomaram no passado, tudo dependerá em grande medida do investimento internacional injetado à ilha liderada pelos irmãos Castro. O que se sabe – por ora – é que o Brasil saiu na frente.
(Foto: Divulgação)