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Não há nada que justifique a permanente campanha alimentada pelos grandes grupos de comunicação sobre a situação da segurança na Argentina
Por Eric Nepomuceno, em Carta Maior
Os índices de violência da Argentina, se comparados aos de outros países latino-americanos – o Brasil, por exemplo –, indicam um nível bastante satisfatório de segurança. Se comparada a alguns estados brasileiros – Alagoas, por exemplo –, ou a outros países do continente – El Salvador, por exemplo, ou a Venezuela –, a Argentina seria uma espécie de Vaticano. Ou, na pior das hipóteses, uma Noruega tropical.
Claro que há violência urbana, principalmente nas zonas mais carentes. No interior, a situação é mais grave. Não há nada, porém, que justifique a tensão em que vivem os argentinos, especialmente os de classe média das cidades grandes. E menos ainda a permanente campanha alimentada pelos grandes grupos de comunicação.
Os canais de televisão costumam dar enorme ênfase aos casos de assaltos em sinais de trânsito, realçando de maneira espetaculosa o que chamam de ‘clima de profunda inseguridad que se vive en el país’. Não é, nem de longe, para tanto.
E eis que, de repente, surge uma onda de linchamentos por todo o país. Na quinta-feira, dia 3, em Rosario, que disputa com Córdoba o posto de segunda maior cidade do país, um homem de 32 anos foi linchado por ter tentado violar uma moça. Enquanto ele era levado para o hospital, a polícia constatou que na verdade ele tinha tentado roubar a bolsa da moça em questão. Na terça-feira, dia primeiro, houve um linchamento em Córdoba. No domingo anterior, outro, em La Rioja. E na mesma quinta, outro mais, em Buenos Aires. Cada caso é trombeteado com furor pelos jornais, as emissoras de rádio, os canais de televisão. Não chega a ser um fenômeno geral, mas é certamente preocupante, e muito. É como se um caso estimulasse outro. Só em Rosário, houve cinco linchamentos em três semanas. E uma das vítimas, David Moreira, de 18 anos, acabou morrendo. Seu crime: ter tentado roubar a bolsa de uma mulher. Na bolsa havia, além de documentos, uma carteira com uns 200 pesos. Uns 50 reais.
Por trás dessa ressonância toda existem, claro, os objetivos políticos. De maneira assustadoramente oportunista até mesmo para um sujeito altamente especializado em oportunismos, Sergio Massa, um dos pré-candidatos à sucessão de Cristina Kirchner (de quem chegou a ser chefe de Gabinete), Sério Massa, não tem dúvidas: a culpa dos linchamentos é da falta de segurança. E a falta de segurança é culpa do governo dos Kirchner. Sim, porque nesse vale-tudo vale até mesmo trazer o falecido Nestor Kirchner para a arena dos leões. Sérgio Massa esquece, oportunamente, que a segurança e combate ao crime é questão de responsabilidade de Estados e municípios. Mauricio Macri, excelsa figura de proa do neoliberalismo mais radical e também ele candidato presidencial, diz que o abandono em que foram deixados os habitantes das grandes cidades mostra a ausência do governo. E que ao cidadão comum, diante dessa ausência, não resta outra saída que se defender por conta própria. Confessou seu alívio de pai ao saber que a filha iria estudar fora do país, esse país em que o governo é incapaz de garantir a tranquilidade e a segurança de sua pimpolha.
Macri esquece, de maneira oportuna, que é o governador da Capital Federal, Buenos Aires. Que representa o Estado. Que é governo, e que esse governo dele tem polícia.
Vários outros expoentes da oposição, de esquálida repercussão nas urnas, se destacam em lancinantes queixas sobre a insegurança padecida pelos cidadãos que pagam seus impostos e esperam proteção do governo. E, quando não deixam claro, insinuam que a culpa de tudo é de Cristina Kirchner e dos kirchneristas.
Enquanto isso, as mais altas autoridades da igreja Católica, juízes de todas as instâncias de tribunais de todo o país, militantes em defesa dos direitos humanos, das Avós da Praça de Maio ao Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, criticam enfaticamente linchamentos e linchadores. Os grandes jornais e os canais de televisão contam isso, mas contam também que um ladrãozinho surrado na rua e levado preso deixando um rastro de sangue foi libertado depois de poucas horas.
Ou seja: prender não adianta, a saída é linchar. O governo não defende a população, que tem de se defender por conta própria, fazendo justiça com as mãos e, nessas agressões furibundas, com os pés e tudo mais que estiver ao alcance.
De nada adiantou o juiz e o promotor explicarem que não houve flagrante, não houve queixa registrada em delegacia, não houve nada que pudesse servir de base legal e jurídica para manter o homem preso.
As eleições gerais, que determinarão quem irá suceder Cristina Kirchner, só vão acontecer em 2015.
Esse clima radical, de tensão máxima disseminada e estimulada, deve continuar crescendo até lá. É como se as classes médias argentinas não consigam enxergar a própria loucura. Tomar consciência da própria cegueira. Quantos gatunos serão sovados até a morte? Ninguém sabe. Mas com certeza, de continuar essa histeria coletiva, a coisa não vai parar por aqui,