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A catástrofe na Ucrânia ainda se pode evitar através do compromisso e da moderação, mas o mesmo valia para o Afeganistão, o Iraque e a Síria
Por Patrick Cockburn, em Counterpunch | Tradução: Carlos Santos e Luis Leiria para o Esquerda.net
"No curto instante que nos sobra entre a crise e a catástrofe, bem podemos beber uma taça de champanhe", disse Paul Claudel, o poeta francês, dramaturgo e embaixador nos Estados Unidos no princípio dos anos 30 do século 20, referindo-se às poucas esperanças de evitar um desastre financeiro. Mas as suas palavras parecem ser bons conselhos, apesar de desesperados, para a Ucrânia nos últimos dias, quando se aproxima o seu "momento de champanhe".
Uma catástrofe na forma de guerra civil, de invasão russa e de divisão do país, não é inevitável, mas está ao virar da esquina. O acordo alcançado entre a Rússia, os EUA, a União Europeia e a Ucrânia em Genebra, segundo o qual os manifestantes no leste da Ucrânia poderiam desocupar os edifícios públicos ocupados e entregar as armas em troca de uma maior autonomia dos distritos pró-russos, pouco diminuiu o impulso para a guerra civil. Os manifestantes insistem que têm tanta legitimidade quanto o que chamam de "a junta Kiev", que chegou ao poder através das manifestações de rua que derrubaram um governo eleito, mas corrupto e incompetente.
Os meios de comunicação ocidentais centraram-se obsessivamente na questão de saber em que medida os milicianos pró-russos no leste da Ucrânia obedecem as ordens do Kremlin, mas essa atenção obscurece uma característica mais significativa do panorama político ucraniano. Todas as eleições na Ucrânia desde a queda da União Soviética em 1991, mostraram que o país se divide quase por igual entre pró-russos e pró-ocidentais, em que cada lado tem a capacidade de vencer as renhidas eleições. Fingir que a rebelião no leste da Ucrânia é falsa e orquestrada pela Rússia é uma ilusão perigosa.
Ainda que a Ucrânia seja diferente do Iraque e do Afeganistão, há algumas fatídicas semelhanças no envolvimento ocidental nos três países. A caraterística comum mais importante é que cada país está profundamente dividido, e afirmar o contrário é um convite ao desastre. Em 2001, a maioria dos afegãos gostou de ver a fuga dos talibãs, mas estes e a comunidade pashtun – cerca de 42 por cento da população afegã – na qual os talibãs têm as suas raízes, não podiam ser ignorados ou marginalizados com sucesso. A criação de um governo dominado pelos velhos líderes anti-talibã da Aliança do Norte desestabilizou automaticamente o país.
Algo semelhante ocorreu no Iraque. No tempo de Saddam Hussein e dos seus antecessores, a comunidade sunita, cerca de 20 por cento dos iraquianos, detinha as alavancas fundamentais do poder à custa dos árabes xiitas e dos curdos, que representam quatro quintos da população. A queda de Saddam significou que uma revolução étnica e sectária era inevitável, mas a crença dos EUA e da Grã-Bretanha de que os únicos descontentes no Iraque de 2003 eram os remanescentes do antigo regime, subestimava totalmente o perigo de uma revolta sunita.
Tony Blair afirmou recentemente que tudo teria corrido bem, no Iraque ocupado, se não tivesse havido uma interferência perversa de forças externas como o Irã e a Síria. Mas os estados soberanos não existem de forma isolada. Ocupá-los – como ocorreu em Cabul e Bagdá – ou conquistar uma influência predominante, como os EUA e a UE têm feito em Kiev, transforma a geografia política de toda uma região. Era uma ingenuidade absurda por parte das autoridades dos EUA imaginar que o Paquistão, ou mais precisamente, o exército do Paquistão, aceitaria filosoficamente o colapso de décadas de esforço para controlar o Afeganistão após 2001. Da mesma forma, no Iraque, a administração Bush, eufórica com a vitória sobre Saddam, apregoava alegremente a sua intenção de promover a mudança de regime em Teerã e Damasco. Como era de esperar, os iranianos e os sírios fizeram esforços determinados para garantir que os EUA nunca conseguissem estabilizar o seu controle sobre o Iraque.
Levar a Ucrânia no seu conjunto a passar de pró-russa para anti-russa é uma derrota estratégica devastadora para a Rússia que esta nunca aceitaria sem reagir. Uma Ucrânia hostil reduziria de forma permanente o estatuto da Rússia como grande potência e empurraria a sua influência para o extremo oriente da Europa. Ora, se a Ucrânia tinha tanta importância para a Rússia, foi uma imprudência dos seus dirigentes confiarem no presidente Viktor Yanukovich e na sua gangue de corruptos cujo poder se evaporou tão rapidamente. Mas também foi ilusório e irresponsável por parte da UE e dos Estados Unidos não ver ou não se importar com as consequências explosivas de apoiar a subida ao poder de um governo pró-ocidental não eleito em Kiev, levando para o gabinete grupos extremistas ultra-nacionalistas, e depois tratá-lo como se tivesse total legitimidade.
Mas não são só os diplomatas e políticos ocidentais que cometem erros. A imprensa estrangeira apresentou uma visão simplista do que está a acontecer na Ucrânia, tal como o fez no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria. O antigo regime foi, em todos estes casos, demonizado e os seus opositores glorificados, de tal forma que a imagem dos acontecimentos apresentada ao público se aproxima com frequência da fantasia.
O mesmo está a acontecer na Ucrânia. Os meios de comunicação concentram-se sobretudo na credibilidade, ou na falta dela, dos separatistas do leste da Ucrânia, e muito pouco no novo governo de Kiev. De fato, o que mais chama a atenção em ambos os lados é a sua ineficácia quase cômica: há três meses, Yanukovich atuou como se tivesse a força política e militar para esmagar a oposição só para se ver obrigado depois a fugir quase sozinho através da fronteira com a Rússia. Na semana passada, Kiev enviava confiantemente tropas para esmagar "terroristas" e restabelecer a sua autoridade no leste, apenas para ver as suas forças abandonarem calmamente os veículos e desertarem. Quando as forças de segurança do governo mataram manifestantes em Mariupol, ficou claro que pertenciam a unidades da recém-formada Guarda Nacional recrutadas entre os manifestantes ultra-nacionalistas.
O resultado desta falta de apoio organizado, diante das profundas e reais divisões populares, é que se desenvolvem os vazios de poder que são preenchidos por sombrias milícias. Este é em grande medida o padrão das guerras recentes no Oriente Médio. No Afeganistão, por exemplo, o que chama a atenção não é a força dos talibãs, mas a debilidade e a impopularidade do governo. No Iraque, o governo tem uma força de segurança de 900.000 membros e rendimentos do petróleo de 100 bilhões de dólares (72 bilhões de euros) por ano, mas, nos últimos três meses, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL, sigla em inglês), uma organização criticada pela al-Qaeda pela sua excessiva violência, governou Fallujah, 40 quilômetros a oeste de Bagdá.
A catástrofe na Ucrânia ainda se pode evitar através do compromisso e da moderação, mas o mesmo valia para o Afeganistão, o Iraque e a Síria. Estes países foram dilacerados pelas guerras porque as potências estrangeiras tinham a falsa crença de que podiam obter vitórias fáceis, e uma apreciação errada na escolha do sócio a nível local, uma facção de interesses próprios e com muitos inimigos. Na Síria, por exemplo, os EUA e os seus aliados afirmam há três anos que os verdadeiros representantes do povo sírio são exilados desacreditados, mas bem financiados, que não se atrevem a visitar nem as áreas controladas pelo governo nem as controladas pelos rebeldes.
O que torna a Ucrânia tão perigosa é que todas as partes exageram o seu apoio, subestimam o dos seus opositores, e depois exageram as suas ações. Aceitando um governo legítimo em Kiev instalado por ação direta, os EUA e a UE desestabilizaram irresponsavelmente uma extensão de Europa, algo que deveria ter sido óbvio nesse momento. Para citar Paul Claudel novamente: "É uma sorte que os diplomatas tenham narizes grandes, já que em geral não conseguem ver para além deles".