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Mundial Antirracismo na Itália reúne imigrantes, Ongs e torcedores em um festival que já é um dos principais eventos da luta contra o preconceito na Europa
Por Marina Mattar e Raphael Piva
Esta matéria faz parte da edição 125 da revista Fórum.
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“Balotelli não é italiano porque não existem italianos negros.” Enquanto era disputada a última edição da Copa das Confederações, foi isso que o imigrante marroquino Rachid Samsili ouviu de um colega de trabalho sobre o atacante da seleção italiana de futebol, nascido de pais ganeses e adotado por um casal do país europeu. O marroquino mora na Itália há cinco anos com sua família e sente nos pequenos gestos do dia a dia todo o peso de se viver em um país, em sua própria definição, “tão fechado a imigrantes e a outras culturas”. Imerso em um cotidiano de longas jornadas de trabalho, comum a tantos outros imigrantes ao redor da Europa, Rachid e outros membros da Associação Sopra i Ponti, que reúne imigrantes árabes de Bolonha, aproveitaram uma das poucas brechas em suas rotinas e foram até a pequena Bosco Albergati, onde formaram uma equipe para participar do Mondiali Antirazzisti (Mundial Antirracismo). O evento é realizado anualmente desde 1997 e funciona como um grande fórum social que combina esporte, música e política. Desde Ongs que trabalham com refugiados até grupos anarquistas e torcidas de futebol, o torneio reuniu cerca de 7 mil pessoas, que jogaram, cantaram, dançaram e compartilharam suas experiências políticas acampadas em um grande parque afastado da cidade durante cinco dias, de 3 a 7 de julho. O Mondiali surgiu do diálogo de alguns grupos “ultras” – os torcedores organizados na Itália – com associações de imigrantes e hoje se tornou um dos principais eventos da luta antirracista na Europa. A ideia por trás da iniciativa era criar um espaço de comunicação e fortalecer canais de intercâmbio entre diferentes setores da sociedade europeia que se colocavam contra o racismo e outras formas de discriminação. Na época, os países europeus começavam a receber milhares de pessoas de diversas partes do mundo em um processo que se acentuaria nas décadas seguintes. De acordo com dados das Nações Unidas, de 1985 até 2000 o número de imigrantes vivendo no continente mais do que duplicou, passando de 23 para 56 milhões. A Itália acompanhou o padrão europeu e se tornou o terceiro país com mais imigrantes do continente. No início da década de 1990, eles representavam cerca de 1% da população e, atualmente, já são 7,5%. Racismo nas ruas, racismo nos estádios A chegada desses estrangeiros foi acompanhada por uma grande reação da direita europeia, que encontrou terreno fértil entre a população com a bandeira contra os imigrantes. Na Itália, esses movimentos ganharam notoriedade e espaço político, ecoando nas ruas e arquibancadas ao redor do país. Os jogadores estrangeiros, principalmente africanos, que chegavam ao futebol italiano na virada do século XX deparavam-se frequentemente com um ambiente hostil. Embora viessem em uma posição privilegiada em relação aos demais imigrantes, portando o status de jogador profissional de futebol, esses atletas acabavam encarnando nos gramados o mal-estar em curso na sociedade italiana, sendo vitimas de gritos e demonstrações racistas. [caption id="attachment_30019" align="alignright" width="300"] Premiac?a?o do Liberi Nantes no Mondiali Antirazzist (Reprodução)[/caption] “Nós estávamos procurando por um jeito inovador de combater o racismo que estava prevalecendo em toda a Europa”, explica um dos idealizadores do evento e representante da Uisp [União Italiana Esporte para Todos, na sigla em italiano] Carlo Balestri. “Queríamos contribuir para uma presença antirracista nos estádios, mas queríamos também trabalhar diretamente com imigrantes a fim de conhecermos os problemas que eles estavam passando”, acrescenta ele. Quase duas décadas depois de sua primeira edição, o Mondiali, infelizmente, não perdeu sentido: até os dias atuais, os imigrantes sofrem com diferentes formas de discriminação na sociedade europeia. Segundo dados oficiais coletados pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (Ecri), apenas em 2009 foram registrados 142 crimes de ódio motivados por racismo, xenofobia e antissemitismo na Itália. Mas o instituto alerta que os dados não conseguem abarcar as ofensas diárias nem todos os casos de agressão que acontecem no país. Podemos listar alguns: manifestações violentas contra romenos em Nápoles em maio de 2008; ataques contra trabalhadores temporários imigrantes em Rosarno, na Calabria, em janeiro de 2010; a morte de Abdoul Guiebre, um italiano de origem africana, que foi espancado por um dono de mercado depois de um furto em Milão; o assassinato de dois vendedores ambulantes senegaleses em Florença por um simpatizante do movimento neofascista Casa Pound; e outras dezenas de agressões. Para além dos ataques que chegam às manchetes dos jornais, o dia a dia de imigrantes nas cidades italianas é marcado por outras formas de violência, que receberam destaque no festival. A luta dos trabalhadores estrangeiros contra a empresa local de laticínios Granarolo, que não cumpriu com os direitos trabalhistas em suas contratações e demissões, foi premiada com um troféu. De empregos precários à dificuldade de acessar os serviços públicos, o problema se estende à legislação do Estado, de acordo com a qual só é italiano quem possui pais italianos, e que pune com maior força crimes cometidos por “estrangeiros”. Foi com o objetivo de debater esse cenário que a ministra da Integração, Cécile Kyenge, a primeira parlamentar negra da história italiana, compareceu ao festival. Pouco mais de uma semana depois, um episódio envolvendo a política, de origem congolesa, ganharia manchetes em todo o mundo. O vice-presidente do Senado italiano, Roberto Calderoni, da Liga Nord, postou na rede social uma foto de Kyenge ao lado de um macaco, comparando ambos. A ministra, que já foi alvo de muitas manifestações racistas por colegas do Parlamento, deixou uma mensagem otimista no festival. “Podemos ver que a Itália é outra aqui”, disse ela. “O Mondiali Antirazzisti é um exemplo de integração por meio do esporte”. Futebol de luta e união Em seus 17 anos de existência, o evento se fortaleceu e passou a abranger organizações que não possuem vínculos diretos com esportes, como a Agência de Refugiados da ONU (UNHCR), a Anistia Internacional e centros comunitários, mas sem perder seu princípio fundador. A ideia motora dos organizadores de “juntar grupos ultras antirracistas e comunidades de imigrantes, tendo uma bola de futebol como ponto de partida, valores igualitários como laços e o jogo como instrumento” se mantém central no festival. A competição de futebol, que reuniu mais de 160 times nessa edição, é a principal atração do Mondiali, que também conta com torneios de outras modalidades, como basquete e vôlei. Ao contrário de campeonatos tradicionais, os jogos misturam homens, mulheres, crianças e deficientes. O que prevalece é uma interpretação lúdica do futebol como linguagem universal capaz de unir o diferente e promover a igualdade. “Nossa prioridade não é a competição, mas construir relações”, acrescenta Balestri. Na esteira dessa proposta, o evento conseguiu unir as torcidas do Modena, Bolonha e Parma, tradicionais rivais que superaram um longo passado de confrontos violentos, para administrar juntas um bar e um restaurante no festival. Além da integração, um dos principais frutos do festival italiano foi disseminar essa nova forma de fazer e viver o futebol. “O Mondiali se tornou um laboratório experimental que produziu um formato exportado em toda a Europa, com numerosos exemplos concretos em muitos países”, explica Balestri, se referindo às dezenas de campeonatos alternativos organizados em comunidades locais contra o racismo. “Isso significa que as pessoas deixaram de ser sujeitos participantes para se tornarem sujeitos ativos”, comemora. Ontem partigiani, hoje antirracista “Bella Ciao deveria ser o hino nacional da Itália”, exclamou Adelmo Cervi na cerimônia de encerramento do festival sobre a canção popularizada no seio da luta antifascista. Cervi nasceu em 1943, mesmo ano em que seu pai Aldo, membro da resistência partigiani, foi fuzilado pelos fascistas. Ele participa do festival há anos, onde segue jogando futebol, e se emociona ao ouvir o hino partigiani passando de geração em geração. A canção é uma das mais populares entre os participantes do Mondiali, que entoam hinos por horas a fio, quando os bares e restaurantes parecem se transformar em uma grande arquibancada. Não foram só as canções que lembraram os tempos da resistência italiana, mas o sentimento de solidariedade entre os participantes também. Nas palavras de um dos vencedores do torneio, do time RFC Ska Lions Caserta, que imigrou há poucos anos da África para a Itália, foi muito bom se sentir acolhido e bem recebido por todos. “Siamo tutti antirazzisti!”, cantou ele perante centenas de pessoas, que o acompanharam com o hino. Os jogadores do time do Start Lazionet também subiram ao pódio com um terceiro lugar, em mais uma vitória emblemática do torneio. A equipe surgiu da reunião de torcedores da SS Lazio, descontentes com a postura predominante nas arquibancadas, conhecida por abrigar algumas das torcidas mais racistas de toda Europa. Os grandes vencedores do torneio foram os membros do time Liberi Nantes, uma associação que procura dar auxílio e asilo a refugiados e imigrantes forçados por meio do esporte. A equipe, que também compete em outros torneios, ficou em segundo lugar, neste ano, na terceira divisão de Roma. No entanto, por seus jogadores não serem cidadãos italianos, a federação nacional de futebol não reconheceu o resultado. Como afirma a camiseta da associação, citando o poema do sevilhano Antonio Machado: Caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar. E a luta contra a discriminação ainda encontra um longo trajeto pela frente. F