Repetidos ataques contra ministra de origem congolesa reacendem debate sobre xenofobia e revelam ser disfarce para perda de popularidade de partidos conservadores
Por Giorgio Trucchi, de Roma para o Opera Mundi
Ela já foi chamada de “orangotanga” e atacada com bananas. Desde a nomeação para a pasta de Integração e Políticas Juvenis do atual governo italiano, a congolesa Cécile Kyenge vem recebendo repetidos ataques racistas. Com grande repercussão, as agressões alimentaram um debate em torno do significado e do alcance da xenofobia na Itália.
Originária de uma empobrecida família da República Democrática do Congo, Kyenge batalhou muito para ocupar o atual cargo. "Cheguei sozinha à Itália com 18 anos. Não acredito em desistir diante dos obstáculos", ela disse após as demonstrações de intolerância.
Depois de ser comparada a um macaco pelo vice-presidente do Senado italiano e membro do partido Liga Norte, Roberto Calderolo, Kyenge sofreu outra agressão em 26 de julho, quando militantes do movimento de extrema direita Forza Nuova atiraram duas bananas nela.
Dias antes, o eurodeputado leghista Mario Borghezio havia qualificado a coalizão liderada pelo primeiro-ministro Enrico Letta “um governo do bonga bonga”. Em sua página do Facebook, a conselheira da Liga Norte na cidade de Pádua (nordeste do país) Dolores Valandro sugeriu o estupro da ministra, sofrendo a imediata expulsão do partido e uma condenação judicial nos tribunais.
Mais recentemente, Kyenge sofreu outro ataque, quando os políticos da Liga Norte do município de Cantú (região da Lombardia), Alessandro Brianza e Edgardo Arosio, com o ex-leguista Giorgio Masocco, abandonaram uma sessão em protesto à presença da ministra.
Apesar de até o momento somente ter lamentado os recentes acontecimentos, Kyange dá sinais de que chegou ao seu limite. “Estes ataques contínuos e recorrentes da parte dos membros da Liga Norte já não são toleráveis”, disse durante a apresentação, em 30 de julho, do plano trienal de ação contra o racismo, a xenofobia e a intolerância (2013-2015).
No passado, Kyenge declarou não querer subestimar os episódios de racismo, mas que também não os tomaria como algo pessoal, senão como “expressão de um mal-estar existencial”. Para ela, trata-se da incapacidade de conviver com a diversidade. “É preciso lutar essa batalha sem medo, inclusive nos lugares mais difíceis, na própria toca do lobo, onde se manifesta esse mal estar. Com coragem e orgulhosa de ser italiana”, afirmou.
Crise da direita
De acordo com o jornalista e escritor Karim Metref, de origem argelina e residente na Itália, essa deplorável situação tem mais a ver com a crise profunda que a direita italiana está vivendo do que com a expressão de uma raiva popular generalizada pela nomeação de Kyenge ou com uma crescente onda racista.
“A extrema direita tem tentado criminalizar os imigrantes, colocando neles a culpa e a responsabilidade pela profunda crise que o país vive. Depois do fracasso eleitoral, esses partidos e movimentos estão usando a nomeação de uma ministra de raça negra para ter visibilidade frente a seu eleitorado, tentando combater a crescente perda de consenso”, disse Metref a Opera Mundi.
A vida de Cécile Kyenge Kashetu, de 49 anos, originária da República Democrática do Congo, não tem sido fácil. Proveniente de uma família muito numerosa – tem 38 irmãos e irmãs nascidos de um pai chefe de tribo, católico, mas polígamo –, em 1983, com apenas 18 anos, a atual ministra conseguiu uma bolsa para estudar Medicina.
Com esforço e sacrifício, vivendo em um colégio de missionárias laicas na cidade de Módena e trabalhando como empregada doméstica, ela conseguiu obter sua licenciatura e completou os estudos com especialização em oftalmologia nas universidades de Módena e Reggio Emilia.
Casada desde 1995 com um engenheiro italiano e mãe de duas filhas, Kyenge se manteve muito ativa na promoção da cidadania plena de todos os imigrantes, colaborando com diferentes organizações que operam no setor. [caption id="attachment_29614" align="aligncenter" width="600"] Ministra da Integração Racial italiana participa de festa multicultural em Bolonha. "É presido lutar essa batalha sem medo" (Foto: Reprodução / Facebook)[/caption]
Em 2004, ela foi eleita conselheira provincial em Módena e responsável regional para as políticas sobre a imigração do PD (Partido Democrático). Sete anos depois, participou da elaboração da Carta Mundial dos Migrantes. Em fevereiro de 2013, foi eleita deputada pelo Partido Democrático e, poucas semanas depois, assumiu o cargo de ministra.
“A Liga Norte tem seus franco-atiradores, especializados em montar campanhas midiáticas de lama e desprestígio. O que fizeram Calderoli, Borhezio, não é nem mais nem menos que seu trabalho habitual para chamar atenção de setores da sociedade que foram envenenados por hipocrisias separatistas o pelo medo do estrangeiro”, advertiu Metref.
Plano contra o racismo
Sobre os reiterados ataques contra a ministra e a aparente propagação dos fenômenos xenófobos na Itália, o escritor argelino acredita que, ao contrário do que pode parecer, o país está pronto para seguir um processo de verdadeira integração, sem negligenciar a grave situação econômica e social que impactaram amplos setores da sociedade.
“A crise gerou medo e tensões, aprofundando algumas contradições entre os setores mais pobres da população, incluindo os imigrantes. No entanto, os que semearam e venderam ódio não puderam capitalizar esse medo e estão perdendo terreno”, disse Metref.
Entre os temas mais debatidos, ele ressalta a proposta de instituir na Itália o “ius soli” (direito ao solo), isto é, a concessão da nacionalidade por lugar de nascimento, substituindo o “ius sanguinis” (direito de sangue), no qual a nacionalidade está determinada pela nacionalidade dos pais.
“O tema da integração é mais social que cultural e está acompanhado por verdadeiras reformas, que visam multiplicar o bem-estar entre os cidadãos, o caminho vai ser mais rápido e eficaz”, conclui o jornalista.
Neste sentido, Kyenge apontou que o plano trienal contra o racismo, a xenofobia e a intolerância “é um começo de um caminho que se abrirá com o diálogo da sociedade civil, dos sindicatos e das entidades locais”. Vai tratar de ódio racial e da instigação ao racismo nas redes sócias e será difundido nas escolas, meios de comunicação e atividades esportivas envolvendo cidadãos italianos e estrangeiros, “sobretudo aqueles de segunda e terceira geração”, disse, durante a apresentação do plano.