Escrito en
GLOBAL
el
Bachelet e Matthei são hoje as faces da centro-esquerda e da direita que, desde o fim da ditadura, em 1990, mantêm um status quo social fragmentado e crescentemente desigual
Por Marianela Jarroud, da IPS/Envolverde
O chileno Hugo Hurtado, de 47 anos, é chefe de cozinha. Qualquer um diria que em seu país, o tigre da América Latina, essa profissão é um seguro de sucesso e até de fama. Mas não para todos. Hurtado trabalha como garçom. “Estudei uma profissão muito elitista porque, sem contatos nem restaurante próprio, só poderia por ser cozinheiro, o que significava ganhar US$ 500 ao mês e trabalhar de oito a dez horas por dia, seis dias na semana”, contou à IPS.
“Como garçom o horário é o mesmo, mas entre salário e gorjeta ganho US$ 700 mensais”, explicou Hurtado. Ele e sua família são um exemplo desse segmento de chilenos que aguardam, entre fartos e esperançosos, o resultado das eleições presidenciais – que terá seu segundo turno no dia 15 de dezembro –, para ver se também eles ganham o direito de sentir os benefícios de serem cidadãos do “tigre” latino-americano.
Há o perigo de os fartos estarem aumentando. Nas eleições gerais do dia 17, metade dos habilitados a votar se abstiveram. A ex-presidente socialista Michelle Bachelet (2006-2010) obteve 47% dos votos e a candidata da direita governante, Evelyn Matthei, 25%. Ambas disputarão em dezembro a Presidência. Metade dos trabalhadoras recebe menos de US$ 500 neste país de 17 milhões de habitantes e com crescimento econômico superior a 6% anuais nos últimos 20 anos.
[caption id="attachment_36475" align="alignleft" width="440"] Hugo e Daniel Hurtado vão contra a corrente no Chile: um assalariado não pode se dar o luxo de enviar o filho à universidade (Foto Marianela Jarroud/IPS)[/caption]
Hurtado, separado e pai de três filhos, vive com dois deles na casa em que vive com sua nova companheira em Puente Alto, bairro popular ao sul de Santiago. Daniel, o mais velho e aluno de excelente rendimento acadêmico, pretende estudar medicina. Contudo, seus conhecimentos não bastaram para superar a Prova de Seleção Universitária (PSU) e os recursos da família não são suficientes para pagar um curso particular pré-universitário, indispensável nesse país onde a formação acadêmica gratuita não existe.
Com 18 anos, Daniel ganhou uma bolsa por bom rendimento e situação econômica vulnerável, que lhe permite cursar o primeiro ano de um curso pré-universitário em ciências na Universidade do Chile. Em dois anos, este caminho o habilitará a se candidatar à carreira de medicina sem necessidade de prestar novo PSU. “Se não fosse a bolsa, não poderia estudar na Universidade”, observou seu pai. E as coisas podem mudar se cursar a carreira de seus sonhos.
“Medicina custa entre US$ 900 e US$ 1.400 mensais, mais material, alimentação, locomoção e outros gastos. Então, estamos pensando que o melhor é que vá para a Argentina (onde o ensino é gratuito) e estude lá”, explicou Hurtado. Pai e filho se destacam do comum. “Estamos nadando contra a corrente. O normal seria Daniel trabalhar em um cal center, como empacotador em algum supermercado, na construção ou também de garçom”, pontuou. “Não há bolso de uma família normal que aguente isso”, completou Daniel.
Bachelet e Matthei são hoje as faces da centro-esquerda e da direita que, desde o fim da ditadura, em 1990, mantêm um statu quo social fragmentado e crescentemente desigual. A renda de 5% das famílias mais ricas do país é 270 vezes maior do que a dos 5% mais pobres, segundo dados entregues à IPS pela Fundação Sol, especializada em temas trabalhistas e sociais. “Existe a memória de um Estado que foi mais inclusivo, que fez parte de um processo de participação social, que aceitou a presença popular em sua gestão e que foi arrebatado pelos militares” no golpe de Estado de 1973, disse à IPS o antropólogo Juan Carlos Skewes, da Universidade Alberto Hurtado.
Para o jovem Daniel Hurtado, “o Estado deveria cumprir o papel de garantir a educação para a sociedade em seu conjunto, e não dar migalhas”. Considera que esse desenvolvimento econômico “se reflete em uns poucos que têm os meios e são os donos. Esse é outro mundo, eles governam, eles progridem. Para a maioria do país resta nadar contra a corrente, recolher as bolsas que nos atiram para podermos estudar”, ressaltou.
O ensino gratuito é uma demanda central dos últimos anos, em particular desde as manifestações estudantis de 2011. Nas eleições do dia 17, quatro ex-dirigentes desse movimento estudantil conseguiram cadeiras no parlamento, alguns com ampla maioria, como a comunista Camila Vallejo. Eles terão que negociar com o próximo governo, que seguramente será liderado por Bachelet, os meios para alcançar uma educação gratuita.
Bachelet, que em seu primeiro mandato impulsionou uma reforma educacional insuficiente, prometeu alcançar o ensino universitário gratuito em seis anos, algo que ilude Edilia Rojas. “Se ela diz, acredito. Tomara que cumpra. Gostaria que meu neto estudasse, tivesse oportunidades”, acrescentou com humildade. Aos 69 anos, essa aposentada, mãe de um filho e avó, trabalha todos os dias como empregada doméstica para pagar seus gastos básicos. “Trabalho desde os 16 anos. Pensava que ia parar ao me aposentar, mas, como recebo pouco de aposentadoria (US$ 300), tive que continuar”, afirmou.
De segunda a sexta-feiras, Rojas faz limpeza em uma casa de família por um salário que não chega a US$ 500. “Isso significa que sou escrava do trabalho”, ressaltou. Graças ao seu esforço, seu filho foi à universidade e não precisou se endividar para isso. “Todo o salário que recebia era para pagar seu estudo. Comíamos porque alugava uns cômodos da minha casa e, além disso, eu almoço no trabalho. Minha vida foi um pouco dura, mas tenho saúde”, afirmou.
Se a vida tivesse sido diferente, Rojas ficaria contente em viver no campo, junto dos dois irmãos que nem mesmo têm casa própria ou alugada. Por isso, diante da pergunta sobre as maiores urgências do Chile, não vacila em responder: acesso à moradia e uma aposentadoria digna.