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A Argentina está apenas colocando em termos racionais um fenômeno que teria que estar na pauta diante da crise atual, em grande parte devida aos desequilíbrios comerciais e financeiros.
Por J. Carlos de Assis (*)
Publicado por Carta Maior.
A decisão da Argentina de condicionar as importações do país a um valor igual de exportações, que segundo a reclamação da União Europeia junto à Organização Mundial do Comércio configura um protecionismo retrógrado, sinaliza, ao contrário, a regra fundamental do comércio internacional justo que deve vigir num futuro que se espera não muito distante. De fato, igualdade entre importações e exportações deveria ser uma condição necessária da estabilidade entre os países.
Era esse equilíbrio que Keynes, o maior economista do século XX, tinha em vista na discussão dos acordos de Bretton Woods em 1944, quando se estabeleceram os princípios e as bases da ordem financeira internacional do pós-guerra. Keynes propunha uma simetria entre exportações e importações que seria assegurada por mecanismos de estímulo aos países deficitários e de punições financeiras aos superavitários de forma a impedir desequilíbrio econômicos oriundos do comércio.
Esse equilíbrio supunha a utilização de uma moeda contábil, o bancor, na qual se contabilizariam déficits e superávits. Os superávits seriam transferidos automaticamente dos países superavitários para os deficitários mediante um esquema financeiro que estimulasse a redução dos superávits assim como dos déficits, convergindo ao equilíbrio, na forma de igualdade entre exportações e importações. Era um sistema “neutro” demais para agradar os Estados Unidos, então largamente superavitários em relação ao resto do mundo.
Na prática, o que prevaleceu em Bretton Woods foi a absoluta hegemonia do dólar num momento em que os Estado Unidos representavam 60% da manufatura mundial e quase 100% das relações financeiras. Diante disso, alguns países, para se protegerem de desequilíbrio oriundos do comércio assimétrico, decidiram partir para uma estratégia mercantilista de exportação a qualquer custo. Assim garantiam uma capacidade de importação a longo prazo. Foi o caso, sobretudo, do Japão e da Alemanha, hoje seguidos pela China e outros tigres asiáticos.
Acontece que, em termos globais, as exportações são iguais as importações. É um jogo de soma zero. Se um pais faz grandes superávits comerciais, outros países terão de compensar esses superávits com déficits. No caso presente, os Estados Unidos são uma espécie de país deficitário de último recurso pois absorve grande parte das exportações do resto do mundo, notadamente da China, fazendo um gigantesco déficit. Acontece que os Estados Unidos podem fazer isso porque imprimem e usam a moeda que compra as mercadorias do resto do mundo. É um equilíbrio comercial espúrio, baseado na chama receita de senhoriagem (moeda).
Em termos práticos, os Estados Unidos se tornaram grandes parasitas do sistema econômico global aproveitando-se dessa assimetria comercial. Para eles é muito confortável ser deficitários. Para outros países que não emitem dólar, a única forma de assegurar a própria estabilidade é recorrer à estratégia mercantilista, como fizeram, acompanhando a China, os países asiáticos depois da crise financeira de final dos anos 90. Entretanto, temos aí um problema: o sistema mundial, como dito, é um jogo de soma zero. É impossível que todos os países sejam superavitários ao mesmo tempo. Alguém tem que carregar o déficit correspondente.
A Argentina está apenas colocando em termos racionais um fenômeno que teria que estar na pauta da comunidade internacional diante da crise atual, em grande parte devida aos desequilíbrios comerciais e financeiros. Ou seja, é necessário equilibrar o comércio internacional de uma forma que reduza a instabilidade proveniente da assimetria do comércio. O livre-cambismo, por óbvio, não pode dar conta disso. Teríamos que voltar ao sistema de Keynes. Como isso será muito difícil, dado o peso dos interesses nacionais, sobretudo norte-americanos, envolvidos, é bom que a Argentina tome a dianteira. Afinal, se a corrente tende a romper pelo lado mais fraco, como queria Lênin, não é mau que um pequeno país do Sul decida escandalizar o centro do sistema financeiro mundial apontando suas óbvias contradições.
(*) Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, co-autor com Francisco Antonio Doria do recém-lançado “O Universo Neoliberal em Desencanto”, Civilização Brasileira. Este artigo é publicado também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.