O Boca Juniors recebe o Palmeiras em seu estádio, a mítica 'La Bombonera', no coração de Buenos Aires, Argentina, pela partida de ida das semifinais da Copa Libertadores da América. Mas poucas horas antes do jogo, marcado para as 21h30, torcedores argentinos já foram flagrados fazendo gestos racistas para os brasileiros. Dessa vez, além dos tradicionais gritos e mimicas, usaram um celular para escrever a palavra “macaco” em letras garrafais e mostrar aos visitantes.
As imagens foram gravadas por torcedores palmeirenses que compareceram ao estádio, por volta das 19h, ou seja, quase 3 horas antes do jogo começar. É possível ver as arquibancadas ainda vazias, esperando o público que promete lotar a ‘cancha’. Os palmeirenses filmaram do alto, onde ficam as tribunas destinadas aos visitantes. Lá embaixo é possível ver o pequeno grupo de torcedores locais fazendo as ofensas.
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Após a partida desta noite, Palmeiras e Boca Juniors voltam a se enfrentar na quinta-feira da próxima semana (5), no Allianz Park, pela partida de volta do duelo que definirá uma vaga na grande final da Copa.
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Racismo na Argentina
Essa não é a primeira vez que uma cena semelhante é registrada em jogos entre clubes brasileiros e argentinos. Pelo contrário, a cena sempre foi comum e está cada vez ganhando maior evidência justamente por conta das novas tecnologias que permitem a produção e difusão rápida das imagens.
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Em entrevista a este jornalista, publicada em maio de 2022 no Correio da Cidadania sobre o mesmo assunto, o sociólogo e antropológo argentino Nico Cabrera, professor da Universidad de Cordoba e torcedor fanático do Belgrano, explica que o racismo argentino está totalmente vinculado à própria noção de identidade nacional do país.
“O racismo está tão introjetado na sociedade que a imitação do macaco não gera muito problema por aqui, infelizmente, não é um assunto que vai ocupar a opinião pública ou matérias nos jornais, porque estamos com esse racismo completamente naturalizado por aqui. Esse tipo de coisa passa nesse crivo apenas como uma ‘piada’ que faz parte do ‘folclore do futebol’”, contou.
Para o especialista argentino, é preciso levar em conta que toda sociedade tem racismo e na Argentina não é diferente. E, que, por conta da história do país e sua composição étnica e racial, o racismo funciona de um jeito um pouco diferente do que estamos acostumados a observar no Brasil. A inesquecível frase do presidente argentino Alberto Fernández, quando disse que “os brasileiros vieram da selva e nós, argentinos, dos barcos”, resume um pouco a ópera além de mostrar que essa ideia da Argentina branca e europeia é um mito aceito de maneira geral no país, incluindo nos setores progressistas.
“Na Argentina estamos no pior grau do racismo, que é aquele que diretamente nega o racismo – e ao contrário do Brasil onde há mais vozes dissonantes, aqui é internalizado de forma muito mais ampla”, explica Cabrera.
Como exemplo, Nicolás nos lembra que no Brasil existe o mito da Democracia Racial que, embora não corresponda à realidade, pois sabe-se que o racismo também é muito forte entre nossas fronteiras, ao menos geraria um clima um pouco menos descarado se comparado aos mitos nacionais argentinos, tornando a ideia do racismo um pouco menos normalizada no Brasil em comparação com os nossos vizinhos.
“Fomos criados com um mito fundante que é o da Argentina branca e europeia. Na ideia de que a Argentina veio dos barcos, de que todos somos descendentes de europeus. Assim, esse mito, que está muito internalizado nos corpos e mentes dos argentinos e argentinas, leva a crer que a Argentina não seria um país racista pelo simples fato de não ter uma população negra. Um dado que é falso porque a Argentina, como todas as sociedades latino-americanas, é uma sociedade mestiça. Existe sobretudo muita população indígena, mas há também os afroargentinos, ainda que em números muito inferiores na comparação com o Brasil”.
Nicolás Cabrera conclui seu pensamento recordando da importância que o futebol tem na América Latina como um importante canal para se construir uma nação. No futebol se aprende a ser brasileiro, argentino, uruguaio e assim por diante. Quantos leitores não cantaram o hino nacional pela primeira vez em uma Copa do Mundo, por exemplo? Nesse sentido, o esporte, com sua importância nos corações dos povos do nosso continente, “reflete e expressa muito dos mitos e das narrativas patriotas”, nas palavras do entrevistado.
“Como fomos criados na Argentina com essa ideia do argentino branco e europeu, um dos jeitos de afirmar essa identidade nacional no futebol é mostrando que somos isso mesmo, e, como consequência, não seríamos negros e indígenas. E nesse jogo de espelhos que é o futebol, onde ao mesmo tempo eu falo quem eu sou e quem você é, mostrar que os outros (brasileiros, bolivianos, peruanos etc.) não são argentinos, funciona na mesma mão em que dizemos que nós somos europeus. A imitação do ‘macaco’ vem nesse sentido, dessa hipotética superioridade racial dos argentinos sobre o resto do continente. É uma ideia colocada pelas elites e vejo que quando um torcedor argentino faz esse macaquinho, ele está reproduzindo exatamente essa ideia de nação”, concluiu.